Os desafios da negociação: notas sobre habilidades necessárias à prática contratual (não apenas) em tempos de crise
Andre Luiz Arnt Ramos. Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Pesquisador visitante junto ao Instituto Max Planck para Direito Comparado e Internacional Privado (Hamburgo, Alemanha). Membro do Grupo de Pesquisa Virada de Copérnico. Associado ao Instituto dos Advogados do Paraná e ao Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil. Co-fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Professor da Universidade Positivo. Advogado.
Marcos Catalan. Doutor summa cum laude em Direito pela Faculdade do Largo do São Francisco, Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Professor no PPG em Direito e Sociedade da Unilasalle. Professor no curso de Direito da Unisinos. Visiting Scholar no Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2015-2016). Estágio pós-doutoral na Facultat de Dret da Universitat de Barcelona (2015-2016). Professor visitante no Mestrado em Direito de Danos da Facultad de Derecho da Universidade da República, Uruguai. Professor visitante no Mestrado em Direito dos Negócios da Universidade de Granada, Espanha. Professor visitante no Mestrado em Direito Privado da Universidade de Córdoba na Argentina. Editor da Revista Eletrônica Direito e Sociedade. Líder do Grupo de Pesquisas Teorias Sociais do Direito e Cofundador da Rede de Pesquisas Agendas de Direito Civil Constitucional. Advogado parecerista.
Uma tempestade, evento de grau 10 na Escala de Beaufort, tem, como efeitos esperados, arrancamento de árvores e danos estruturais a construções. Neil Peart, falecido baterista e letrista do power-trio Rush, nela buscou inspiração para escrever a célebre Force Ten. A canção começa com o entoar de verso que bem se amolda às respostas que começam a se desenhar frente aos destrutivos impactos da Pandemia de COVID-19 nas relações contratuais: “Though times demand tought talk, demand tough songs, demand tough hearts”.
Tempos como os que vivemos ensejam prognósticos pouco animadores acerca do futuro próximo. É quase improvável que alguém não perceba que quase todos os cenários delineados no porvir, em especial, diante de medidas tão drásticas quanto necessárias visando a preservação do maior número possível de vidas humanas, sugerem um mundo no qual as pessoas caminham com os olhos vendados à beira de precipícios descomunais. É, pois, necessário firmeza, como vaticina Peart. Mas esses tempos também clamam por solidariedade e pela cunhagem de soluções consensuadas para as tragédias dos contratos, das relações contratuais e dos contratantes.
Tal qual se passa nas célebres telas de Edvard Munch, o desespero atado ao desemprego, à bancarrota ou, simplesmente, à constitucionalmente questionável redução dos salários dos trabalhadores brasileiros ecoa assustadora e silenciosamente estimulando a dogmática jurídica a antecipar quadros retratando imagens que às vezes oscilam entre o atraso e a mora e em outras transitam entre a impossibilidade absoluta e o inadimplemento obrigacional. Nos últimos casos, aliás, ligando tais situações jurídicas à possibilidade de resolução dos contratos e, eventualmente, a sua cumulada com a pretensão a perdas de dados, a depender do suporte fático concreto. As limitações e privações impostas pelo Poder Público ao lado da mudança radical da conjuntura na qual incomensuráveis negócios foram desenhados, por sua vez, são teorizadas como hipótese que hão de dar vazão a número semelhante de contratos clamando por revisão.
É preciso vislumbrar, entretanto, que Judiciário hodiernamente se encontra sobrecarregado[1] e, ainda, que muito provavelmente, em um mundo bastante mais pobre, sentenças e acórdãos não serão transformadas no capital necessário ao cumprimento das obrigações. E, nesse esteira, como deixar o planeta não parece ecoar enquanto alternativa factível, talvez, sensibilidade, solidariedade e esforços sem precedentes na história da humanidade possam auxiliar a todos a compreendermos a importância de revisitar práticas reproduzidas mecanicamente de forma a – na iminência de conflitos – buscarmos todos nós estimular sua prevenção e soluções dialógicas.
A abertura para desenlaces a serem obtidos sem a necessidade de sujeição à violência estatal, aliás, parece ser tanto (a) a mais adequada postura econômico-pragmática a ser assumida nesse instante (b) como o melhor remédio para a angústia depositada no turbilhão de incertezas que colore e seguirá a colorir, por algum tempo, o porvir de cada um dos brasileiros.
Daí que, para muito além das respostas dogmáticas antevistas linhas atrás e os remédios por ela ofertados – (a) a revisão que trata e garante alguma sobrevida aos pacientes, mas não necessariamente faz mais que isso, (b) a resolução contratual que mata aquele que a procura, mormente, em tempos de escassez ou, ainda, (c) medidas excepcionais de interferência em sua eficácia – parece que vivemos um tempo no qual é preciso pensar fora da caixa, eleger outros caminhos e, com isso, evitar que a crise do Sistema de Saúde que avança sobre a Economia se espraie, também, pelo combalido Sistema de Justiça.
Em tal contexto uma das vias que devem ser percorridas foi traçada por Anderson Schreiber e pavimentada com aspectos afetos ao Soft Law e a experiências estrangeiras. Trata-se do dever de renegociar[2], a incumbência de envidar esforços, sob o pálio da colaboração e da lealdade decorrentes da boa-fé objetiva, para redimensionar o contrato e a relação contratual, rompendo o jugo de pactos fáusticos[3].
Mas, cabe perguntar: sabemos negociar?
Operadores do Direito são forjados para o conflito. Aprendemos, na vida e nos bancos universitários, que:
(a) a responsabilidade é uma resposta do Direito ao mau uso da liberdade, um castigo para aqueles cuja conduta possa ser qualificada como um pecado normativo,
(b) a Ursprung, a partícula originária e fundamental do Processo é a lide, pensada nos termos que foram delineados por Chiovenda,
(c) credor e devedor têm interesses antagônicos e, ainda,
(d) a sentença judicial resolve o mérito e pacifica o conflito, embora seja ela mesma, nada menos que um relampejar da violência institucionalizada.
Negociar e renegociar, postular e ceder, ofertar e pedir, direta ou mediatamente, são verbos que exigem inconteste esforço de ruptura com todo esse arcabouço e, em alguma medida, com aquilo que somos. Caso contrário, pode-se incorrer no erro de pensar o giro aqui proposto como mais uma forma de desafogar uma Instituição que há algum tempo não pode respirar.
Mais que isso e, ao contrário do que se pensa, negociar não é uma habilidade inata ao ser humano. Ela se parece mais com a paternidade: embora seja algo que sempre houve e sempre haverá, necessariamente, ela envolve e exige, pede e impõe enorme esforço de aprendizado. O medo do desconhecido não pode impedir a revisitação de muitas das certezas que temos sobre o que é certo e errado, bom ou ruim.
Negociar, especialmente em tempos de crise – ou, para tempos de crise, eis que, como a Dorothy do Mágico Oz, fomos tragados por eles em nossa infância e jamais vivenciaremos o momento em que viermos a ser expelidos –, impõe estudar. Demanda, também, muita, mas muita, paciência.
Propomo-nos, então, a delimitar quatro singelos pontos que consideramos importantes na formação de operadores do Direito capacitados para atuar em negociações de sucesso:
1. Ouça com atenção e de forma proativa. E com muito respeito pela condição pessoal da outra parte. O negociador, ao entabular ou revisitar um contrato, precisa ouvir para distinguir, em si e no outro, posições e interesses.
2. Saiba e entenda o que quer (posição) e por que quer (interesse). Às vezes, abrir mão de uma dada posição pode significar oportunidade para realização em maior medida do interesse que guia a negociação. Noutras, na verdade, quase sempre, os interlocutores têm posições aparentemente opostas, mas interesses comuns. A segunda lição, portanto, é saber distinguir posições de interesses.
3. Além disso, o negociador deve refletir sobre seus interesses e posições e ouvir atentamente à narrativa e aos porquês de seu interlocutor para identificar o BATNA de cada um. BATNA é um acrônimo muito utilizado no estudo das negociações. Significa “melhor alternativa a um acordo negociado”. Quer dizer: onde e como estão ou ficam as partes se não sentarem à mesa para negociar com seriedade. Tanto maior o poder de negociação de uma parte quanto mais forte for seu BATNA. Em tempos de crise e de inviabilidade real de cumprimento de prestações, é difícil visualizar bons BATNAs. Há, pois, mais espaço para barganha. Entender o seu BATNA e saber investigar o do outro é, então, a terceira lição.
4. Finalmente, o negociador precisa ter alguma familiaridade com estudos de processos cognitivos (e.g.: os conduzidos pela Economia Comportamental). É preciso conhecer um pouco sobre como decidimos (e compreender que fazemos más escolhas), bem assim que sempre haverá alguma medida de assimetria informacional. É preciso lembrar sempre da importância do priming (estímulo X interfere na percepção ou no processamento do estímulo Y) e do anchoring (a primeira informação de uma séria influencia a percepção ou o processamento de todo o restante dela), bem assim de outros vieses cognitivos. Mais ainda: é preciso cuidado com os gêmeos malignos da microeconomia (seleção adversa e risco moral), pois sempre estarão à espreita dos negociadores. E um agente mais sabido ou ardiloso pode (vai!) se valer deles para incrementar seus resultados. A quarta e última lição, destarte, é ler e estudar sobre comportamento humano e tomada de decisões, pois não somos assim tão perfeitamente racionais.
Esses conhecimentos e habilidades contribuem sobremaneira para o desenho de soluções originais e satisfatórias a conflitos presentes ou futuros. Eles podem ser muito úteis não só no processo negocial, como também na redação dos instrumentos contratuais e no enfrentamento de eventuais desajustes supervenientes. Claro, não dispensam que estejamos, também, prontos para o embate – o que exige amplo domínio das categorias e instrumentos mais usuais no Direito. Mas são, sem dúvidas, um importantíssimo recurso para evitá-lo. Afinal, o advogado é o primeiro artífice da solução do caso, boa ou má, por qualquer caminho que venha a ser eleito.
[1] Relatório Justiça em Números 2018.
[2] SCHREIBER, A. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. 2ª Tiragem. São Paulo: Saraiva, 2018.
[3] O tema impõe a leitura de: OST, François. Tempo e contrato: crítica ao pacto fáustico, Revista Eletrônica Direito e Sociedade, Canoas, v. 6, n. 1, 93-115, maio 2018.
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