Mônica Bergamo e a Prova do Esforço Comum - Parte 1
Por José Fernando Simão. Professor Associado do
Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Advogado e
consultor jurídico.
Publicado no
Jornal Carta Forense.
Recentemente, a
famosa colunista de um dos maiores jornais do país, a Folha de São Paulo, deu
uma notícia que causou furor no mundo jurídico. Mônica Bergamo, em 1 de
setembro de 2015, assim afirmou:
“O STJ (Superior
Tribunal de Justiça) decidiu que a partilha do patrimônio de casal que vive em
união estável não é mais automática. Agora, cada convivente tem que
provar que contribuiu “com dinheiro ou esforço” para a aquisição dos bens”.
A frase solta e
descomprometida gerou muita controvérsia. Meu amigo e colega, Professor Flávio
Tartuce, chegou e enviar e-mail à colunista para indicar que a informação
continha equívocos.
A questão da
partilha de bens na união estável foi por mim tratada em longo artigo que
produzi para a obra em homenagem ao Professor Álvaro Villaça Azevedo publicada
pela Editora Atlas.
Algumas notas
históricas são necessárias para a compreensão do tema.
I – Do concubinato
à união estável: da inexistência de direito aos concubinos ao condomínio
(1996).
O Código Civil de
1916 admitia um único modelo familiar, qual seja, a família legítima advinda do
casamento. A concubina, como a amante do homem casado, quando mecionada em
dispositivos legais, não tinha quaisquer direitos ou, ao contrário, a lei
vedava que bens lhe fossem transmitidos (doações ou herança).[1]
Desta forma, não
se reconhecia a possibilidade de uma pessoa solteira viver com outra, também solteira,
e que tal união contasse com proteção jurídica. Ademais, conceder direito às
famílias ditas ilegítimas seria desprestigiar a instituição do casamento.
A noção de moral e
de direito acabavam por se misturar. Assim, negavam-se direitos aos concubinos
sob o fundamento de se tratar de um ato imoral que não pode ser protegido nem
dele decorrer vantagens (RT 165/694).
Depois de um longo
e persistente esforço da doutrina em criar a categoria do concubinato puro
(pessoas não impedidas de se casar) e sua distinção quanto ao concubinato
impuro (pessoas impedidas de se casar)
Assim, a doutrina
e jurisprudência passaram a admitir direitos pessoais e patrimoniais ao
concubinos, desde que se tratasse de concubinato puro. Gradativamente,
abandona-se a nomenclatura concubino (sendo o concubinato puro) e adotam-se os
termos convivente ou companheiro[2]. Nas decisões
mais antigas, o termo concubino ainda é utilizado, mas este é abandonado nas
decisões mais recentes[3].
Um dos primeiros e
importantes passos de proteção da companheira (e não falamos dos companheiros,
pois, à época, era a mulher que ingressava em juízo pleiteando direitos), foi a
admissão de uma indenização pelos anos de serviços prestados. Nesse sentido:
“É justa a
reparação dada à mulher, que não pede salários como amásia, mas sim pelos
serviços caseiros.” (RT 181/290).
Pode parecer
aviltante o conteúdo indenizatório destas decisões, mas, na realidade,
representam um enorme avanço, já que, antes disso, a companheira terminava uma
relação duradoura (muitas vezes de uma vida), sem qualquer direito ou amparo
patrimonial[4].
Curioso o teor das
decisões que assim afirmavam:
“Embora a mancebia
constitua união ilegítima, nada impede reclame qualquer deles, do outro, a
retribuição por serviços estranhos à relação concubinária” (RT 260/427).
Na realidade, pelo
texto do julgado, percebe-se a preocupação em se esclarecer que a retribuição
não englobava os préstimos sexuais (serviços estranhos à relação concubinária),
sob pena de se admitir algo semelhante à prostituição.
A vantagem destas
decisões é que, no sistema do Código Civil de 1916, a prescrição era vintenária
(art. 177, caput), e, assim, sendo a união longa, a companheira poderia cobrar
a indenização por até 20 anos, obtendo um valor substancial ao fim da ruptura.
Até meados da
década de 1980 eram, freqüentes as decisões nesse sentido.
Entretanto, a
solução não era suficiente. Isso porque, a companheira recebia indenização, mas
não tinha qualquer participação sobre o patrimônio adquirido, no mais das
vezes, pelo companheiro e registrado em seu nome (no caso de imóveis, por
exemplo).
A solução para a
questão, ou, pelo menos, seu encaminhamento se dá com a Súmula 380 do STF, que
data de 3 de abril de 1964:
“Comprovada a
existência de sociedade de fato entre os concubinos[5], é cabível sua
dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
A Súmula é fruto
de intenso trabalho doutrinário e jurisprudencial pelo qual se reconheceu a
possibilidade de a companheira participar do patrimônio adquirido pelo outro
companheiro em decorrência do esforço comum. Reconhece-se, assim, uma sociedade
de fato entre companheiros.
O princípio
basilar desta orientação é a vedação ao enriquecimento sem causa. Cabe então
indagarmos: como compreender a noção de “esforço comum” que gera a sociedade de
fato?
A interpretação da
expressão, à época da edição da Súmula, é que esforço comum significava efetiva
participação de ambos os companheiros na construção de um patrimônio. Haveria
verdadeira affectio societatis. Assim, o simples concubinato não
gerava efeitos patrimoniais, sendo necessária a prova da sociedade de fato.
E se a companheira
trabalhou no lar cuidando da família, mas não teve contribuição econômica na
aquisição dos bens? A conclusão que se chegava era que não havia o esforço
comum e, portanto, inexistente a sociedade de fato:
“Se os bens foram
adquiridos na constância do concubinato com esforço comum, deve a concubina
receber a metade, como decorrência de uma sociedade de fato que realmente
existiu; no caso, todavia, de não ter a companheira senão zelado pela casa, os
serviços devem ser pagos.” (RT 210/217)
Explica o Prof.
Álvaro Villaça Azevedo que, malgrado essa torrencial jurisprudência,
entendia-se, muito antes da Constituição Federal de 1988, que, existindo
concubinato puro, bastava a convivência concubinária para que se admitisse o
condomínio, nascido do esforço comum, “pois não se uniram eles sob mera
sociedade de fato, em qualquer empresa, mas com o intuito de constituírem
família”[6] (2002:211).
Para finalizarmos
a questão, deve-se frisar que sociedade de fato não gera, como efeito
necessário, a partilha dos bens em 50% para cada companheiro. Assim, provado
que o companheiro contribuiu economicamente mais que a companheira, a partilha
será feita em percentual desigual.
“Assim como nas
sociedades comerciais, variável pode ser a cota dos sócios, nas sociedades de
fato os haveres de cada sócio podem ser desiguais” (RT 552/184).
Em resumo, ainda
que a indenização por serviços prestados fosse substancialmente melhor que a
negativa de direitos, ainda que a partilha do patrimônio, mediante prova do
esforço comum, fosse melhor que a indenização por serviços prestados,
percebe-se a insuficiência de tratamento no tocante aos efeitos patrimoniais da
união estável.
[1].
“Art.248. A mulher casada pode livremente:
IV - Reivindicar
os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo marido à concubina (art.
1.177).”
“Art. 1.177. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode
ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até 2 (dois)
anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts. 178, § 7°, VI, e 248,
IV).
Art. 1.719. Não podem também ser nomeados herdeiros, nem legatários:
III- a concubina do testador casado”.
[2].
Etimologicamente, companheiro deriva de cum panem, ou seja, com o
pão. Os companheiros dividem alegrias e tristezas e assim, simbolicamente,
dividem o pão.
[3]. No
presente texto, já utilizaremos companheiros para o concubinato puro. Frisamos
que, após 1988, inclusive, que não se pode mais utilizar o termo concubino para
as pessoas que formam família por meio de união estável.
[4]. Não
nos esqueçamos que o direito a alimentos entre os companheiros só foi
pacificamente admitido no Brasil a partir de 1994, com a edição da lei
8.971/94. A lei só entrou em vigor no início 2005.
[5].
Concubinos que conviviam em concubinato puro, ou seja, os companheiros, na
atual linguagem.
[6].
Realmente, os escritos do Prof. Álvaro Villaça Azevedo nesse sentido datam do
início da década de 1980.
Nenhum comentário:
Postar um comentário