sexta-feira, 15 de março de 2013

MONTEIRO LOBATO E A CIDADE DE PASSOS.

Prezados. 

Segue texto que recebi de Miguel Matos, diretor do Migalhas, escrito por seu pai, Carlos Alberto Bastos de Matos. 

O artigo aponta a relação de Monteiro Lobato e a minha cidade natal, Passos, Minas Gerais. 

Infelizmente, o grande escrito não esteve por lá.

Abraços. 

Professor Flávio Tartuce

PASSOS DE MONTEIRO LOBATO

 

Carlos Alberto Bastos de Matos

 Não, Monteiro Lobato (18/4/1882-5/7/1948) jamais esteve em Passos, mas fez vários projetos - sempre frustrados - para ir à cidade visitar o juiz Godofredo Rangel, seu companheiro desde os tempos da Faculdade de Direito de São Paulo.

Rangel foi o mais íntimo de seus amigos. Nem eram, porém, da mesma turma acadêmica; o interesse pela literatura no entanto os unira ainda jovens e sustentou-lhes a amizade por toda a vida – e “Literatura”, dizia Lobato, “é cachaça. Vicia. A gente começa com um cálice e acaba pau d’água de cadeia” (carta de 16/6/1904). A longa amizade começa quando, estudantes, passam a morar num pitoresco chalé paulistano, o “Minarete” do Belenzinho, e conquanto depois raríssimos tenham sido os encontros entre eles, o passar dos anos não esmaece a afeição.

Completados os cursos jurídicos (em 1902 e em 1904), Rangel retorna para Minas, onde faz carreira na magistratura, ao passo que o irrequieto Lobato, após curta passagem como promotor público na modorrenta Areias, nos limites entre São Paulo e Rio, torna-se fazendeiro em Taubaté quando da morte do avô visconde e – alma buliçosa, espírito “emiliano” -, sucessivamente editor, jornalista, tradutor, adido comercial nos Estados Unidos, dono de companhia de ferro e de petróleo, e, mesmo, hóspede da Casa de Detenção paulista onde, acusado de injuriar Vargas em pleno Estado Novo, passa “uns tantos deliciosos e inesquecíveis dias” entre presos “de alma muito mais limpa e nobre do que muita gente de alta bordo que anda solta” (cf. carta de “agradecimento” que manda ao responsável por sua prisão, general Horta Barbosa, Comandante do Conselho Nacional do Petróleo – in “Monteiro Lobato – Vida e Obra”, de Edgard Cavalheiro, Ed. Companhia Editora Nacional, SP. 1956, tomo II, p.79).

Tão distanciados na vida adulta, os laços afetivos mantiveram-se todavia por meio de contínua correspondência que trocaram durante quase meio século. As cartas de Monteiro Lobato foram publicadas em 1944, enfeixadas num volume intitulado “A Barca de Gleyre”; as do arredio e tímido Rangel, entretanto, jamais vieram à luz – e não por falta de insistência de Lobato:

"E as cartas, meu Godo? Continuam a reclamá-las. Deixa-te de enjoamentos e organiza-as, como fiz com as minhas. Todo comprador da “Barca” fatalmente comprará as tuas. Não vês isso, animal? Ganharás no mínimo (edição de 5 mil) uns 20 contos.” (apud E. Cavalheiro, op.cit., p.148).

Quanto sonhou Lobato em ir reencontrar o amigo em Minas! Desejava ver como se saía na magistratura aquele que, nas letras, considerava muito maior que ele, “o Dickens do romance nacional” (carta de 4/8/1915). Escrevia-lhe em 2/12/1908:

“Ando cheio de curiosidades – da tua nova vida, da tua nova profissão; e se não fossem estas raízes do casamento (casara-se em março de 1908 com Maria Pureza Natividade, d. Purezinha), em vez de escrever ia ver-te. Ver-te Juiz! Ver-te Meretíssimo! Conheço-te sob todos os outros lados, menos esse – Juiz, Magistrado! O homem que rabisca nas petições o “Como requer” – e fatalmente o fazes piscando três vezes. E usas óculos nessas solenidades, Juiz? Toga? A cabeleira dos ingleses – wiq?”

 Em 1916, da fazenda de Taubaté, volta a lamentar:

“...prometi mil vezes pagar-te a visita que me fizeste em Areias. Mas um dia hei de surpreender-te – e estou vendo a cena! Chego, indago na estação onde mora o “senhor Juiz” e vou bater à tua porta. Campainha já sei que não há; em Minas ainda é nó-de-dedo. E eu bato: tóc, tóc, tóc. Ouço lá dentro uma voz: “Há de ser algum pobre. Vá dizer que hoje não é sábado”. O Nelo vem abrir com o “não é sábado” na boca mas dá com um sujeito que evidentemente não é pobre. “O senhor Juiz está?” pergunto. O Nelo entra e ouço-o dizer ao pai no escritório: “Papai, está um sujeito esquisito, com ar de gente de fora. Tem cara de turco...” Uma voz grave soa no escritório: “Bar, veja quem é”. D. Bárbara abre a porta, dá comigo e sem querer deixa escapar um “Il!” muito parecido com o célebre “Eux!” do Tartarin de Tarascon. Seu rosto afogueia-se. Pensa no cabo de vassoura, agarra-o e zás!... Eis, Rangel, a razão de haver eu abandonado a idéia da visita de surpresa: medo puro! Só irei visitar-te caso me apadrinhes com um habeas-corpus preventivo e que tenha o “Visto” dela. Outra razão da falha da surpresa está na ignorância geográfica das voltas que tenho de dar para cair aí[1]. Olho no mapa de Minas e tonteio. Parece-me o báratro. Só com um itinerário, como o dos Cruzados que iam para a Terra Santa. Manda-me um.” (carta de 5/11/1916).

 No ano seguinte, já em São Paulo, Lobato deplora mais uma vez:

“Meu projeto de ir a Minas gorou. Venha você a S.Paulo. Meus projetos goram como ovos, porque não sou um, sou dois. Eu ponho, Purezinha impõe. Como a tua Bárbara. Ambas são “imponentes”. (4/11/1917).

 Em 1925, o juiz Rangel dá conta ao amigo de sua promoção. Lobato responde-lhe em 5 de abril:

“A cidade de Passos dizem-me que é boa – e vejo que é mesmo, já que te recebeu com flores e música”.

 Poucas coisas eram mais indigestas a Monteiro Lobato que os arcaísmos: “estou convencido de que o vocábulo fora da moda, fóssil ou raro, é “pedra” de banana-maçã” (1/8/1915). De Passos, Godofredo Rangel manda-lhe uma obra de Wellington Brandão; Lobato entusiasma-se:

“... comecei a ler o W. Brandão no livro mandado. Realmente, muito interessante e de grande pitoresco. Há coisas deliciosas de observação e expressão.”

 Mas, adverte:

“Pena escrever na tal cacografia portuguesa.” (8/7/1926).

 Falida a empresa editorial em que se metera Lobato, ei-lo em 1927 como adido comercial em New York. Rangel continuava em Passos, onde recebe do amigo as notícias dos encantos da América:

“Sabe onde li tua carta? No trem de Corona, que é o que me traz para casa – trem subterrâneo. Aí em Minas só as minhocas andam no fundo da terra; aqui todos nós, dentro de trens. Conta isso ao Chico Sales. Tomo esse trem numa caverna de Ali Babá, maravilhosa, chamada Grand Central, lá no fundo da terra, e o trem me leva pelo túnel que passa debaixo do rio Hudson. Eu estava passando sob o Hudson quando cheguei ao pedacinho em que falavas no jatobá. Parei e pensei comigo: “A cidadinha de Passos, um jatobá, Rangel olhando para o jatobá, e eu no fundo da terra, num trem elétrico sob o Hudson, vendo o Rangel de olhos fixos no jatobá!” E repeti alto essa palavra “jatobá”, pela primeira vez soada naquele túnel. Um americano ao meu lado olhou...” (carta de 5/9/1927).


[1]  Rangel era à época juiz em Santa Rita do Sapucaí.

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