TESTAMENTOS E PANDEMIA
Flávio Tartuce[1]
Apesar do otimismo de alguns, no sentido de estarmos já vivendo uma fase de pós-pandemia, tenho sustentando em vários ambientes que estamos muito longe de superar a crise multifatorial que ora enfrentamos. Estamos, na verdade, em meio à pandemia de COVID-19, com várias dúvidas e incertezas sobre as curvas da doença, o índice de contaminação, as possibilidade de reinfecções e a viabilidade das vacinas, ainda em desenvolvimento. Quando da elaboração deste breve texto, em novembro de 2020, uma suposta "segunda onda" já chegou ao hemisfério ocidental e o Brasil teme pelo aumento do número de internações em algumas localidades. Entendo que somente poderemos falar em pós-pandemia quando o vírus estiver, enfim, controlado.
Nesse contexto social, desde o início da crise, em março de 2020, novas demandas surgiram no âmbito do Direito Privado, algumas delas tratadas pela Lei n. 14.010/2020, cuja prorrogação de vigência não só pode como deve ser considerada, uma vez que a sua extensão foi limitada ao dia 30 de outubro, quando supostamente os efeitos da pandemia já estariam resolvidos no País, o que não se concretizou.
Uma dessas demandas que surgiram diz respeito ao crescimento do número de testamentos, o que foi revelado por pesquisa realizada pelo Colégio Notarial do Brasil, publicada em setembro de 2020. Houve também um incremento da busca de outras ferramentas de planejamento sucessório, o que já era uma tendência apontada em outro textos anteriores.
Segundo essa pesquisa, houve um aumento de 134% na elaboração de testamentos, na comparação entre abril e julho de 2020 (Disponível em https://www.cnbsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MjAwODA=&filtro=&Data=. Acesso em 18 de novembro de 2020). Os dados foram levantados pelo Colégio Notarial do Brasil, por meio da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (CENSEC), e, em números absolutos, o Brasil passou de 1.249 testamentos realizados em abril para 2.918 em julho. Na análise estadual, destacaram-se os seguintes aumentos, novamente em percentuais: Amazonas (1.000%), Ceará (933%), Roraima (400%), Distrito Federal (339%), Maranhão (300%), Mato Grosso (300%), Sergipe (260%), Pernambuco (225%), Espírito Santo (175%), Minas Gerais (170%), Alagoas (167%) e Santa Catarina (108%).
Essa nova realidade deve inverter uma tendência anterior, de pouco se testar no Brasil. Como expõe Paulo Lôbo, na tradição de alguns povos, o testamento é a forma de sucessão preferencial, o que não ocorre no Brasil. Aqui, o testamento “teve sempre utilidade secundária e residual, não penetrando nos hábitos da população, como se vê na imensa predominância da sucessão legítima nos inventários abertos” (Direito civil: sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 189). O jurista ressalta que a doutrina brasileira sempre se dedicou mais à sucessão legítima do que à testamentária, o que é verdade inafastável.
Como primeiro fator do afastamento testamentário, cite-se a falta de patrimônio para dispor, o que atinge muitos dos brasileiros, e que deve ser agravado pela crise econômica que vivemos. O que testar, se não há nada de relevante que pode ser objeto do conteúdo testamentário para muitas pessoas e para muitas famílias? A par dessa realidade, o testamento acaba ficando reservado para aqueles com melhores condições econômicas.
Como segundo aspecto, há aquele tão conhecido "medo da morte", o que faz com que as pessoas fujam dos mecanismos de planejamento sucessório. Nas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, “o brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para ‘afastar maus fluidos e más agruras...’. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que essas atitudes, no dito popular, ‘atraem o azar’” (Direito das sucessões. São Paulo: RT, 2012. p. 263-264). Sem falar que o brasileiro não é muito afeito a planejamentos antecipados em sentido amplo, deixando a resolução de seus problemas para a última hora. No caso da morte, cabe ressaltar, a última hora já passou.
O terceiro aspecto que pode ser citado é a existência de custos e formalidades para a elaboração do testamento, mormente se realizada a opção pela modalidade pública, perante o Tabelionato de Notas, mais certa e segura. O Provimento n. 100 do Conselho Nacional de Justiça, de 26 de maio de 2020, ao possibilitar a realização de testamentos pela via digital ou eletrônica, reduziu a burocracia, sem dúvidas, apesar de os custos ainda serem altos.
Pontue-se que essa norma administrativa trouxe requisitos de validade para os atos eletrônicos, inclusive sobre a gravação da videoconferência notarial (art. 3º). Ademais, criou regra de competência específica no seu art. 6º, com o intuito de vedar a concorrência predatória pelos serviços extrajudiciais prestados remotamente. Nos termos do último comando, "a competência para a prática dos atos regulados neste Provimento é absoluta e observará a circunscrição territorial em que o tabelião recebeu sua delegação, nos termos do art. 9º da Lei n. 8.935/1994". Apesar de haver uma louvável iniciativa pela extrajudicialização e desburocratização, ainda mais em meio a uma grave pandemia, não são poucos os que se manifestam pela ilegalidade das previsões, argumento que tem força jurídica relevante, uma vez que o tema deveria ser tratado exclusivamente por lei.
Como quarto e último fator a ser destacado a respeito da falta de iniciativa em testar, muitos não fazem testamentos por pensarem que a ordem de vocação hereditária prevista em lei é justa e correta, premissa que não é mais a verdadeira, uma vez que o sistema de sucessão legítima do Código Civil de 2002 é confuso e gerador de várias polêmicas, notadamente se confrontado com o sistema da codificação anterior. Nesse aspecto, a falta de esclarecimento sobre o sistema legal brasileiro continua a guiar muitos em um falta de iniciativa de se elaborar o ato de última vontade.
De toda forma, os novos tempos pandêmicos têm revelado a necessidade de se rever essa antiga realidade, sendo imperiosa a necessidade de se reavaliar esse "costume" de não testar, passando o brasileiro a pensar mais no planejamento sucessório post mortem, especialmente porque as confusas e intrincadas regras da sucessão legítima em vigor no País não atendem mais aos anseios da sociedade, não presumindo realmente a vontade do morto.
A pandemia de COVID-19 trouxe uma tendência de reversão deste quadro de poucos testamentos, uma vez que passamos a ver que a morte é real, e que pode até estar próxima. Assim, as demandas pela elaboração de mais atos de declaração de última vontade no Brasil aumentaram e devem crescer mais ainda no futuro, fazendo com que a sucessão testamentária encontre o devido destaque no âmbito do nosso Direito das Sucessões.
[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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