terça-feira, 25 de setembro de 2007

ARTIGO DE JOSÉ FERNANDO SIMÃO. SUCESSÃO DO COMPANHEIRO: DECISÕES SURPREENDENTES!

Sucessão do companheiro: decisões surpreendentes!
Parte 1 Casamento X União estável.o
Em nosso não curta caminhada como professor, nenhum tema tem sido tão recorrente nos questionamentos dos alunos como o referente ao direito sucessório, e principalmente, as questões relativas à sucessão do cônjuge e do companheiro.
A matéria foi radicalmente alterada se comparada à forma como era disciplinada no revogado Código Civil (com relação aos cônjuges), e nas Leis 8.971/94 e 9.278/96 (com relação aos companheiros).
Nesse mês, recebemos dos amigos Desembargadores José Luiz Gavião de Almeida (TJ/SP) e da amiga Maria Berenice Dias (TJ/RS), dois acórdãos a respeito do mesmo tema: constitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil.
Esse é o único dispositivo que cuida da matéria da sucessão dos companheiros no Código Civil de 2002 e assim dispõe:
"Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Várias questões polêmicas surgem a partir da leitura do dispositivo, mas três temas são absolutamente relevantes em razão dos julgados que pretendemos comentar".

1) Massa patrimonial que herda o companheiro.
A primeira nota que se faz é que o caput do artigo 1790 limita à sucessão do companheiro aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.
Assim, os bens particulares que foram adquiridos antes da união, ou mesmo os adquiridos a título gratuito, por doação ou sucessão, não fazem parte da herança e pertencerão aos descendentes, ascendentes ou colaterais, mas não ao companheiro do falecido.
O companheiro só será herdeiro dos aqüestos, ou seja, os bens adquiridos a título oneroso durante a união estável. Essa restrição quanto à participação sucessória do companheiro do falecido, não existia na legislação anterior ao Código Civil de 2002. Isso porque, a Lei 8.971/94, em seu artigo 2º, caput, dispunha que “as pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições”.
Portanto, durante a vigência da lei em questão, o companheiro era herdeiro de todo e qualquer bem do falecido, não importando o título da aquisição (gratuito ou oneroso), nem sua época (se anterior ou posterior ao início da união).
Nesse sentido, com relação ao cônjuge, nada se alterou: o cônjuge já era herdeiro (art. 1611 do CC/16) e continua sendo herdeiro (art. 1829 do CC/02), com relação á totalidade dos bens do falecido, não se distinguindo se os bens são anteriores ou posteriores ao casamento, nem o título de sua aquisição. O regime de bens apenas influencia a concorrência com os descendentes, mas não o fato de o cônjuge ser herdeiro dos bens.
2) Concorrência com parentes do falecido
Ainda na vigência da revogada lei 8.971/94, o companheiro não concorria com os descendentes ou ascendentes do falecido. Isso porque, pelo teor do artigo 2º, se o falecido deixasse filhos (leia-se descendentes), esses receberiam a totalidade da herança, e o companheiro teria o direito de usufruto sobre ¼ dos bens (art. 2º, I).
Por outro lado, se o falecido deixasse apenas ascendentes, esses receberiam a totalidade da herança e o companheiro teria direito de usufruto sobre ½ dos bens (art. 2º, II).
Por fim, caso o falecido não deixasse descendentes nem ascendentes, o companheiro herdava a totalidade dos bens do falecido (art. 2º, III).
Com a edição do novo Código Civil, o companheiro concorre com os descendentes e ascendentes, não mais na qualidade de usufrutuário, mas sim de proprietário, apenas quanto aos bens adquiridos a título oneroso na constância da união (art. 1.790, I e II).
Se, nesse sentido, houve claro benefício ao companheiro, que deixa de ser usufrutuário e passa a ser co-proprietário, por outro lado, o inciso III do artigo 1.790, cria a absurda concorrência entre o companheiro e os colaterais do falecido. Assim, se o falecido deixa um tio e o companheiro, o companheiro recebe 1/3 da herança e o tio os outros 2/3. Se o falecido deixa sobrinhos-netos (colaterais em 4º grau), esses recebem 2/3 da herança e o companheiro apenas 1/3. Há um nítido retrocesso com relação às leis anteriores.
Renato Felipe de Souza, advogado em Santa Catarina, em seu artigo “Anotações sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790, III, do Código civil brasileiro”, publicado em nosso site (www.professorsimao.com.br), observa que
“Verifica-se, pois, que o CC/2002, quando tratou da sucessão dos companheiros, rebaixou o status do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge, ao diferenciar o regime de sucessão na herança. Trata-se, pois, de regra inconstitucional, uma vez que vulnerou os princípios da igualdade e da dignidade (...) Assim, uma vez dada à execução a uma norma constitucional de caráter programático, através de lei infraconstitucional, não pode o legislador ordinário retroceder através de edição de lei ordinária superveniente que venha a reduzir o alcance da norma constitucional, sob pena de ser declarada inconstitucional.”
Novamente, com relação ao cônjuge, o problema de concorrência com os colaterais não se verifica. Isso porque, assim como o artigo 1603, III do Código Civil de 1916, o art. 1829, III, do atual diploma determina ser o cônjuge o terceiro na vocação hereditária. Portanto, se o falecido não deixou descendentes, nem ascendentes, todos os bens serão herdados pelo cônjuge do falecido, qualquer que seja o regime de bens.
Repita-se: não importa o regime de bens! O cônjuge jamais perderá na vocação hereditária para irmãos, sobrinhos, tios, ou sobrinhos-netos do falecido.
3) União estável e Casamento
Como se percebe, o Código Civil de 2002 tratou de maneira diferente a união estável e o casamento. No tocante ao casamento, nenhum prejuízo sofreu o cônjuge que, inclusive, foi alçado à condição de herdeiro necessário, tendo direito à legítima (CC/02, art. 1845).
Já com relação à união estável, o companheiro continua sendo herdeiro facultativo (pode ser afastado da sucessão por simples testamento, não havendo necessidade de justificar sua exclusão). Ademais, o companheiro não mais concorre sobre a totalidade da herança, como ocorria anteriormente, mas apenas quanto aos aqüestos.
Por fim, o companheiro que, no sistema da lei antiga, receberia a totalidade da herança se o falecido não deixasse descendentes nem ascendentes, passou a dividir a herança com os colaterais (1/3 para o companheiro e 2/3 para os colaterais).
E qual a razão dessa diferença de tratamento? A interpretação que recebe o artigo 226, § 3º da Constituição Federal que ora transcrevemos:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.
O fato de a lei dever facilitar a união estável em casamento significa, para alguns, que o casamento é instituto hierarquicamente superior à união estável e, portanto, qualquer vantagem que a lei ordinária atribua à união estável, que supere as vantagens do casamento, seria considerada inconstitucional.
Para outros, a determinação constitucional apenas impede que a lei infraconstitucional dificulte a conversão da união estável em casamento. Seria uma norma proibitiva da imposição de qualquer dificuldade, mas não geradora de hierarquia entre as duas formas de constituição de família.
São essa duas visões antagônicas do texto constitucional que refletem os pensamentos presentes nos julgados que comentaremos em nosso próximo artigo.

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