DA PENA DE SONEGADOS NA SUCESSÃO.
ALGUMAS ANOTAÇÕES FRENTE AO NOVO
CPC[1]
Flávio Tartuce[2]
A pena de sonegados
na sucessão é tratada pelo art. 1.992 do Código Civil brasileiro em vigor,
sendo instituída em três hipóteses: a) se
o herdeiro não descrever bens no inventário quando estejam em seu poder, ou,
com o seu conhecimento, estejam no poder de outrem; b) se o herdeiro omitir bens na colação, a que os deva levar; e c) se o herdeiro deixar de restituir
bens, quando tal medida for necessária para a partilha. Como consequência de
tais atos, a mesma norma estatui que o herdeiro perderá o direito que sobre os
bens sonegados lhe cabiam. Conforme leciona Rubens Limongi França, trata-se de
um “instituto complementar à execução da herança que tem por fim prevenir,
compor e punir a omissão de bens do espólio, por parte de algum herdeiro, do
inventariante ou do testamenteiro” (Instituições
de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 925).
Como é notório na civilística, para a imposição dessa
séria pena civil, exige-se a presença de dois elementos: um objetivo – qual seja a ocultação dos
bens em si – e outro subjetivo – o
ato malicioso do ocultador, o seu dolo, a sua intenção de prejudicar os outros
herdeiros. A propósito da exigência da presença do dolo para a sonegação serve
como ilustração o seguinte decisum
superior, entre os mais recentes: “a renitência do meeiro em apresentar os bens
no inventário não configura dolo, sendo necessário, para tanto, demonstração
inequívoca de que seu comportamento foi inspirado pela fraude. Não
caracterizado o dolo de sonegar, afasta-se a pena da perda dos bens (CC, art.
1.992)” (STJ, REsp 1.267.264/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA
TURMA, julgado em 19/05/2015, DJe 25/05/2015).
Em relação ao elemento subjetivo, na doutrina, Euclides
de Oliveira, Sebastião Amorim (Inventários
e partilhas. 20. ed. São Paulo: Leud, 2006, p. 363), Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2005, v. 6: Direito das sucessões, p. 391), Zeno Veloso (Comentários ao novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2003, v. 21, p. 398), Dimas Messias de Carvalho e Dimas
Daniel de Carvalho (Direito das sucessões.
Belo Horizonte: Del Rey, 2012, v. III, p. 287-288) entendem pela necessidade da
prova do dolo por quem alega a ocultação. Essa também é a posição doutrinária deste
autor, em obra sobre o tema (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 6: Direito
das sucessões, p. 584).
Essa posição, além de prevalecer na doutrina, também é
amplamente majoritária na jurisprudência nacional. Nesse sentido, do Tribunal
da Cidadania: “Sonegados. Sobrepartilha. Interpelação do herdeiro. Prova do
dolo. A ação de sonegados não tem como pressuposto a prévia interpelação do
herdeiro, nos autos do inventário. Se houver a arguição, a omissão ou a
negativa do herdeiro caracterizará o dolo, admitida prova em contrário.
Inexistindo arguição nos autos do inventário, a prova do dolo deverá ser
apurada durante a instrução. Admitido o desvio de bens, mas negado o dolo, não
é aplicável a pena de sonegados, mas os bens devem ser sobrepartilhados. Ação
parcialmente procedente. Recurso conhecido e provido em parte” (STJ, REsp
163.195/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 12/05/1998, DJ 29/06/1998, p. 217). Não discrepa a
posição desta Corte Estadual, afastando a caracterização do ato de sonegação se
a outra parte não faz tal comprovação da intenção de fraudar. Nesse sentido, a
ilustrar, entre muitos acórdãos:
“Apelação.
Ação de sonegados. Preliminar de nulidade afastada. Não comprovada a
interpelação do réu para declarar os bens ditos como sonegados. Um dos bens
está relacionado no inventário. Outros bens são litigiosos e quanto a eles não
há que se falar em sonegação, devendo submeter-se à sobrepartilha caso depois
passem a integrar o espólio (art. 1.040, inc. III, do CPC). (...). Não
demonstrado, contudo, que houve dolo, sendo este imprescindível para a
aplicação da pena de sonegados. Sentença mantida por seus próprios fundamentos
(art. 252 do RITJSP). Recurso desprovido” (TJSP, Apelação
0097075-45.2000.8.26.0000, Acórdão 5551413, 7ª Câmara de Direito Privado,
Ribeirão Preto, Rel. Des. Gilberto de Souza Moreira, j. 14/09/2011, DJESP 07/12/2011).
“AÇÃO
DE SONEGADOS. IMPROCEDÊNCIA COM IMPOSIÇÃO DE CONDUTA DE MÁ-FÉ. INCONFORMISMO.
ACOLHIMENTO EM PARTE. AUSÊNCIA DE PROVA DO DOLO NA SONEGAÇÃO, CAPAZ DE
JUSTIFICAR A IMPOSIÇÃO DA PENALIDADE CORRESPONDENTE. Sonegação, no entanto, que
ocorreu, justificando, ao menos em tese, a propositura da demanda, sem que se
possa vislumbrar conduta reprovável ou de dano processual. Litigância de má-fé
afastada. Verba honorária reduzida, em atenção à simplicidade da causa e da
prova e aos termos do art. 20, §§ 4º e 3º, do CPC. Sentença modificada em
parte. Recurso provido em parte” (TJSP, Apelação com revisão n. 201.564.4/3,
Acórdão n. 3511173, Assis, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Grava
Brasil, julgado em 03/03/2009, DJESP
07/04/2009).
Como não poderia ser diferente, tal interpretação deve
guiar a incidência do art. 1.993 do Código Civil, ao estabelecer que, se o
sonegador for o próprio inventariante, será ele removido da inventariança. O
ônus dessa prova, por óbvio, também cabe a quem alega, nos termos do art. 373,
inciso I, do CPC/2015, correspondente ao art. 333, inciso I, do CPC/1973.
No que concerne aos procedimentos, Euclides de Oliveira e
Sebastião Amorim ensinam que a sonegação deve ser arguida nos próprios autos do
inventário e “havendo apresentação do bem, serão aditadas as declarações, para
o regular seguimento do processo. Mas se persistir a recusa, a controvérsia
haverá de ser resolvida em vias próprias, por meio da ação de sonegados” (Inventário e partilha. Teoria e prática.
24. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 343). Como defendo em sede doutrinária,
essa posição deve ser mantida na vigência do Novo CPC, pois de acordo com a
instrumentalidade e a facilitação retiradas do Estatuto Processual emergente
(TARTUCE, Flávio. Direito civil. 10.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 6: Direito das sucessões, p. 587). Na
grande maioria das vezes, no sistema anterior, estar-se-ia diante de uma
questão de alta indagação, o que justificaria a ação específica. Concluindo
dessa maneira, a ilustrar, vejamos outro aresto do Superior Tribunal de
Justiça, do ano de 2013:
“Direito
civil. Direito processual civil. 1) Ação ordinária de colação e sonegados.
Depósito expressivo em caderneta de poupança conjunta do de cujus com herdeiros. Apropriação pelos herdeiros mediante a
saída do de cujus da titularidade da
conta. Valor não levado pelos herdeiros à partilha no inventário. Ação de
colação de sonegados procedente. 2) Julgamento por vara cível, a que remetidos
os autos pelo juízo do inventário, por decisão irrecorrida. Questão de alta
indagação ou dependente de provas. Inexistência de nulidade no julgamento pela
vara cível. Ausência de prejuízo. 3) Ação ordinária de colação adequada. 4)
Preclusão de homologação inexistente. Partilha amigável que não impede de
colação de bens sonegados. 5) Recurso especial improvido. 1. Devem ser
relacionados no inventário valores vultosos de caderneta de poupança conjunta,
mantida por herdeiros com o de cujus,
ante a retirada deste da titularidade da conta, permanecendo o valor, não
trazido ao inventário, em poder dos herdeiros. 2. Válido o julgamento da
matéria obrigacional, antecedente do direito à colação, de alta indagação e
dependente de provas, por Juízo de Vara Cível, para o qual declinada, sem
recurso, a competência, pelo Juízo do Inventário. Matéria, ademais, não cognoscível
por esta Corte (Súmula 280/STF). 3. Ação de colação adequada, não se exigindo a
propositura, em seu lugar, de ação de sobrepartilha, consequência do direito de
colação de sonegados cujo reconhecimento é antecedente necessário da
sobrepartilha. 4. O direito à colação de bens do de cujus em proveito de herdeiros necessários subsiste diante da
partilha amigável no processo de inventário, em que omitida a declaração dos
bens doados inoficiosamente e que, por isso, devem ser colacionados. 5. Recurso
especial improvido” (STJ, REsp 1.343.263/CE, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti,
j. 04/04/2013, DJe 11/04/2013).
Não se olvide que o Código de Processo Civil de 2015 não
faz mais menção às questões de alta indagação no seu art. 612, correspondente
ao antigo art. 984 do CPC/1973. O dispositivo em vigor expressa apenas as
questões que dependerem de outras provas, além da documental. Sendo assim, se a
ação de sonegados demandar um aprofundamento da questão probatória, com a
necessidade de oitiva de testemunhas e realização de perícias, haverá
necessidade de uma ação específica, agora pelo procedimento comum, devendo,
assim, a questão ser analisada sob a ótica do Estatuto Processual emergente. No
mais, aquele antigo entendimento jurisprudencial deve ser mantido, com as
devidas adaptações das expressões.
A encerrar, cabe pontuar que a remoção da inventariante em
decorrência da pena de sonegados deve ser somente admitida em casos
excepcionais, desde que o elemento malicioso da sua configuração esteja presente,
e devidamente provado. Em outras palavras, não havendo provas efetivas do ato
subjetivo de ocultação em sede de inventário, e sendo tal fato dependente de
provas complexas, não poderá ser admitida a drástica medida. O que quase sempre
querem as partes de um inventário é o seu encerramento e não a existência de
disputas intermináveis, aumentando-se gravemente a litigiosidade se a remoção
da inventariante for feita sem critérios, o que muitas vezes se vê na prática,
infelizmente.
[1] Coluna do
Informativo Migalhas do mês de junho de
2017.
[2]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM –
Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e
consultor jurídico.
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