segunda-feira, 26 de novembro de 2007

INTERESSANTE ARTIGO DE JORGE LUIZ SOUTO MAIOR.

Vôo 3459 da TAM
Jorge Luiz Souto Maior[1]


Saímos de Porto Seguro, rumo a São Paulo, às 12h e 30’, do dia 30 de setembro de 2007. Estamos, como dito pelo piloto, em céu de brigadeiro, a 9.000 metros de altura. Neste momento, para passar o tempo pus-me a pensar na hipótese de um acidente (que belo modo de se passar o tempo em um avião!).
Mas, o que me incomodou nesse pensamento não foi a possibilidade de perder a vida, e sim a lembrança de que os aplicadores do direito, posteriormente, poderiam dar guarida plena à pretensão jurídica de meus sucessores, para recebimento de uma indenização, mas talvez não agissem com a mesma presteza com relação à comissária de bordo, que, gentilmente, durante o vôo, aturou vários de nossos pedidos estranhos e serviu-nos a todos com um belo sorriso no rosto, trazendo tranqüilidade nos momentos de turbulência. É que alguns juristas insistem em dizer que o empregado somente receberá indenização por acidente do trabalho (e no caso das comissárias a questão seria tratada como tal) se provar que o empregador incorreu em dolo ou culpa, enquanto que nas relações jurídicas de natureza civil admite-se, sem qualquer oposição, que a pessoa, física ou jurídica, que expõe outro a risco está obrigada a reparar o dano independentemente da prova de culpa ou de dolo.
Verdade que a Lei 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica) prevê, na alínea “b”, do § 2º., do art. 256, que a responsabilidade objetiva do transportador, devida com relação aos passageiros, estende-se “a seus tripulantes, diretores e empregados que viajarem na aeronave acidentada, sem prejuízo de eventual indenização por acidente de trabalho”. Essa responsabilidade, no entanto, nos termos do art. 246, é limitada ao recebimento da indenização de seguro prevista na própria lei (fixada em a 3.500 Obrigações do Tesouro Nacional – OTN pelo art. 257). Não cuida, portanto, de uma efetiva reparação pelos danos morais e materiais experimentados pela vítima ou seus familiares. E aí é que se situa a indevida diferença: para recebimento de uma indenização que repare de forma mais integral os danos sofridos, ultrapassando-se as amarras do art. 246, os passageiros têm sido angariados com a teoria da responsabilidade objetiva, extraída dos arts. 927, parágrafo único[2], e 932, III[3], do Código Civil, que, neste aspecto, suplantaram a previsão do art. 248 da citada lei, que estabelecia que o valor da indenização legal só não seria aplicado se fosse provado que o dano resultou de dolo ou culpa grave do transportador ou de seus prepostos; enquanto isso a complementação da indenização para os tripulantes tem sido conduzida ao tema acidentário, no qual algumas decisões insistem em vincular a responsabilidade do empregador, mesmo em atividades de risco, ao cometimento de culpa ou dolo, em razão do que consta do inciso XXVIII, do art. 7º., da Constituição Federal.
O efeito concreto disso é exatamente aquele a que antes me referi: meus sucessores receberiam, com maior facilidade, a indenização de ordem material e moral pela minha perda do que os sucessores da comissária de bordo, pois estes teriam que provar que a TAM teve culpa no acidente.
Não se trata, portanto, de uma simples questão de posicionamento a respeito da interpretação de uma norma jurídica. Trata-se de um fato da vida, que merece uma resposta jurídica adequada. O direito não se perfaz em si mesmo. O direito é voltado para a vida e só tem sentido quando seja apto a produzir resultados justos. O direito é antes de tudo o promotor da justiça e não o legitimador das injustiças.
É evidente que a diferença de tratamento entre mim e a comissária de bordo é profundamente injusta e, portanto, um jurista autêntico jamais poderia escorar essa situação, perpetuá-la, legitimá-la, utilizando como seu escudo o ordenamento jurídico.
O elemento culpa, ademais, é de prova bastante difícil. Disso resulta, na maioria das vezes, a completa falta de reparação pelo dano experimentado pelo empregado. O fato é que a responsabilidade pelos acidentes é daquele que obtém proveito econômico da atividade socialmente permitida e que exponha outras pessoas a risco, incluídos, por óbvio, os empregados, que são, ao que consta, pessoas também.
Ninguém contesta o fato de que os passageiros de avião têm direito a indenização independente de avaliação de culpa da empresa aérea. Então, por que essa proteção não valeria também para a comissária de bordo? A sua vida por acaso vale menos que a minha?
Relevante perceber que mesmo do ponto de vista jurídico formal, negar ao empregado a responsabilidade objetiva do empregador (sobretudo em atividades de risco) não tem sentido. Havendo norma expressa neste sentido, no artigo 927, do Código Civil, não aplicá-la nas relações de trabalho equivale a demonstrar o desconhecimento de que as normas jurídicas trabalhistas foram, historicamente, fixadas como garantias de caráter mínimo. Aliás, o artigo 7º da Constituição Federal é claro ao definir que aqueles direitos ali elencados não são exaustivos, pois que se deve a eles ajuntar “outros direitos” que visem a melhoria da condição social dos trabalhadores. Assim, a toda evidência, o art. 927, do Código Civil, não está em conflito com a regra do artigo 7º., inciso XXVIII, da CF[4], quando diz o empregado tem direito a receber indenização por acidente do trabalho quando o empregador incorrer em dolo ou culpa[5]. Enxergar um conflito de normas nessa situação é não conhecer a forma de organização do ordenamento jurídico trabalhista e até mesmo permitir que, no mundo real, a vida da comissária de bordo valha menos do que a minha.
Além disso, insta reler o inciso XXVIII, do art. 7º., da Constituição Federal, pois que ali está clara a fixação da responsabilidade objetiva do empregador pelos acidentes do trabalho. A referida norma não prevê que a responsabilidade do empregador por acidente sofrido pelo seu empregado seja apenas decorrente de ato culposo. O que o dispositivo diz, expressamente, é que os trabalhadores têm direito a um “seguro contra acidentes do trabalho a cargo do empregador”. Ora, o que isso significa? Significa que a Constituição garantiu aos empregados a obtenção de uma reparação, pelo recebimento da indenização do seguro, sem se inquirir a respeito de culpa do empregador (com exclusão, por óbvio, da hipótese de ato doloso do empregado). A responsabilidade objetiva do empregador pelo acidente do trabalho, portanto, é inquestionavelmente fixada na Constituição. Esse seguro não é um seguro social, pois, como diz a Constituição, ele será feito ao encargo do empregador e não da Previdência Social, restando devidos, por óbvio, os benefícios previdenciários decorrentes do afastamento involuntário do trabalho em virtude do acidente. Não tendo efetivado o seguro, o empregador arca com a reparação do dano, obviamente. A indenização devida, pela ausência de seguro, não elimina outra, como diz o texto em análise, que será devida decorrente de culpa ou dolo do empregador. Isto é: se o empregador cumpriu todas as suas obrigações pertinentes a eliminar ou minizar os riscos no meio ambiente do trabalho a sua responsabilidade pode ser limitada ao montante do seguro (desde que a indenização seja compatível com a lesão e leve em consideração também o dano moral) ao contrário de outro que não tenha tido os mesmos cuidados, o que se justifica até mesmo por uma questão isonômica no plano dos empregadores.
Mesmo que não se queira ver isso, o fato é que a Constituição prevê direitos aos trabalhadores de caráter mínimo (como dito expressamente no “caput” do artigo 7º), não sendo próprio ao Direito do Trabalho, portanto, negar a aplicação de normas infraconstitucionais que ampliem a proteção jurídica ao trabalhador, até para que a vida da comissária não valha menos que a de qualquer passageiro.
Importante reparar, ainda, que a norma constitucional em questão insere-se no contexto dos “direitos dos trabalhadores”. Assim, não é devido invocá-la como o “direito do empregador” de só se responsabilizar no caso de culpa ou dolo, ainda mais, repita-se, lembrando-se que o direito fixado para o trabalhador não exclui outro que lhe garanta maior proteção.
Mas, de repente, tudo isso me pareceu sem importância, pois o avião pousou tranqüilamente. Já estamos em terra firme de novo. E, ademais, neste exato momento talvez nem estejam ocorrendo acidentes do trabalho por esse Brasil afora na construção civil, nas fábricas, no trânsito etc.
Além disso, nós que costumamos viajar de avião e que criamos os entendimentos jurídicos não temos com o que nos preocupar, afinal, como consumidores, temos a proteção do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.
A insegurança jurídica da comissária de bordo, dos pilotos, dos pedreiros, dos serventes, das secretárias, dos bancários, dos metroviários, dos trabalhadores em minas de carvão, é um efeito natural das coisas como elas são, que não nos toca do ponto de vista de algo que possamos fazer.
Só não nos percebemos que esse tipo de abertura para a ineficácia das normas de proteção da dignidade humana pode, lá adiante, voltar-se contra nós mesmos. Digo isso já em outro vôo: o 2050, que saiu de São Paulo, no dia 06/10, com destino a Belo Horizonte. Desta feita viajo pela Varig, mas não é a Varig, disse-me a atendente na bilheteria (“check in” para os “modernos”). Agora é a “Nova Varig”. Ela, a atendente, é a mesma. Os aviões são os mesmos. Os pilotos, comissários etc., são os mesmos. Mas a empresa, insistem os juristas, é outra, muito embora a própria atendente, com seu sorriso maroto e com conhecimento de causa, demonstre seu ceticismo quanto a isso.
O fato é que toda a segurança fixada para os familiares dos passageiros de avião, protegidos pela responsabilidade objetiva da empresa aérea, pode nada valer se mais tarde, antes da satisfação plena de seus direitos, a TAM se transforme em Nova TAM, ficando com a velha apenas um avião, também velho, evidentemente.
É como diz a sabedoria popular: “a vida dá voltas”; e “aqui se faz, aqui se paga”.
Pois bem, se os homens do direito nos armam essas ciladas, diante da fala do piloto, “Tripulação, preparar para o pouso...”, só resta pedir: que Deus nos ajude!





[1]. Juiz do trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí, SP. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
[2]. “ Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” (grifou-se)
[3]. “Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: (....) III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.”

[4].”XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.
[5]. Segundo o Enunciado 377, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, realizada em Brasília, em outubro/06: "O art. 7º, inc. XXVIII, da Constituição Federal, não é impedimento para a aplicação do disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, quando se tratar de atividade de risco".

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