A Nova Emenda do Divórcio: Primeiras Reflexões
Pablo Stolze Gagliano
Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Pós-Graduado em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia. Professor de Direito Civil da Universidade Federal da Bahia e da Rede de Ensino LFG.. Co-autor das obras “Novo Curso de Direito Civil” e “O Novo Divórcio” (Saraiva)
1. Introdução
O incremento do divórcio é fenômeno observado, há tempos, não apenas no Brasil, mas em outros Estados no mundo.
Em fecundo estudo, CONSTANCE AHRONS e ROY RODGERS, debruçados nas alterações sociais experimentadas no século passado, observavam que, somente nas últimas três décadas, a idealizada noção “sagrada” da tradicional família norte-americana havia sido seriamente desafiada. Fatores de variada ordem como o movimento feminista, o aumento da força de trabalho da mulher e a revolução sexual, freqüentemente eram citados como responsáveis pelo número crescente de divórcios:
“It is only in the last three decades that this idealized notion of the sanctity of the tradicional American family has been seriously chalenged. The contemporary feminist movement, the increase of women in the workforce, and the sexual revolution are often cited as contribuiting to the rapid increase in divorce rates”.
Surgiriam, nesse contexto, e a virada do século confirmaria esta previsão, famílias recombinadas, de segundas, terceiras ou quartas núpcias (ou mais), alterando com isso, significativamente, o panorama tradicional da família.
A família, sob o prisma jurídico, portanto, seria reconstruída com base no afeto, noção decorrente da “valorização constante da dignidade da pessoa humana”, no erudito dizer de FLÁVIO TARTUCE e JOSÉ FERNANDO SIMÃO.
O acesso mais facilitado ao divórcio, pois, consolidaria esses arranjos familiares recombinados (blended or mixed families), alterando profundamente o cenário social em que vicejam.
Observamos, com isso, que o inexorável processo de reabertura do conceito tradicional de família - fruto de fatores diversos, de variados matizes (social, econômico, político, antropológico, cultural) – desembocaria no aumento do número de casais divorciados em todo o mundo.
E o Brasil, nesse diapasão, acompanhou esta tendência, conforme podemos constatar em recente pesquisa feita pelo IBGE:
“Em 2006, o número de separações judiciais concedidas foi 1,4% maior do que em 2005, somando um total de 101.820. Neste período, a análise por regiões mostra distribuição diferenciada com a mesma tendência de crescimento: Norte (14%), o Nordeste (5,1%), o Sul (2,6%) e o Centro-Oeste (9,9%). Somente no Sudeste houve decréscimo de 1,3%. Os divórcios concedidos tiveram acréscimo de 7,7% em relação ao ano anterior, passando de 150.714 para 162.244 em todo o país. O comportamento dos divórcios mostrou tendência de crescimento em todas as regiões, sendo de 16,6% para o Norte, 5,3% para o Nordeste, 6,5% para o Sudeste, 10,4% para o Sul e 9,3%, no Centro-Oeste. Em 2006, as taxas gerais de separações judiciais e de divórcios, medidas para a população com 20 anos ou mais de idade, tiveram comportamentos diferenciados. Enquanto as separações judiciais mantiveram-se estáveis em relação a 2005, com taxa de 0,9%, os divórcios cresceram 1,4%. Esse resultado revela uma gradual mudança de comportamento na sociedade brasileira, que passou a aceitar o divórcio com maior naturalidade, além da agilidade na exigência legal, que para iniciar o processo exige pelo menos um ano de separação judicial ou dois anos de separação de fato. De 1996 a 2006, a pesquisa mostrou que a separação judicial manteve o patamar mais freqüente e o divórcio atingiu a maior taxa dos últimos dez anos. Em 2006, os divórcios diretos foram 70,1% do total concedido no país. Os divórcios indiretos representaram 29,9% do total. As regiões Norte e Nordeste, com 86,4% e 87,4%, foram as que obtiveram maiores percentuais de divórcios diretos. As informações da pesquisa de Registro Civil referente à faixa etária dos casais nas separações judiciais e nos divórcios mostram que as médias de idade eram mais altas para os divórcios. Para os homens, as idades médias foram de 38,6 anos, na separação judicial, e de 43,1 anos, no divórcio. As idades médias das mulheres foram de 35,2 e 39,8 anos, respectivamente, na separação e no divórcio. A análise das dissoluções dos casamentos, por divórcio, segundo o tipo de família, mostrou que, em 2006, a proporção dos casais que tinham somente filhos menores de 18 anos de idade foi de 38,8%, seguida dos casais sem filhos com 31,1%” .
Em 2007, vale acrescentar, ano em que se completaram os 30 anos da Lei do Divórcio (Lei n. 6515 de 1977), os números mantiveram a tendência de crescimento, conforme podemos ler na notícia abaixo, baseada também em estudo do IBGE:
“A taxa de divórcios no Brasil subiu 200% entre 1984 e 2007, segundo dados da pesquisa "Estatísticas do Registro Civil 2007", divulgada nesta quinta-feira (4) pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No período, o índice passou de 0,46 divórcio para cada grupo de mil habitantes para 1,49 divórcio por mil habitantes. Em números absolutos, os divórcios concedidos passaram de 30.847, em 1984, para 179.342, em 2007” .
Toda essa projeção matemática de crescimento demonstra a inegável alteração do matiz ideológico do conceito moderno de família - na perspectiva da busca da felicidade pessoal de seus integrantes em novos relacionamentos - reforçando ainda mais a importância da facilitação jurídica do divórcio, o que, sob o viés civil-constitucional, cristalizou-se, atualmente, na aprovação desta importante Emenda Constitucional.
E não se conclua, a partir disso, que se esteja fortalecendo uma política inconseqüente de banalização do casamento.
De forma alguma.
O que se quis, em verdade, por meio da aprovação da recente Emenda do Divórcio, é permitir a obtenção menos burocrática da dissolução do casamento, facultando, assim, que outros arranjos familiares fossem formados, na perspectiva da felicidade de cada um.
Pois sem amor e felicidade não há porque se manter um casamento.
2. Compreendendo o Contexto Jurídico do Projeto de Emenda do Divórcio
Em 05 de dezembro de 2002, o Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp 467.184 de São Paulo, sendo relator o culto Min. Ruy Rosado de Aguiar, tendo assentado que, em sede de separação, “evidenciada a insuportabilidade da vida em comum, e manifestado por ambos os cônjuges, pela ação e reconvenção, o propósito de se separarem, o mais conveniente é reconhecer esse fato e decretar a separação, sem imputação da causa a qualquer das partes”.
Este acórdão, proferido em uma época em que sequer estava em vigor o novo Código Civil, sempre nos chamou a atenção.
Isso porque, como se pode notar, os ministros decretaram a separação do casal, desconsiderando a exigência legal no sentido de se imputar causa para o fim da sociedade conjugal (violação de dever matrimonial ou cometimento de conduta desonrosa), atendo-se, simplesmente, ao desamor para o fim de dissolver a sociedade entre os cônjuges.
Merece aplausos este aresto.
Em sua nova e moderna perspectiva, o Direito de Família, segundo o princípio da intervenção mínima, desapega-se de amarras anacrônicas do passado, para cunhar um sistema aberto e inclusivo, facilitador do reconhecimento de outras formas de arranjo familiar, incluindo-se as famílias recombinadas (de segundas, terceiras núpcias etc.).
Nesse diapasão, portanto, detectado o fim do afeto que unia o casal, não há sentido em se tentar forçar uma relação que não se sustentaria mais.
Segundo CRISTIANO CHAVES e NELSON ROSENVALD:
“Infere-se, pois, com tranqüilidade que, tendo em mira o realce na proteção avançada da pessoa humana, o ato de casar e o de não permanecer casado constituem, por certo, o verso e o reverso da mesma moeda: a liberdade de auto-determinação afetiva”.
Ademais, não caberia à lei nem à religião estabelecer condições ou requisitos necessários ao fim do casamento, pois apenas aos cônjuges, e a ninguém mais, é dado tomar esta decisão.
Por isso, tanto para a separação, quanto para o divórcio, a tendência deve ser sempre a sua facilitação, e não o contrário.
E quando nos referimos a uma “facilitação” não estamos querendo dizer, com isso, conforme já anunciamos no tópico anterior, que somos entusiastas do fim do casamento.
Não.
O que estamos a defender é que o ordenamento jurídico, numa perspectiva de promoção da dignidade da pessoa humana, garanta meios diretos, eficazes e não-burocráticos para que, diante da derrocada emocional do matrimônio, os seus partícipes possam se libertar do vínculo falido, partindo para outros projetos pessoais de felicidade e de vida.
Um primeiro passo já havia sido dado por meio da aprovação da Lei n. 11.441 de 2007, que regulou a separação e o divórcio administrativos em nosso País, permitindo que os casais, sem filhos menores ou incapazes, pudessem, consensualmente, lavrar escritura pública de separação ou divórcio, em qualquer Tabelionato de Notas do País.
Outro significativo passo vem a ser dado, agora, por meio da aprovação desta importante Emenda, que modificou o art. 226, § 6o da CF.
A referida proposta de emenda resultou de iniciativa de juristas do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, abraçada pelo deputado Antônio Carlos Biscaia (PEC 413/05) e reapresentada posteriormente pelo deputado Sérgio Barradas Carneiro (PEC 33/07).
Vamos então compreender o seu objeto.
3. O Objeto da Emenda do Divórcio
3.1. O Teor da Emenda
O texto de sua proposta de redação original era o seguinte:
“§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio consensual ou litigioso, na forma da lei”.
Suprimiu-se, posteriormente, a expressão “na forma da lei”, constante na parte final do dispositivo sugerido.
Esta supressão, aparentemente desimportante, revestiu-se de grande significado jurídico.
Caso fosse aprovada em sua redação original, correríamos o sério risco de minimizar a mudança pretendida, ou, o que é pior, torná-la sem efeito, pelo demasiado espaço de liberdade legislativa que a jurisprudência poderia reconhecer estar contida na suprimida expressão.
Vale dizer, aprovar uma emenda simplificadora do divórcio com o adendo “na forma da lei” poderia resultar em um indevido espaço de liberdade normativa infraconstitucional, permitindo interpretações equivocadas e retrógradas, justamente o que a proposta quer impedir.
Melhor, portanto, a sintética redação atual, aprovada em segunda e última votação pelo Senado Federal:
“O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.
Da sua leitura, constatamos duas modificações de impacto: acaba-se com a separação judicial (de forma que a única medida juridicamente possível para o descasamento seria o divórcio) e extingue-se também o prazo mínimo para a dissolução do vínculo matrimonial (eis que não há mais referência à separação de fato do casal há mais de dois anos).
Vale a pena lermos a justificativa apresentada pelo Deputado Sérgio Barradas Carneiro, quando da apresentação da referida proposta, pois, assim, é possível se ter uma idéia das razões da sua propositura, e,também, do contexto social e histórico da sua apresentação:
“A presente Proposta de Emenda Constitucional é uma antiga reivindicação não só da sociedade brasileira, assim como o Instituto Brasileiro de Direito de Família, entidade que congrega magistrados, advogados, promotores de justiça, psicólogos, psicanalistas, sociólogos e outros profissionais que atuam no âmbito das relações de família e na resolução de seus conflitos, e também defendida pelo Nobre Deputado Federal Antonio Carlos Biscaia (Rio de Janeiro). Não mais se justifica a sobrevivência da separação judicial, em que se converteu o antigo desquite. Criou-se, desde 1977, com o advento da legislação do divórcio, uma duplicidade artificial entre dissolução da sociedade conjugal e dissolução do casamento, como solução de compromisso entre divorcistas e antidivorcistas, o que não mais se sustenta. Impõe-se a unificação no divórcio de todas as hipóteses de separação dos cônjuges, sejam litigiosos ou consensuais. A Submissão a dois processos judiciais (separação judicial e divórcio por conversão) resulta em acréscimos de despesas para o casal, além de prolongar sofrimentos evitáveis. Por outro lado, essa providência salutar, de acordo com valores da sociedade brasileira atual, evitará que a intimidade e a vida privada dos cônjuges e de suas famílias sejam revelados e trazidos ao espaço público dos tribunais, como todo o caudal de constrangimentos que provocam, contribuindo para o agravamento de suas crises e dificultando o entendimento necessário para a melhor solução dos problemas decorrentes da separação. Levantamentos feitos das separações judiciais demonstram que a grande maioria dos processos são iniciados ou concluídos amigavelmente, sendo insignificantes os que resultaram em julgamentos de causas culposas imputáveis ao cônjuge vencido. Por outro lado, a preferência dos casais é nitidamente para o divórcio que apenas prevê a causa objetiva da separação de fato, sem imiscuir-se nos dramas íntimos; Afinal, qual o interesse público relevante em se investigar a causa do desaparecimento do afeto ou do desamor? O que importa é que a lei regule os efeitos jurídicos da separação, quando o casal não se entender amigavelmente, máxime em relação à guarda dos filhos, aos alimentos e ao patrimônio familiar. Para tal, não é necessário que haja dois processos judiciais, bastando o divórcio amigável ou judicial (PEC 33/07. Dep. Sérgio Barradas Carneiro)”.
Em síntese, a Emenda aprovada pretende facilitar a implementação do divórcio no Brasil e apresenta dois pontos fundamentais:
a) extingue a separação judicial;
b) extingue a exigência de prazo de separação de fato para a dissolução do vínculo matrimonial.
Cuidemos de ambos os aspectos separadamente, para a sua melhor compreensão.
3.2. Extinção da Separação Judicial
A extinção da separação judicial é medida das mais salutares.
Como sabemos, a separação judicial é instituto menos profundo do que o divórcio.
Com ela, dissolve-se, tão-somente, a sociedade conjugal, ou seja, põe-se fim a determinados deveres decorrentes do casamento como o de coabitação e o de fidelidade recíproca, facultando-se também, em seu bojo, realizar-se a partilha patrimonial.
Nesse sentido, o art. 1576 do Código Civil:
Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens.
Mas note-se que o vínculo matrimonial persiste.
Pessoas separadas não podem se casar novamente, pois o laço matrimonial ainda não fora desfeito, o que somente será possível em caso de morte de um dos cônjuges ou de decretação do divórcio.
Assim, é de clareza meridiana, estimado leitor, que o divórcio é infinitamente mais vantajoso do que a simples medida de separação.
Sob o prisma jurídico, com o divórcio, não apenas a sociedade conjugal é desfeita, mas o próprio vínculo matrimonial, permitindo-se novo casamento; sob o viés psicológico, evita-se a duplicidade de processos – e o strepitus fori – porquanto pode o casal partir direta e imediatamente para o divórcio; e, finalmente, até sob a ótica econômica, o fim da separação é salutar, pois, com isso, evitam-se gastos judiciais desnecessários por conta da duplicidade de procedimentos.
E o fato de a separação admitir a reconciliação do casal – o que não seria possível após o divórcio, pois, uma vez decretado, se os ex-consortes pretendessem reatar precisariam se casar de novo – não serve para justificar a persistência do instituto, pois as suas desvantagens são, como vimos acima, muito maiores.
Nessa linha, a partir da promulgação da Emenda, desapareceria de nosso sistema o instituto da separação judicial e toda a legislação, que o regulava, sucumbiria, por conseqüência, sem eficácia, por conta de uma inequívoca não-recepção ou inconstitucionalidade superveniente .
Note-se, no entanto, que as pessoas já separadas ao tempo da promulgação da Emenda não podem ser consideradas automaticamente divorciadas.
Não haveria sentido algum.
Aliás, este entendimento, a par de gerar grave insegurança jurídica, resultaria no desagradável equívoco de se pretender modificar uma situação jurídica consolidada segundo as normas vigentes à época da sua constituição, sem que tivesse havido manifestação de qualquer das partes envolvidas.
Ademais, é de bom alvitre lembrar que uma modificação assim pretendida – caída do céu – culminaria por transformar o próprio estado civil da pessoa até então separada.
Como ficariam, por exemplo, as relações jurídicas travadas com terceiros pela pessoa até então judicialmente separada?
À vista do exposto, portanto, a alteração da norma constitucional não teria o condão de modificar uma situação jurídica perfeitamente consolidada segundo as regras vigentes ao tempo de sua constituição, sob pena de se gerar, como dito, perigosa e indesejável insegurança jurídica.
Em outras palavras: a partir da entrada em vigor da Emenda Constitucional, as pessoas judicialmente separadas (por meio de sentença proferida ou escritura pública lavrada ) não se tornariam imediatamente divorciadas, exigindo-se-lhes o necessário pedido de decretação do divórcio para o que, por óbvio, não haveria mais a necessidade de cômputo de qualquer prazo.
Respeita-se, com isso, o próprio ato jurídico perfeito.
E o que dizer dos processos judiciais de separação em curso, ainda sem prolação de sentença?
Neste caso, a solução, em nosso sentir, é simples.
Deverá o juiz oportunizar à parte autora (no procedimento contencioso) ou aos interessados (no procedimento de jurisdição voluntária), mediante concessão de prazo, a adaptação do seu pedido ao novo sistema constitucional, convertendo-o em requerimento de divórcio.
Nesse particular, não deverá incidir a vedação constante no art. 264 do CPC, segundo o qual, “feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei. Parágrafo único. A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo”.
Isso porque não se trata de uma simples inovação de pedido ou da causa de pedir no curso do processo, em desrespeito aos princípios da boa-fé objetiva e da cooperatividade, que impedem seja uma das partes colhida de surpresa ao longo da demanda.
De modo algum.
O que sucede, em verdade, é uma alteração da base normativa do direito material discutido, por força de modificação constitucional, exigindo-se, com isso, adaptação ao novo sistema, sob pena de afronta ao próprio princípio do devido processo civil constitucional.
Caso se recusem, ou deixem transcorrer o prazo concedido in albis, deverá o magistrado extinguir o processo, sem enfrentamento do mérito, por perda de interesse processual superveniente (art. 264, VI, CPC).
Se, entretanto, dentro no prazo concedido, realizarem a devida adaptação do pedido, recategorizando-o, à luz do princípio da conversibilidade, como de divórcio, o processo seguirá o seu rumo normal, com vistas à decretação do fim do próprio vínculo matrimonial, na forma do novo sistema constitucional inaugurado a partir da promulgação da Emenda.
No âmbito dos divórcios e separações consensuais administrativos, disciplinados pela Lei n. 11. 441 de 2007, os tabeliães precisarão ficar atentos ao novo sistema, pois não deverão mais lavrar escrituras públicas de separação, mantendo-se, obviamente, pelas razões expostas, aquelas já formalizadas antes do advento da Emenda.
Faculta-se, outrossim, lavrarem atos de conversão de separação em divórcio, nos termos da Resolução n. 35 do Conselho Nacional de Justiça:
“Art. 52. A Lei nº 11.441/07 permite, na forma extrajudicial, tanto o divórcio direto como a conversão da separação em divórcio. Neste caso, é dispensável a apresentação de certidão atualizada do processo judicial, bastando a certidão da averbação da separação no assento de casamento”.
Se, por equívoco ou desconhecimento, após o advento da nova Emenda, um tabelião lavrar escritura de separação, esta não terá validade jurídica, por conta da supressão do instituto em nosso ordenamento, configurando nítida hipótese de nulidade absoluta do acordo por impossibilidade jurídica do objeto (art. 166, II, CC).
3.3. Fim do Prazo de Separação de Fato para o Divórcio
Outra inovação é o fim do prazo de separação de fato para o divórcio direto.
Com a mudança determinada pela Emenda, não temos dúvida de que o Direito Brasileiro converter-se-á em um dos mais liberais do mundo, para efeito de se permitir, com mais imediatidade, a dissolução do vínculo matrimonial.
Só para se ter uma idéia, vejamos o que se dá no Direito Alemão.
A legislação alemã estabelece duas condições para o divórcio:
a) o casal estar separado de fato há pelo menos um ano, situação em que deverá haver pedido conjunto dos cônjuges ou, ainda que o pedido seja formulado por apenas um dos consortes, o outro consinta ou
b) estarem os cônjuges separados de fato há, pelo menos, três anos.
Afora essas situações, o casal somente poderá se divorciar se o fracasso da relação for devidamente verificado pelo Tribunal.
Além disso, este sistema europeu ainda mantém cláusula de dureza (Härteklausel): excepcionalmente, posto fracassado o casamento, não ocorrerá o divórcio, enquanto a manutenção do casamento for necessária à preservação do interesse das crianças (prejuízo evidente ao bem estar da criança). Também, por razões especiais, se o divórcio representar para o outro cônjuge dificuldade extraordinária, por conta de grave doença ou situação econômica, tiver o proponente de desistir da medida.
Em Portugal, escreve ANTUNES VARELA:
“O direito português é hoje dos direitos europeus que, com maior amplitude, permite a dissolução do casamento, tanto civil, como canônico, pelo divórcio. Além de admitir a separação judicial de pessoas e bens, quer litigiosa, quer consensual, ao lado do divórcio, o Código Civil faculta tanto o divórcio litigioso (art. 1779), com grande largueza de fundamentação, como o divórcio por mútuo consentimento, hoje quase sem nenhuns entraves à vontade comum dos cônjuges (art. 1175)”.
E, quanto ao prazo do divórcio no direito lusitano, assevera JORGE PINHEIRO:
“O divórcio fundado em ruptura da vida em comum pode ter como causa a separação de facto por três anos consecutivos (art. 1781, al. a) ou a separação de facto por um ano se o divórcio for requerido por um dos cônjuges sem a oposição do outro (art. 1781, al. b)”.
Ora, com o advento da nova Emenda, estaremos à frente dos alemães e também dos portugueses.
No sistema inaugurado, pois, não só inexiste causa específica para a decretação do divórcio (decurso de separação de fato ou qualquer outra) como também não atua mais nenhuma condição impeditiva da decretação do fim do vínculo, tradicionalmente conhecida como “cláusula de dureza”.
Aliás, quanto a esta última cláusula, o próprio Código Civil de 2002 não havia mais repetido o dispositivo constante no revogado art. 6 da Lei do Divórcio.
Em síntese: com a entrada em vigor da nova Emenda, é suficiente instruir o pedido de divórcio com a certidão de casamento, não havendo mais espaço para a discussão de lapso temporal de separação fática do casal ou, como dito, de qualquer outra causa específica de descasamento.
Vigora, mais do que nunca, agora, o princípio da ruptura do afeto – o qual busca inspiração no “Zerrüttungsprinzip” do Direito alemão (princípio da desarticulação ou da ruína da relação de afeto) – como simples fundamento para o divórcio.
Neste ponto, entretanto, uma pergunta poderá ser feita: é razoável não haver um prazo mínimo de reflexão para que o casal amadureça o pedido de descasamento, impedindo assim que uma simples briga, motivada por uma explosão emocional de momento, possa por fim ao enlace conjugal?
Seria justa a solução da Emenda, no sentido de considerar o divórcio como o simples exercício de um direito potestativo, não-condicionado, sem causa específica para o seu deferimento?
Certamente, muitos dos nossos leitores concluirão pelo desacerto da Emenda, uma vez que não se afiguraria justo admitir-se o divórcio sem que se fixasse um período mínimo de separação de fato, dentro do qual os consortes pudessem amadurecer a decisão de ruptura.
Mas, neste ponto, caberia uma outra pergunta: é mesmo dever do Estado estabelecer um prazo de reflexão?
Se a decisão de divórcio é estritamente do casal, não violaria o princípio da intervenção mínima do Direito de Família, o estabelecimento coercitivo de um período mínimo de separação de fato? E que período seria este? Um ano? Por que dois?
Em nosso sentir, é correta a solução da Emenda, pois, como dito, a decisão de divórcio insere-se em uma seara personalíssima, de penetração vedada por parte do Estado, ao qual não cabe determinar tempo algum de reflexão.
Se o próprio casal resolve, no dizer comum, “dar um tempo” ou “acabar”, a opção é deles e deriva da sua autonomia privada.
Hoje, então, com o novo sistema, temos o seguinte.
Se JOÃO REGINO se casa com DIVA e, dois meses depois, descobre que ela não é o amor de sua vida (e isso acontece...), poderá pedir o divórcio.
Sem causa específica.
Sem prazo determinado.
Pede, simplesmente, porque não gosta mais.
E há motivo mais forte do que este?
O que não convence é o argumento contrário à solução da Emenda, no sentido de que o não estabelecimento de prazo conduziria a divórcios impensados, e, conseqüentemente, à impossibilidade de retomarem o mesmo casamento.
Tais argumentos não convencem, primeiro, como já dito, pelo fato de que, se a decisão é impensada ou não, ela é do casal, e não do Estado.
E, segundo, porque, se o casal, divorciado, resolve reatar, poderá, querendo, casar-se novamente.
Afinal, não existe, na lei, o estabelecimento de um número mínimo de vezes em que o mesmo casal possa se unir em matrimônio...
4. Conclusões
Nessas breves linhas, cuidamos de passar em revista alguns aspectos fundamentais da nova Emenda do Divórcio, a qual, fundamentalmente, suprime o instituto da separação judicial no Brasil e extingue também o prazo de separação de fato para a concessão do divórcio.
Com isso, o divórcio converter-se-á na única medida dissolutória do vínculo e da sociedade conjugal, não persistindo mais a tradicional dualidade tipológica em divórcio direto e indireto.
Haverá apenas o divórcio: direito potestativo não-condicionado que visa à extinção do vínculo matrimonial sem a imputação de causa específica.
Anotamos, ainda, que as pessoas separadas judicialmente, quando da entrada em vigor da Emenda não se converterão, por um passe de mágica, em divorciadas. E aquelas, cujo processo de separação esteja em curso, terão a opção de adaptarem o seu pedido ao novo sistema do divórcio, conforme, fundamentadamente, discorremos acima.
Diante de todo o exposto, temos que a nova Emenda abraça, mais do que nunca, a perspectiva socioafetiva e eudemonista do Direito de Família, para permitir que os integrantes de uma relação frustrada possam partir para outros projetos de vida.
Ademais, não é papel do Estado criar obstáculos indesejados ou burocracias inúteis na eterna busca da felicidade a que se lança todo ser humano em sua jornada terrena.
A não-intervenção do Estado, aliás, em questões atinentes ao matrimônio, fora sentida inclusive em Estados socialistas, como observa ANTON MENGER, na monumental obra O Direito Civil e os Pobres, com a qual concluímos:
“Esta imparcialidad de la legislación ante El matrimonio, ha hecho que semejante instituición haya ido relativamente poco combatido por el socialismo. Dado el modo de juzgar las cosas, propio del socialismo, que se dirige á una radical transformación de la propiedad privada, á primeira vista parecía que debía esperarse que rechasaze también la segunda instituición fundamental del Derecho Privado: el matrimonio. Realmente, de las tres instituiciones fundamentales de nuestra sociedad civil: propiedad privada, religión y matrimonio, llamadas por Robert Owen la Trinidad de la desgracia (Trinity of Curse), la más combatida por la corriente socialista es la propiedad; la religión es menos, y el matrimonio menos todavía. Este hecho puede servir para confirmar la vedad antes indicada, de que los antagonismos sociales del presente, no han sido provocados sólo por las idéias fundamentales de nuestro orden del derecho privado, sino también, en la misma medida, por su carácter unilateral y parcial aplicación, lo cual es obra casi exclusivamente de los jurisconsultos”.
Deixemos, pois, as questões do coração serem julgadas pelas próprias pessoas envolvidas na relação de afeto.
E não pelo Estado.
BIBLIOGRAFIA
AHRONS, Constance R. e RODGERS, Roy H. Divorced Families – A Multidisciplinary Development View. New York: Norton, 1987, pág. 13.
CHAVES, Cristiano e ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pág. 277.
DIAS, Maria Berenice. Até que enfim..., texto disponível no: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=513 , acessado em 22 de dezembro de 2009
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Divórcio: Alteração Constitucional e suas Conseqüências, disponível no http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=570 acessado em 22 de dezembro de 2009
MENGER, Anton. El Derecho Civil y Los Pobres. Granada: Editorial Comares, 1998, págs. 160-161.
PINHEIRO, Jorge. O Direito da Família Contemporâneo. Lisboa: AAFDL, Lisboa, 2008, pág. 620.
TARTUCE, Flávio e SIMÃO, José Fernando. Direito Civil – Direito de Família, vol. 5. 2. Ed. São Paulo: Método, 2007.
VARELA, João de Mattos Antunes, Direito de Família, citado, págs. 487-488.
VOPPEL, Reinhard, in Kommentar zum Bürgerlichen Geseztbuch mit Einführungsgesezt und Nebengesetzen – Eckpfeiler des Zivilrechts (J. Von Staudinger). Berlin: Sellier, 2008
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