O TESTAMENTO PARTICULAR DE EMERGÊNCIA OU HOLÓGRAFO SIMPLIFICADO EM TEMPOS DE PANDEMIA.
UMA PROPOSTA LEGISLATIVA
Flávio Tartuce[1]
A pandemia de COVID-19 trouxe grandes impactos para todo o planeta, não podendo o Direito Privado Brasileiro ficar alheio a tais repercussões, o que inclui o Direito das Sucessões e o tema do testamento, que, não obstante a sua rigidez e "dureza técnica", também devem ser influenciados pelas mudanças pelas quais passa a sociedade. Vivemos uma realidade totalmente diferente daquela anterior ao surgimento da pandemia. Chamo a atenção, nesse contexto, para artigo escrito pelo Professor José Fernando Simão, em que analisa as "Realidades A, B e C" e suas repercussões para o Direito de Família, afirmações que, penso, também servem em certa medida para o Direito das Sucessões.
Segundo ele, o dia 13 de março de 2020 foi, para o Brasil, o último dia de uma antiga realidade, que ele chamada de "Realidade A". Nessa, segundo ele, "vivíamos um sonho de abundância e felicidade perpétuas em que o adjetivo INCURÁVEL tinha sido riscado do Dicionário. Na realidade A, o direito de família era o da filosofia dos estetas: belo e fantasioso. Cheio de glamour e de premissas frágeis. Na época de abundância, em que o homo sapiens sapiens se sente eterno, há muito espaço para a filosofia e pela busca da felicidade em um mundo hedonista" (SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora de escolhas trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/1405/Direito+de+fam%C3%ADlia+em+tempos+de+pandemia%3A+hora+de+escol.... Acesso em: 24 abr. 2020).
Porém, essa "Realidade A" foi substituída por uma "Realidade B", que vivemos no momento da elaboração deste artigo, da primeira onda da pandemia no Brasil. Vejamos suas exatas palavras:
"Em 13 de março vivemos o último dia daquela Belle Époque. A realidade A acabou e começou a B, que é temporária, fugaz, mas persiste. O homo sapiens sapiens percebe que, antes de ser feliz, ele precisa sobreviver e a pandemia mostra que a simples sobrevivência deixa de ser óbvia. O ser humano se vê, repentinamente, em contato com sua animalidade por conta da inevitabilidade da disseminação de uma doença mortalmente perigosa.
Problema que se coloca na Realidade B é que as pessoas, vivendo um autoengano (típico do homo sapiens que precisa criar narrativas para sobreviver), assumindo uma negação de que a era da euforia e da abundância acabou (de maneira definitiva?), prosseguem repetindo velhas máximas da Realidade A e, juridicamente, prosseguem repetindo os mantras dessa velha e já extinta Realidade. Vivemos, então, a síndrome do Peru descrita por Taleb (vide citação no início dessas linhas). As nossas crenças precisam ser revistas, ainda que na hora do último suspiro quando o carrasco vier com a faca para decapitar o peru no dia de Ação de Graças.
É compreensível a negação e a dificuldade pela qual passamos. Vivemos com a pandemia o fenômeno chamado de Cisne Negro. A metáfora de Taleb é genial. Havia uma crença europeia arraigada e inquestionável que todos os cisnes eram brancos (Cygnus olor). Isso porque a espécie europeia de cisne efetivamente o é. Essa crença inabalável desmorona quando os europeus se deparam com o cisne australiano (Cygnus atratus), que é negro.
É nesse momento de abalo de crenças, de realidade aparente imutável, que vale ler o pensamento de Taleb: 'O Cisne Negro é um Outlier, pois está fora do âmbito das expectativas comuns, já que nada no passado pode apontar convincentemente para a sua possibilidade. Segundo, ele exerce um impacto extremo. Terceiro, apesar de ser um outlier, a natureza humana faz com que desenvolvamos explicações para sua ocorrência após o evento, tornando-o explicável e previsível'".
Nestes tempos de "escolhas trágicas" e da necessidade de superação de antigos dogmas, ainda da realidade anterior, destaca Simão, por fim, que virá a "Realidade C", cujo início ainda é incerto, mas que não será nem a "Realidade A" e nem a "Realidade B", pois viveremos um novo mundo depois de essa crise pandêmica passar, assim como ocorreu em outros momentos da História.
Pois bem, na "Realidade B", é preciso pensar em mudanças efetivas para o Direito Privado, o que é almejado pelo Projeto de Lei originário do Senado Federal n. 1.179/2020, proposto pelo Senador Antonio Anastasia, após uma iniciativa do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A projeção cria um "regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)"; e contou com a minha singela participação, ao lado de outros juristas, liderados pelos Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo, que assessoraram nos trabalhos legislativos. Cria-se um "miniCódigo Civil" para resolver questões emergenciais da "Realidade B", que vão desde a prescrição, passando pelos contratos e chegando-se ao Direito de Família e das Sucessões. Sobre sucessões, há apenas um dispositivo, que suspende os prazos de abertura e encerramento dos inventários, previstos no art. 611 do Código de Processo Civil (art. 16 da proposta legislativa).
Na ocasião de sua elaboração, ao lado justamente de José Fernando Simão, e de Maurício Bunazar, fizemos algumas sugestões de aperfeiçoamento e novas proposições, em conjunto, como a seguinte, que criaria um regime de testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia:
"Art. Para efeitos de aplicação do artigo art. 1.879 do Código Civil considera-se circunstância excepcional a pandemia de COVID19.
§ 1º. O disposto neste artigo aplica-se aos testamentos elaborados a partir do dia 20 de março de 2020.
§ 2º. Sob pena de caducar, o testamento elaborado nestas condições deverá ser confirmado pelo testador na presença de três testemunhas em até 90 dias contados da data da cessação da pandemia".
Conforme o comando citado na proposição, "em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz" (art. 1.879 do Código Civil). O objetivo, como se percebe, é facilitar o testamento particular em tempos de pandemia, sujeitando-o ao regime emergencial já previsto na codificação privada.
Sobre o prazo de noventa dias, segue-se em parte o teor do Enunciado n. 611 da VII Jornada de Direito Civil, segundo o qual “o testamento hológrafo simplificado, previsto no art. 1.879 do Código Civil, perderá sua eficácia se, nos 90 dias subsequentes ao fim das circunstâncias excepcionais que autorizaram a sua confecção, o disponente, podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias”. Sugere-se, portanto, a aplicação analógica do prazo previsto para as formas extraordinárias de testar, nos termos do art. 1.891 do próprio Código Civil: “caducará o testamento marítimo, ou aeronáutico, se o testador não morrer na viagem, nem nos noventa dias subsequentes ao seu desembarque em terra, onde possa fazer, na forma ordinária, outro testamento”.
O prazo de noventa dias, portanto, traz maior segurança a respeito do conteúdo da última manifestação da vontade do autor da herança. Apesar de criar certa burocracia, afasta as captações indevidas e dolosas da vontade do testador. De todo modo, justamente diante dessas possibilidades de influências de terceiros com fins ilegítimos, a proposição acabou por não ser acatada quando da elaboração do Projeto de Lei n. 1.179/2020, sendo justificados os receios, em um primeiro momento, no meu entender.
De toda sorte, entendo que a proposta pode seguir por outro caminho, no Congresso Nacional, sendo cabível o seu eventual aperfeiçoamento. Ademais, mesmo sem uma lei nesse sentido, em julgamentos futuros, a pandemia de COVID-19 poderá ser enquadrada como circunstância excepcional, para o fim de se admitir a declaração de vontade, nos termos do que consta do art. 1.879 do Código Civil. Além disso, será viável, juridicamente, aplicar o teor do que consta do Enunciado n. 611 da VII Jornada de Direito Civil, com a possibilidade de confirmação do testamento em noventa dias, sob pena de caducidade. Como fim da pandemia, deve-se considerar a declaração feita pela Organização Mundial da Saúde, ainda com data incerta.
Como palavras finais, não se pode negar que uma norma jurídica tratando do tema traria maior certeza para a tese que ora se propõe, devendo a temática ser debatida pela comunidade jurídica nacional nestes duros tempos, de "escolhas trágicas".
[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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