quarta-feira, 5 de agosto de 2009

ARTIGO DE ZENO VELOSO SOBRE A LEI 12.004/2009.

UMA LEI QUE PODIA NÃO TER SIDO

Zeno Veloso – professor de Direito Civil na Universidade Federal do Pará e de Direito Civil e Direito Constitucional na Universidade da Amazônia – integrante da Comissão que elaborou o Anteprojeto de Consolidação de leis de Família e Sucessões – membro fundador e Diretor Regional Norte do IBDFAM – Membro da Academia Paraense de Letras e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

Sob a coordenação do professor Eduardo de Oliveira Leite, em 2000, pela Editora Forense, do Rio de Janeiro, foi publicado um livro, com vários autores, denominado Grandes Temas da Atualidade – DNA Como Meio de Prova da Filiação. Participei desta obra coletiva, e escrevi um artigo intitulado “A sacralização do DNA na investigação da paternidade”.
Ainda era recente o surgimento do exame de DNA, que tantas e profundas alterações determinou no mundo do direito, remodelando e modificando toda a questão da filiação/paternidade. O que, até então, e por milênios da história da humanidade, estava envolvido por um mistério impenetrável – o saber-se, afinal, quem era o genitor –, passou a ser passível de revelação através de um teste biológico, que fornece um grau quase absoluto de certeza, tanto que ficou conhecido como “impressão digital genética”. A novidade causou admiração e espanto, fascinação e assombro.
Em meu referido artigo, no livro citado (página 387), observei que, dominando a tecnologia do DNA, a Engenharia Genética imprimiu uma autêntica revolução na questão da paternidade, e aquilo que, desde a origem do homem, era um enigma, passou a ser desvendado, com apregoada certeza e relativa facilidade.
Todavia, ponderei: “O exame DNA tem sido realizado como prova única, como prova máxima, maravilhosa (em todos os sentidos do vocábulo) e essencial, aparecendo como panacéia para resolver todos os males, superar todas as questões e dificuldades. O resultado do laboratório, entretanto, não pode ser confundido com cartola de mágico, de onde saltam todas as coisas e pulam todas as respostas. Não tem sentido e não há razão para deixar de acolher a prova genética do DNA, mas ela deve estar compreendida no conjunto probatório”.
Acaba de ser promulgada e entrou imediatamente em vigor, no dia 29 de julho de 2009 – sem observar a vacatio legis, o que seria demonstração de cautela e prudência –, a Lei n. 12.004, publicada naquela data, que mandou acrescer à Lei n. 8.560, de 29 de dezembro de 1992, o art. 2º-A: “Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos”. Parágrafo único. “A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório”.
Se um leitor atento comparar minha opinião, externada naquele livro, em 2000, acima transcrita, com o texto desta nova lei, poderá concluir que estou muito alegre e satisfeito com a mesma. Pois não estou! É mais uma lei, nesta babel legislativa que nos atordoa e aflige, uma lei que não acrescenta nada e coisa alguma e, ainda, pode causar retrocesso e confusão, se for interpretada por algum espírito passadista e retrógrado.
Em primeiro lugar, qual a causa, o motivo, a inspiração de inserir as ditas regras num novo artigo, a ser acrescentado na Lei n. 8.560/1992? Essa Lei n. 8.560, embora proclame em sua ementa que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras providências, na verdade, de investigação de paternidade, praticamente, não tratou: o art. 1º cuida do reconhecimento voluntário de paternidade, indicando as formas para fazê-lo, matéria que foi reproduzida no art. 1.609 do Código Civil de 2002, ficando, portanto, tacitamente revogado o citado art. 1º da mencionada Lei n. 8.560; e, no art. 2º, a dita lei regula a averiguação oficiosa de paternidade, assunto que o Código Civil de 2002 não mencionou, pelo que, entendo que esse art. 2º permanece em vigor.
A ação de investigação de paternidade, com seus requisitos, legitimados, meios de prova etc. não foi tratada, diretamente, minuciosamente, nessa Lei n. 8.560/1992. Não havia, portanto, nenhuma justificativa para que a Lei n. 12.004/2009 introduzisse aquele assunto na referida lei, quando, se fosse necessária a intervenção legislativa, o tema estaria melhor situado no próprio Código Civil, no capítulo denominado “Do Reconhecimento dos Filhos”, cujos arts. 1.615 e 1.616 falam da ação investigatória – embora, reconheço, insuficientemente.
Mas essa questão de localização não é o maior problema da Lei n. 12.004/2009, como passo a demonstrar.
O Supremo Tribunal Federal – STF, julgando o Habeas Corpus 71.373-RS, em 10 de novembro de 1994, Relator Min. Francisco Rezek, Relator para o acórdão Min. Marco Aurélio, num caso famoso e paradigmático, decidiu que viola garantias constitucionais implícitas e explícitas provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido a laboratório, “debaixo de vara”, para coleta de material indispensável à feitura do exame de DNA.
No direito brasileiro, portanto – ao contrário do que ocorre, por exemplo, no sistema germânico –, o indigitado pai, invocando direitos fundamentais constantes na Carta Magna, pode, legitimamente, recusar-se ao exame de DNA. Mas não fica por isso mesmo. A negativa tem conseqüências.
O Superior Tribunal de Justiça – STJ, depois de reiteradas decisões, consolidando sua jurisprudência, editou a Súmula 301: “Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”. Trata-se, como se conclui do próprio enunciado, de uma presunção que não é absoluta, mas relativa, e cede diante da prova em contrário. Ademais, a presunção não se impõe de forma irrestrita, isoladamente, sendo necessário que se demonstre e comprove, ao menos, e por todos os meios de prova admitidos em direito, a existência de relacionamento íntimo entre o indicado como genitor e a mãe, ou, em outras palavras, que se considere todo o contexto probatório trazido aos autos.
Destaco uma passagem bem marcante e esclarecedora de acórdão do STJ, que representa o entendimento consagrado naquele Tribunal: “O não comparecimento, injustificado, do réu para realizar o exame de DNA equipara-se à recusa. Apesar da Súmula 301/STJ ter feito referência à presunção juris tantum de paternidade na hipótese de recusa do investigado em se submeter ao exame de DNA, os precedentes jurisprudenciais que sustentaram o entendimento sumulado definem que esta circunstância não desonera o autor de comprovar, minimamente, por meio de provas indiciárias e existência de relacionamento íntimo entre a mãe e o suposto pai”. Pode-se conferir, sobre o assunto, no STJ: REsp 445860/ES, 4ª T., relator Min. Aldir Passarinho, j. 07.08.2003; REsp 557365/RO, 3ª T., relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 07.04.2005; REsp 730566/MG, 4ª T., relator Min. Jorge Scartezzini, j. 07.06.2005; REsp 692242/MG, 3ª T., relatora Ministra Nancy Andrighi, j. 28.06.2005; ERResp 292543/PA, Segunda Seção, relator Min. Humberto Gomes de Barros, j. 22.02.2006.
Dentre as mencionadas provas indiciárias, pode-se exemplificar: testemunhos, escritos, viagens conjuntas (bilhetes aéreos, recibos de hotéis), fotografias, filmagens, contas bancárias, recibos de aluguel, de hospitais, honorários médicos etc.
O que deve dominar esta questão é a cuidadosa análise do caso concreto, observados os princípios da razoabilidade, do bom-senso, da proporcionalidade, do melhor interesse da criança, da dignidade da pessoa humana.
Pode-se argumentar que a Lei n. 12.004/2009 quis transformar em lei o que era jurisprudência, consubstanciada na Súmula 301 do STJ. Não dá para aceitar, pois a dita Súmula 301 do STJ já tem sustentação legal, no próprio Código Civil, e em dois artigos: o art. 231, que prevê: “Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa”; e o art. 232, que menciona: “A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame”.
Mas a Lei n. 12.004/2009 mandou consignar que a recusa do réu em se submeter ao exame de código genético – DNA gerará a presunção da paternidade, “a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório”. Quem sabe, essa cláusula final mereceria ser inserida em nosso direito positivo... Também, não era preciso que uma nova lei viesse declarar que “se deve observar o contexto probatório”, porque isso já está enfaticamente proclamado na jurisprudência do STJ, como indicado, além de representar um princípio fundamental do processo civil, que, no caso, é manifestação do due process of law, que integra o elenco dos direitos e garantias fundamentais (CF, art. 5º, LIV), com estatura de cláusula pétrea da Carta Magna.
Infelizmente, a Lei n. 12.004/2009 não inovou coisa alguma, repetiu o que já está dito, disse o que era sabido e ressabido, e serve, somente, para aumentar uma cruel estatística: a de que somos um dos campeões mundiais de produção legislativa, e, paradoxalmente – talvez, por isso, mesmo – de leis que não se cumprem, inúmeras vezes. Em suma: não se deve mexer no que está resolvido e em paz, nem bulir no que se apresenta sereno e quieto.
Para aumentar a perplexidade e o desalento, a Lei n. 12.004/2009, no art. 3º, revoga a Lei n. 883, de 21 de outubro de 1949. Esta lei n. 883 representa um verdadeiro marco no ordenamento jurídico brasileiro, resultando de projeto apresentado por Nélson Carneiro – o pai do direito de família legislado de nosso País –, e veio para abrir exceção ao perverso art. 358 do Código Civil de 1916, que dizia: “Os filhos incestuosos e adulterinos não podem ser reconhecidos”. Essa categórica proibição abrangia tanto o reconhecimento voluntário como o reconhecimento forçado ou judicial. Pois a Lei n. 883/1949 revogou parcialmente o aludido art. 358 do Código Civil e permitiu o reconhecimento, espontâneo ou forçado, dos filhos havidos fora do matrimônio, depois de dissolvida a sociedade conjugal.
Com o advento da Constituição de 1988, e com a entrada em vigor do art. 227, § 6º, da mesma: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”, que o saudoso Silvio Rodrigues considera uma “norma redentora”, ficou revogado, sem nenhuma validade, sem qualquer efeito, o vetusto e abominável art. 358 do Código Civil, agressivo, discriminador, injusto, passando a ser possível o reconhecimento dos filhos, sem qualquer restrição, qualquer que seja a origem da filiação. Os filhos outrora chamados ofensivamente de adulterinos e incestuosos podem ser reconhecidos por seus pais, a qualquer momento, sem limitação alguma. Mesmo sendo indiscutível que o referido art. 358 não foi recepcionado pela Constituição de 1988, sendo tacitamente revogado por ela, o legislador ordinário entendeu de dizer que revogava o que revogado já estava, e a Lei n. 7.841, de 17 de outubro de 1989, revogou expressamente o malsinado art. 358, que não deixou nenhuma saudade.
É transparente, como água de fonte, que também ficou revogada, por absoluta falta de objeto e de sentido, a Lei n. 883/1949, que permitia, em alguns casos, o reconhecimento dos filhos havidos fora do matrimônio. A Carta Magna introduziu um novo estatuto da filiação, determinou a unidade de filiação. Afirmei em meu livro Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade (São Paulo: Malheiros, 1997, p. 87): “A Constituição, é claro, não recepcionou, e estão revogadas, por incompatibilidade radical com as suas normas e princípios, todas as regras do Código Civil (de 1916) e da legislação posterior que estabeleciam desigualdades, privilégios e discriminações entre os cônjuges e os filhos. Chegou um novo tempo, e quem não perceber isto perde sintonia com o novo direito. Um novo direito, um direito novo, não pode conviver com idéias caducas de uma era sepultada”.
Em seguida, surgiu a importante Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente –, cujo art. 26, com vistas ao reconhecimento voluntário, diz: “Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação”. Por sua vez, o art. 27, dirigido ao reconhecimento judicial, proclama: “O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais, ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça”. Diante desses preceitos, diretos, explícitos, expressivos, se já não estivesse revogada a Lei n. 883/1949 pela Constituição de 1988, estaria revogada, agora, pela Lei n. 8.069/1990.
Não bastasse tudo isso, mais de uma década depois, é promulgado o Código Civil, que entrou em vigor em 2003, cujo art. 1.596 repete, ipsis litteris, aquela ”norma redentora” do art. 227, § 6º, da Constituição, reafirmando a igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, proibidas as designações discriminatórias relativas à filiação. E, repetindo a observação, se já não estivesse revogada a Lei n. 883/1949, estaria revogada, inexoravelmente, pelo Código Civil, que apresenta, ainda, o expressivo art. 1.607: “O filho havido fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente”.
Que razão terá levado a Lei n. 12.004/2009 a declarar a revogação da antiga Lei n. 883/1949, que, por absoluta e literal incompatibilidade, estava revogada desde a entrada em vigor da Constituição Federal, em 1988? Para tornar clara e certa uma situação jurídica é que não foi, pois não se conhece uma só opinião ou qualquer decisão judicial que ousasse defender a tese da sobrevivência da Lei n. 883/1949 diante do novo ordenamento constitucional, nem, muito menos, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, ou da Lei n. 8.560/1992, ou com a entrada em vigor do Código Civil de 2002.
Essa revogação expressa, então, pode causar dúvida, insegurança jurídica. Mas deve ter havido alguma razão; é preciso que alguma razão tenha havido para que uma lei no final do mês de julho de 2009, vinte anos depois da Constituição Federal, venha proclamar a revogação da Lei n. 883/1949, como se a mesma, até o presente momento, estivesse em vigor. Que razão será essa? Não sei, francamente, não sei. E, quem souber, venha e diga. Esclareça, por favor.

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