Biodireito: Um novo filho da ciência
JONES
FIGUEIRÊDO ALVES
A revista científica britânica “New
Scientist” revelou, em seu site na rede Web (27.09), o nascimento do primeiro
“bebê de três pais” (06.04), um dos filhos da ciência, pelo uso pioneiro da
técnica de micro-transplante mitocondrial, a “tree parents tecnique” (https://www.newscientist.com/article/2107219).
Antes dele tivemos, como filhos da
ciência, (i) Louise Joy Brown, o primeiro bebê nascido de fertilização “in
vitro” (Oldham, Inglaterra, 25.07.1978); (ii) Adam Nash, geneticamente
selecionado por compatibilidade e nascido para salvar a vida de sua irmã Molly
- que sofria de anemia de Fanconi, uma doença genética que provocaria sua morte
precoce – por isso denominado “saviour sibling” (“irmão salvador”) ou “bebê-medicamento” (EUA, 29.08.2000);
(iii) e aqueles inúmeros selecionados por Diagnóstico Genético
Pré-Implantacional (DGPI), descrito pela primeira vez na década de 1990 a
prevenir transferência de embriões portadores de graves doenças gênicas. Com
seus perfis genéticos definidos, alguns deles chamados como “designer babies”, por características
físicas pretendidas.
A nova técnica utiliza um óvulo
combinado de duas mulheres fertilizado com o sêmen do genitor, uma delas
doadora do DNA mitocondrial não defeituoso, tudo a evitar doenças genéticas
transmitidas pela mãe.
Abrahim Hasan nasceu no México (onde omissa a legislação),
filho de pais jordanianos, cuja principal mãe é portadora da síndrome de
Leight, um distúrbio neurológico que transmitido aos filhos se apresenta fatal.
Ela perdera os dois primeiros. Essa avançada técnica de reprodução assistida
vem possibilitar que o núcleo do óvulo da futura gestante seja removido e
transplantado para o óvulo de mitocôndrias saudáveis de outra mulher, evitando-se
doenças graves no filho a ser concebido.
A técnica de transferência mitocondrial
foi pesquisada e desenvolvida, inicialmente, em Newcastle (UK), tendo sido
permitida no Reino Unido, desde a edição da Lei nº 572/2015, de 03.02.2015,
denominada “Human Fertilisation and Embryology (Mitochondrial Donation)” com
dezenove regulações, aprovada pela Câmara dos Comuns (382 votos a favor x 128
contrários) depois de cinco anos discutida no Parlamento britânico. Em menos
palavras, a permissão da técnica significa admitir a reprodução assistida de
filhos com três pais genéticos, mais precisamente com duas mães, onde a mãe
mitocondrial colabora com seu DNA próprio.
Mitocôndrias são organelas celulares,
com DNA específico, situadas no óvulo e quando sofrem mutações causam doenças
hereditárias; significando que mães portadoras de mutações mitocondriais
(miopatia mitocondrial) impõem aos filhos o destino genético de uma concepção
feita por óvulos doentes.
Interessante que mitocôndrias adoecidas
do sêmen não penetram no óvulo ao tempo da fecundação; a dizer, na hipótese,
que os defeitos genéticos advenientes da miopatia mitocondrial são de herança
materna, provocando cegueira, convulsões, doenças cardíacas e hepáticas.
Anota-se que a mitocôndria, “verdadeira
usina de energia celular”, tem sua transmissão genética, pelo processo de
fertilização artificial (“in vitro”) em reduzido percentual; ou seja, a mãe
doadora representa apenas 0,18% do DNA total. Enquanto o DNA mitocondrial
saudável é composto de 37 importantes genes da mãe doadora, o núcleo do óvulo
transportado da mãe biológica e gestante possui cerca de vinte e cinco mil
genes da genitora. Aquele percentual menor, todavia, é decisivo para a
qualidade de vida do filho.
A nova lei autorizativa da técnica, vigente
na Grã-Bretanha e única no mundo, revoluciona a atual legislação bioética que tem
proibido a manipulação do genoma humano, o uso de materiais genéticos
combinados ou que embriões geneticamente alterados sejam implantados na mulher.
Importa assinalar, todavia, que tem sido
defendida a doação mitocondrial, diante da elevada contribuição que a terapia
gênica oportuniza, a impedir que crianças sejam vitimas - uma a cada seis mil e
quinhentas, no Reino Unido – por doenças incapacitantes, que afetam coração,
fígado, atividades musculares, entre outras patologias severas que podem
conduzir à morte. Seriam crianças destinadas a morrer, por falhas da
mitocôndria. A rigor, estima-se que cerca de setenta tipos de mutações em genes
do DNA mitocondrial vinculam-se ao surgimento de determinadas doenças, algumas letais.
Sublinha-se que três procedimentos de
transferência de núcleo existem e são utilizados a indicar a trindade genética:
(i) entre gametas, (ii) na fase de zigoto e (iii) por transferência
citoplasmática; certo que sempre o objetivo da manipulação destina-se a inibir
doenças.
A lei britânica chamou, desde então, a
atenção mundial, ao permitir que as técnicas de fertilização utilizem óvulos
geneticamente modificados, acompanhando os avanços da ciência, sem maiores
questionamentos bioéticos.
Tem sido sustentado, aliás, que o DNA
mitocondrial não influencia as características fenotípicas do ser concebido,
querendo significar que a trindade genética não será absoluta, ou seja, desinfluente,
nesse ponto, será a segunda mãe. No mais, a mencionada lei vem dispor que a mãe
doadora será anônima, para os fins da relação parental, como sucede com os
doadores de sêmen, nos projetos parentais com fecundação artificial heteróloga.
Destarte, ganha relevo cientifico, sob o
amparo da lei pioneira, o surgimento de seres criados com carga genética de
acréscimo, detentores de identidades genéticas diferenciadas, ao portarem DNAs
distintos, ou seja, advenientes de duas mães genéticas. É uma nova espécie de
quimera, trazida pela ciência a desafiar o direito.
Sabido e consabido que os meios-irmãos
tem em comum o pai ou a mãe, e no caso da mãe, os dois compartilham o DNA
mitocondrial - o que não ocorre se forem filhos de mesmo pai, com mães
diferentes – a presente novidade
biogenética de uma concepção a três, com mães genéticas distintas de um mesmo
filho, vem de exigir, agora mais que urgente, os avanços da ordem jurídica.
Indispensável, pois, que tenhamos, em
nosso país, uma legislação de biodireito, positivando as normas bioéticas, a
dispor sobre a reprodução assistida.
DESEMBARGADOR DECANO DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DE PERNAMBUCO (TJPE). MESTRE EM CIÊNCIAS JURÍDICAS PELA FACULDADE DE
DIREITO DA UNIVERSIDADE CLÁSSICA DE LISBOA (FDUL).
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