COVID-19 e contratos comerciais: força maior como medida terminativa e revisional
Bianca Kremer
Advogada, professora e pesquisadora. Doutoranda em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito Constitucional pela UFF. Bacharel em Direito pela UFRJ. Professora no Departamento de Direito Privado da UFF. Coordenadora acadêmica no Instituto Dannemann Siemsen (IDS).
O aumento vertiginoso do número de casos de coronavírus em todo o mundo (Sars-Cov-2), levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a decretá-lo uma pandemia global. Esse anúncio resultou em medidas de contenção em todos os países por meio de um pacote de diretrizes, e na adoção de mecanismos emergenciais para controle da doença infecciosa COVID-19. As medidas geraram consequências no fluxo de circulação de pessoas, afetando o consumo e gerando tanto a redução da atividade econômica, quanto incertezas em relação ao tempo de duração e a intensidade com que seriam adotadas.[1]
Diversos setores da economia encontraram dificuldades em cumprir contratos em razão dos impactos das medidas de polícia administrativa (restrições de funcionamento, suspensão temporária de atividades, etc.). Empresas têm se mobilizado no sentido de adotar medidas de notificação das suas impossibilidades a fornecedores e parceiros, com fundamento no instituto da força maior. Afinal, pessoas físicas ou jurídicas poderão descontinuar contratos já firmados com base em força maior? Como interpretar esse instituto na circunstância das imposições estatais às iniciativas privadas para contenção ao COVID-19?
O instituto da força maior é apresentado no código civil, no capítulo destinado ao inadimplemento das obrigações. É estabelecido no Art. 393 que o devedor não responde por prejuízos resultantes de caso fortuito e força maior, se não houver por eles se responsabilizado expressamente. Além disso, aduz que força maior e caso fortuito são verificados a partir da impossibilidade de evitar ou impedir os efeitos de um fato necessário. Em termos gerais, a força maior representa uma excludente de responsabilidade contratual, e sua arguição afasta a configuração de inadimplemento.
Tanto a força maior quanto o caso fortuito excluem o nexo causal, que figura entre um dos quatro pressupostos da responsabilidade contratual.[2] A prova de sua incidência incumbe ao devedor, de modo que são duas as potenciais consequências: (i) a primeira é a resolução[3] do contrato, gerando a isenção de responsabilidade pelo devedor; (ii) a segunda é o retardamento do cumprimento da obrigação. Para que qualquer uma delas seja plausível, é fundamental que o evento em questão seja imprevisível ou irresistível.
O “fato do príncipe” é uma modalidade de força maior que decorre de imposição estatal imprevista e irresistível, que onera substancialmente o funcionamento de um empreendimento ou a execução de um contrato.[4] Quando o Estado impõe uma conduta que causa um dano, positiva ou negativa, o STJ entende que ocorrem dois fenômenos: (i) a viabilidade de responsabilização do Estado pelo evento danoso; (ii) o rompimento do liame necessário entre o evento danoso e a conduta dos particulares, de modo a configurar em disputas privadas a nítida hipótese de força maior.[5] Com o “fato do príncipe”, o cumprimento da obrigação fica impedido em razão de um fato não controlável pelo agente, portanto imprevisível e irresistível, o que exclui também sua responsabilidade por tornar o cumprimento da prestação impossível.
O surto do coronavírus permitiria às partes do contrato adiar o seu desempenho, não o executar, ou renegociar os seus termos com base no instituto da força maior? A princípio, sim. Mas é recomendável atenção para que simples dificuldades não sejam utilizadas com o argumento de impossibilidade para fins de extinção da obrigação ou inexigibilidade de seu cumprimento. O fechamento obrigatório de divisas estaduais, instituições de ensino públicas e privadas e do comércio, à exceção de serviços essenciais, são fatos relevantes para configurá-lo. Mas é primordial, para tanto, aferir a impossibilidade do cumprimento de uma obrigação nos contratos em virtude da pandemia. Para Sergio Cavalieri Filho, a impossibilidade tem conteúdo jurídico indeterminado, e deve ser precisada pelo intérprete no momento da aplicação da norma “com base nas regras de experiência, subministradas pela observação do que ordinariamente acontece”[6], e sustenta que a noção de impossibilidade merece flexibilização para abranger tanto a impossibilidade absoluta quanto a relativa, pois em diversos contratos a possibilidade material de cumprimento de uma prestação principal pode subsistir.
Alguns autores têm se posicionado no sentido de que contratos que perderam sua utilidade antes do vencimento, ou cujo objeto se tornou impossível, têm na pandemia do coronavírus substrato para quebra antecipada não culposa de um contrato.[7] Carlos Elias de Oliveira designa nessas situações o teste da vontade presumível em que, se determinada situação fosse previsível, as partes gostariam de uma cláusula envolvendo tal hipótese em seu contrato. Considerando que não é possível supor todos os potenciais incidentes que trariam prejuízo a um contrato, nem inserir todas as excepcionalidades de maneira explícita na forma de cláusulas, a regra da vontade presumível permite que situações absolutamente imprevisíveis sejam passíveis de solução à luz da razoabilidade.
O Art. 393 do código civil expressa que, não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre em mora. Para Cavalieri Filho, apenas caracterizam impossibilidade casos que, embora não configurem impossibilidade absoluta, produzem para o devedor dificuldade que equivale ao impossível. Ao contrair uma obrigação por meio de uma diligência, ao devedor se impõe a obrigação de suportar mais ônus do que o esperado em algumas situações pontuais, pois a lei o obriga a certo grau de diligência e previdência, sem lhe impor onerosidade excessiva para cumpri-la a todo e qualquer custo. Há certa dificuldade em determinar os limites entre suportar um ônus adicional e adquirir prejuízos extravagantes. Essa questão, por ser matéria de fato e não de direito, fica sujeita ao arbítrio judicial.[8] Um acontecimento extraordinário ou imprevisível só faz sentido juridicamente dentro da aferição específica de onerosidade excessiva para o cumprimento de um contrato.[9]
Acontecimentos não podem ser classificados de forma teórica e genérica como “força maior” para, a partir da pandemia do coronavírus e seus efeitos, todos os contratos a ele relativos serem extintos ou revistos. Antes de tudo, é necessário verificar cada contrato individualmente e o que ocorreu em cada relação contratual para, então, se buscar a causa do inadimplemento. Nessa linha, Anderson Schreiber entende que existe um erro metodológico grave em qualificar acontecimentos em teoria na esfera contratual. Somente à luz da impossibilidade da prestação específica de um contrato é que será tecnicamente plausível cogitar a hipótese de caso fortuito ou força maior para liberação do devedor.[10]
Para Nelson Rosenvald, qualquer pessoa que não possa cumprir suas obrigações contratuais por razões extraordinárias como guerras, revoluções, explosões, greves, bloqueios de portos, ações do governo ou desastres naturais pode declarar força maior.[11] Ao se posicionar sobre a emissão dos chamados “FM Certificates” pela China como medida de aplicação contratual do instituto da força maior[12], Rosenvald sustenta que, a despeito das diferenças entre a cultura e o sistema jurídico chinês e brasileiro, o referido selo estatal é demasiado genérico para eximir o contratante de cumprir o que fora pactuado. Além disso, não é suficiente para encobrir eventual pedido de indenização pela contraparte. Para a elaboração de uma cláusula de força maior específica, tudo dependerá do conteúdo da gestão de riscos levada a efeito de forma prévia pelas partes.
A partir dos posicionamentos da doutrina e da jurisprudência, afinal, o surto do coronavírus pode ou não ser enquadrado como acontecimento imprevisível ou extraordinário para justificar medidas terminativas ou revisionais em contratos? A despeito de o direito contratual contemporâneo ser lido, aplicado e interpretado à luz das normas e princípios constitucionais, o contrato permanece vocacionado ao cumprimento para o credor em um primeiro momento. O princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) preconiza que o que as partes estipularem na avença tem força de lei, o que constrange os contratantes ao cumprimento do conteúdo completo do negócio jurídico[13]. À luz dos princípios constitucionais, o pacta sunt servanda não é apenas relativizado pelos princípios da função social do contrato e das boa-fé objetiva. Ele também adquire força coercitiva com base nos mesmos princípios, à luz de cada caso concreto. E isso não pode deixar de ser observado, sob pena de violação à segurança jurídica e esvaziamento da própria função social do contrato, que tem dupla eficácia: interna (entre as partes) e externa (para além das partes).
Analisar a incidência de força maior em cada modalidade contratual, individualmente, coíbe as intituladas cláusulas antissociais ou abusivas, as quais enunciam ilicitude, excesso contratual e desrespeito à finalidade social.[14] Mesmo nos casos concretos em que houver impossibilidade ou excessiva onerosidade, não será necessariamente a pandemia per si o evento que afetará o contrato e ocasionará o inadimplemento. Existe uma diferença entre o impacto nos contratos gerados pelos efeitos da pandemia, e os impactos nos contratos gerados por restrições adotadas pela Administração Pública como resposta para contenção à pandemia.
O que se deve estar no epicentro da discussão é o impacto econômico direto sobre as prestações do contrato especificamente, e o seu fato causador. Apenas a partir daí será possível vislumbrar o fundamento jurídico que possibilite medidas terminativas ou revisionais em um contrato. O princípio da função social do contrato abrange a preservação das relações sociais e seus efeitos econômicos (eficácia externa), e isso não deve ser desconsiderado.
A perspectiva metodológica civil-constitucional tem eficácia direta nas relações interprivadas e também disciplina conteúdo exclusivamente patrimonial. No entanto, sua aplicação não se traduz em soluções abstratas para o descumprimento de contratos no modo Deus ex machina, ainda que em cenários de crise. Antes de qualquer pleito revisional, é importante não subestimar a atenção à probidade e boa-fé trazidas pelo Art. 422 do Código, ainda mais considerando o funcionamento restrito do Poder Judiciário no momento atual para atender situações emergenciais. O Direito Civil preserva suas fundações na cooperação mútua e dever de lealdade negocial, independente das circunstâncias fáticas. Isso deve não deve ser esquecido quando em pauta eventual continuidade, ou não, de determinados contratos ou cláusulas contratuais, ainda que motivadas por uma pandemia global.
Portanto, contratos que não detém cláusula resolutiva expressa nesse sentido, e não operem de pleno direito, deverão ser analisados individualmente e dependem de interpelação judicial para terem seus argumentos de nulidade/ anulabilidade parcial ou total admitidos. O afastamento de eventuais perdas e danos e demais incidências moratórias dependerá da análise de cada caso concreto. Caso sejam plausíveis as impossibilidades de cumprimento das prestações, ou a excessiva onerosidade, devem ser averiguados com cautela os vínculos diretos entre o fato causador e o inadimplemento. Isto porque, a depender dos desdobramentos, serão produzidos efeitos diferentes na cadeia de responsabilidade civil por parte dos agentes envolvidos.
Referências bibliográficas
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[1] MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais Online, V. 1015.2020, Mai 2020, DTR/2020/3972.
[2] Dentre os pressupostos da responsabilidade contratual constam: (i) a existência de um contrato válido; (ii) a inexecução do contrato; (iii) o dano; e (iv) o nexo causal. Cf. AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, v. I e II.
[3] A expectativa das partes quando da celebração de um contrato é que ele produza efeitos desde a sua celebração até sua extinção natural, quando o contrato se perfaz por meio do cumprimento do pactuado. Caso uma das partes descumpra sua obrigação nos termos do contrato é configurado seu inadimplemento, de modo que o devedor estará em mora para com o credor e poderá responder por eventuais perdas e danos. O código civil prevê três hipóteses de desfazimento do contrato sem o cumprimento do pactuado: (i) resolução: dissolução do contrato por inadimplemento. Nessa hipótese, se houver uma cláusula resolutiva no contrato, a parte lesada pelo inadimplemento (o credor) pode pedir a resolução do contrato sem necessidade de interpelação judicial, sem prejuízo de indenização por perdas e danos. (ii) rescisão: invalidação do contrato por nulidade ou anulabilidade. Não basta dizer que uma cláusula é inválida, é importante saber se essa invalidade tornaria nulo o contrato todo, ou apenas a cláusula (nulidade absoluta), ou se essa invalidade os tornaria anuláveis (nulidade relativa). (iii) resilição: simples desfazimento do contrato por manifestação de vontade da parte: um direito potestativo. A resilição se dá por meio de um ato jurídico denominado denúncia. Pode ser bilateral ou unilateral, sempre com efeitos ex nunc, i.e., seus efeitos não retroagem e valem a partir da data da tomada de decisão. Enquanto a resolução bilateral (distrato) deve obedecer às mesmas formalidades impostas pela lei à celebração do contrato, a resilição unilateral só é permitida quando autorizada por lei e mediante prévia comunicação da parte (ex personae).
[4] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 13 Ed. São Paulo? Atlas, 2019, p. 389.
[5] REsp 1280218-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellize, 3ª T., j. 21-6-2016, DJe 12-8-2016.
[6] CAVALIERI FILHO, Sergio. Op cit. p. 390.
[7] OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Migalhas. 16 mar 20. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/3/3904C2C4DAEF07_Coronaequebraantecipadadocontr.pdf>. Acesso em 20 mar 20.
[8] ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 4 ed. São Paulo: Saraiva, p. 313.
[9] SCHREIBER, Anderson., Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 202 e ss.
[10] SCHREIBER, Anderson et al. Devagar com o andor: coronavírus e contratos – importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas. 23 mar 20. Disponível em: < https://m.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional>. Acesso em 23 mar. 20.
[11] ROSENVALD, Nelson. Os impactos do coronavírus na responsabilidade contratual e aquiliana. Blog Nelson Rosenvald. 06 mar 20. Disponível em: < https://www.nelsonrosenvald.info/single-post/2020/03/06/OS-IMPACTOS-DO-CORONAVIRUS-NA-RESPONSABILIDADE-CONTRATUAL-E-AQUILIANA>. Acesso em 20 mar 20.
[12] Diversas empresas passaram a declarar força maior em resposta às dificuldades enfrentadas pelo novo vírus. Em uma tentativa de blindar empresas perante pretensões de inadimplemento, o governo chinês passou a emitir os chamados “FM Certificates”.
[13] TARTUCE, Flavio. Op. cit. p. 666.
[14] STJ, REsp 1.073.595/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23.03.2011 – Informativo n. 467 do STJ.
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