Primeiras reflexões sobre os impactos da MP 881/19 em relação às regras do “Livro II – Do Direito de Empresa” da Parte Especial do Código Civil
Maurício Andere Von Bruck Lacerda.
Doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em ciências jurídico-empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal). Especialista em Direito dos Contratos (COGEAE-PUC/SP). Professor de direito civil e empresarial nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP) e em cursos de especialização e pós-graduação em Direito. Advogado.
O propósito do presente ensaio é provocar breves reflexões a respeito dos impactos da Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, em relação, especificamente, às alterações promovidas nos dispositivos legais do Livro II, da Parte Especial do Código Civil Brasileiro (Lei 10.406), destinado a tratar do “Direito de Empresa”, nomeadamente no tocante à inclusão do §7º no artigo 980-A e à inclusão do parágrafo único no artigo 1.052 do referido diploma legal.
Em referido contexto, não serão analisados, neste momento, os dispositivos relacionados à “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” e as demais alterações promovidas no Código Civil Brasileiro, ainda que concernentes às relações empresariais, tais como aquelas promovidas no artigo 50, que promoveu modificações importantes nos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica e aquelas atinentes à disciplina geral dos contratos, que procuraram, entre outros aspectos, flexibilizar o princípio da função social do contrato em prol dos princípios da “livre iniciativa” e do “livre exercício da atividade econômica”.
Registra-se, inicialmente, breve crítica a respeito da adoção do mecanismo jurídico da medida provisória (Art. 62 CF) para promover alterações em diploma legal tão relevante, social e economicamente, como o Código Civil Brasileiro. Não obstante se reconheça a importância de se promover ajustes que proporcionem melhorias no ambiente de negócios, conferindo maior segurança e estabilidade ao desenvolvimento das atividades econômicas em geral e às relações empresariais em especial, o emprego de tal mecanismo constitucional impede – ou ao menos restringe excessivamente – os necessários debates e a maturação de ideias em torno de temas jurídicos tão essenciais às relações jurídico-privadas, como aqueles objeto da MP 881/19.
1. A “sociedade limitada unipessoal” e a EIRELI
No que diz respeito às alterações promovidas no Livro de “Direito de Empresa”, destaca-se, a princípio, a inclusão do parágrafo único no artigo 1.052 do Código Civil Brasileiro, por meio do qual se pretende inserir na realidade jurídica brasileira a figura da “sociedade limitada unipessoal”, estabelecendo que: “A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”
Há algum tempo a sociedade brasileira – e em especial o universo empresarial[1] – clamava pela criação de instituto jurídico capaz de permitir o exercício da atividade empresária, com limitação da responsabilidade, por sujeito único, pois a mera inscrição da pessoa natural como empresário individual, perante o órgão de registro do comércio, acarreta a assunção, pelo empresário, dos riscos empresariais em seu próprio nome, sujeitando o patrimônio pessoal deste à ação de seus credores, sem qualquer tipo de limitação de responsabilidade.
O propósito da figura, em primeiro lugar, seria viabilizar o exercício da atividade empresária por sujeito único e com limitação de responsabilidade, em alternativa à figura do “empresário individual”, afastando, também, a necessidade de constituição de sociedades empresárias limitadas pro forma.
Tais sociedades pro forma, cumpre lembrar, se caracterizam por aquelas nas quais um dos sócios normalmente detém a quase totalidade das quotas representativas do capital social (normalmente com o equivalente a 99%) e o outro sócio – que normalmente é pessoa do ciclo familiar, de amizades ou até mesmo subordinado economicamente ao primeiro, mas, em regra, alheio ao desenvolvimento e ao próprio cotidiano da sociedade empresária – figura como sócio titular de parcela diminuta do capital social (em regra 1%), correndo, porém, todos os riscos fiscais, trabalhistas, cíveis, ambientais, dentre outros, inerentes ao desenvolvimento da empresa, os quais são comumente imputados aos sócios. A existência do sócio pro forma contribui, também, para a burocratização da realização dos atos sociais, incluindo-se alterações contratuais, aumento do capital, entre outras medidas necessárias à administração social e ao desenvolvimento da atividade econômica.
Além disso, o advento de referida figura criaria melhores condições jurídicas para atrair para a formalidade grande número de trabalhadores, que desenvolvem atividades econômicas de maneira informal, em razão das dificuldades e entraves burocráticos, jurídicos e econômicos.
Tais propósitos foram, em grande medida, alcançados pelo advento da lei 12.441, de 11 de julho de 2011, que inseriu a “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI” na realidade jurídica brasileira, por meio da inclusão do inciso VI ao artigo 44 CC e da introdução, no livro II da parte especial, dedicado ao tratamento do Direito de Empresa, do artigo 980-A e seus cinco parágrafos[2].
Apesar do tratamento jurídico insuficiente e inadequado da figura[3] – com destaque para a exigência de integralização de um capital mínimo correspondente a 100 (cem) salários mínimos e da possível quebra de isonomia em relação às sociedades; bem como em relação às dúvidas acerca da possibilidade de constituição de EIRELI por pessoa jurídica e para fins não empresariais – a EIRELI conquistou espaço significativo no cenário econômico e empresarial brasileiro, não obstante os obstáculos jurídicos tenham impedido um maior florescimento da figura como alternativa mais efetiva ao desenvolvimento de atividades econômicas por sujeito único e com responsabilidade limitada[4].
Sob tais aspectos, embora se verifique a presença de entraves jurídicos e econômicos, acompanhados por divergências doutrinárias a respeito, por exemplo, da EIRELI tratar-se[5], ou não[6], de sociedade unipessoal, é inequívoco que a figura caracterizou um avanço, justamente por desempenhar as funções exercidas pelas sociedades unipessoais em realidade jurídicas estrangeiras.
Nesse sentido, em processo de amadurecimento jurídico natural, ao invés de se introduzir a nova figura jurídica das “sociedades limitadas unipessoais”, defende-se que bastariam ajustes pontuais no tratamento jurídico da EIRELI, a qual ostenta aptidão para desempenhar papel análogo àquele normalmente desempenhado pelas sociedades unipessoais em outros sistemas jurídicos. Tais modificações pontuais ora propostas, em relação à disciplina jurídica da EIRELI, baseiam-se nas principais discussões doutrinárias em torno do tema e consistiriam, essencialmente, em:
i) alterar a redação do caput do art. 980-A para acabar com a exigência do “capital mínimo” de 100 (cem) salários mínimos.
Justificativa: A fixação de capital mínimo, sobretudo em valor tão elevado para os padrões brasileiros (atualmente R$ 99.800,00), representa considerável desestímulo à constituição da EIRELI, especialmente quando se constata a ausência de regra similar imposta às sociedades limitadas e às demais pessoas jurídicas de direito privado. Tratando-se de pessoa jurídica de direito privado que, na essência, estabelecerá relações jurídicas com outros particulares, referida imposição parece caracterizar zelo excessivo por parte do legislador, na medida em que, em regra, o mercado se mostra apto a acomodar os interesses dos agentes econômicos, por intermédio dos inúmeros instrumentos de proteção e de garantia disponíveis para as relações privadas, tal como ocorre em relação às sociedades limitadas, sendo interesse do próprio instituidor – a depender da natureza da atividade e dos riscos envolvidos[7] – promover, a qualquer tempo, o aumento do capital integralizado, de forma a transmitir maior segurança e credibilidade às relações por ele estabelecidas. Em síntese, considera-se que eventuais benefícios e garantias fornecidos aos credores da EIRELI, como resultado de referida imposição legal, são menores do que os potenciais ganhos sociais e econômicos oriundos da ausência de fixação de um capital mínimo para constituição da referida modalidade de pessoa jurídica.
ii) alterar a redação do caput do art. 980-A, para autorizar expressamente a constituição de EIRELI por pessoa jurídica.
Justificativa: Não obstante a redação atual não proíba a constituição de EIRELI por pessoa jurídica, desde o advento da figura, o Departamento Nacional do Registro do Comércio (DNRC) e, posteriormente, o Departamento de Registro de Empresas e Integração (DREI), editaram regras que ora proibiram, ora autorizaram a constituição de EIRELI por pessoa jurídica[8], sendo certo que desde março de 2017 a constituição é permitida. Apesar do tema ser controvertido na doutrina[9], a segurança jurídica e o desenvolvimento das atividades econômicas necessita de regra perene, apta a encerrar referida celeuma e, finalmente, conferir estabilidade às EIRELIs constituídas por pessoas jurídicas desde o ano de 2017.
iii) alterar a redação do §5º do art. 980-A, para autorizar expressamente a constituição de EIRELI não-empresária.
Justificativa: Apesar de parecer, em certa medida, contraditório admitir-se que uma pessoa jurídica cuja denominação ostenta o vocábulo “Empresa” possa exercer atividade de natureza não empresária, não parece que a presença de elementos de empresa seja indispensável à caracterização da figura, que poderá ser constituída para o exercício de atividade não empresária. Não se verifica, portanto, óbices à possibilidade de que seja constituída a “EIRELI-Simples”, especialmente por se tratar de figura do universo do direito privado e por apresentar-se como mais uma alternativa para o exercício das atividades econômicas em geral, sem prejuízo, inclusive, de que, tratando-se de nova modalidade de pessoa jurídica, esteja sujeita às hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do que estabelecem, entre outros, os artigos 50 do CC e 28 do CDC.
Em síntese, apesar das reconhecidas divergências jurídicas que envolvem a EIRELI, nos parece que tais ajustes pontuais contribuiriam para reduzir os entraves atualmente existentes e, dessa forma, impulsionar a utilização da figura na realidade jurídico-econômica brasileira, assumindo, com protagonismo, as funções desempenhadas pelas “sociedades unipessoais” presentes em realidades estrangeiras.
Tais medidas, por sua vez, dispensariam alterações mais profundas no ordenamento jurídico pátrio, tal como aquela relacionada ao encetado § único do art. 1.052CC, que além de necessitar de ajustes e complementos, dependeria de natural maturação e acomodação de suas características dentro do sistema, tal como se pretende demonstrar a seguir.
Caso, contudo, prospere a opção de introduzir a “sociedade unipessoal” no sistema jurídico pátrio, nos moldes assumidos pela figura em outras realidades jurídicas – nos quais se destina a viabilizar o desenvolvimento de atividade econômica por sujeito único e com responsabilidade limitada – considera-se insuficiente e inadequada a mera inclusão do parágrafo único no encetado art. 1.052 CC, tal como estabelecido pela MP 881/19, pois vejamos.
A escolha por incrementar a regra do artigo 1.052CC, que trata especificamente das sociedades limitadas, nos parece, com a devida vênia, tecnicamente incorreta. Isso porque mantém intacta a regra do artigo 981 do CC, a qual continua a estatuir que: “Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.”
Sugere-se, portanto, que – no curso do processo legislativo que se destina a convolar em lei a MP 881/19, caso não prospere a opção por simplesmente alterar pontualmente dispositivos da EIRELI – a inserção da “sociedade unipessoal” na realidade brasileira seja promovida por intermédio de alteração da redação do caput do artigo 981CC ou mediante a inclusão de parágrafo próprio em tal dispositivo, admitindo, dessa forma, que a sociedade passe, também, a ser efeito de negócio jurídico unilateral e decorra, portanto, da manifestação de vontade de sujeito único, afastando, da sua essência, o requisito da pluralidade de sócios.
Entende-se que o tratamento da figura da “sociedade unipessoal” no âmbito do artigo 981 do CC contribui para harmonizar o sistema em torno da nova figura, evitando, dessa forma, situação de antinomia entre as regras do artigo 981CC – que regula as sociedades em geral – e do artigo 1.052 do CC, que inaugura a disciplina das “sociedade limitadas”, em especial.
Tal realocação da regra contribui, inclusive, para afastar as dúvidas relativas à abrangência concreta da figura em relação aos demais tipos societários e, também, às sociedades não empresárias, nos seguintes termos.
2. A infundada restrição da “sociedade unipessoal” ao universo das “sociedades limitadas”
Além da proposição relacionada ao locus adequado do tratamento da “sociedade unipessoal” no sistema, faz-se necessário avaliar em que medida se justifica limitar a figura das “sociedades unipessoais” ao universo das “sociedades limitadas”, tal como consta do texto da MP 881/19.
Diferentemente da opção adotada pela MP 881/19, nos parece não haver justificativa jurídico-econômica plausível para limitar a constituição das “sociedades unipessoais” ao universo das “sociedades limitadas”, embora este deva ser o tipo societário mais propício para o maior desenvolvimento da figura, já que os tipos societários menores (sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade em comandita por ações) são tradicionalmente pouco utilizados, em razão da atribuição de responsabilidade ilimitada a, ao menos, uma categoria de sócios.
Importante ressalva merece ser feita em relação às sociedades anônimas, as quais além de ostentarem estrutura organizacional mais complexa e burocrática do que as sociedades reguladas pelo Código Civil, gozam de disciplina jurídica própria (Lei 6404/76), a qual já regula a possibilidade excepcional de constituição da “subsidiária integral”, nos termos do artigo 251 da referida lei especial, que merece ser preservada, mediante ressalva expressa no texto legal a ser reformulado.
3. A possibilidade de constituição de “sociedades unipessoais” simples e empresárias
Outro aspecto relacionado às escolhas adotadas no texto da referida MP 881/19, e que reforça a necessidade de se abordar a questão no âmbito do art. 981 do CC, cinge-se às eventuais dúvidas acerca da nova figura restringir-se, ou não, ao universo das “sociedades empresárias”.
Não obstante a regra do artigo 983 do CC admita expressamente que “a sociedade simples pode constituir-se de conformidade com um dos tipos” societários regulados nos artigos 1.039 ao 1.092 do CC, entre os quais se incluem as “sociedades limitadas”, o advento da “sociedade unipessoal” apenas no âmbito das “sociedade limitadas” restringe, por exemplo, a constituição de sociedades simples puras unipessoais. Também sob tais aspectos, considera-se não haver fundamentos para tal restrição.
Importante lembrar que a Lei nº 13.247, de 12 de janeiro de 2016, promoveu alterações no “Estatuto da Advocacia” (Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), em especial no artigo 15 e outros[10], para admitir a possibilidade de que os advogados constituam “sociedade unipessoal de advocacia”, a qual adquire personalidade jurídica com o registro aprovado dos seus atos constitutivos no Conselho Seccional da OAB em cuja base territorial tiver sede, salientando no parágrafo § 4º, do art. 15, que “Nenhum advogado pode integrar mais de uma sociedade de advogados, constituir mais de uma sociedade unipessoal de advocacia, ou integrar, simultaneamente, uma sociedade de advogados e uma sociedade unipessoal de advocacia, com sede ou filial na mesma área territorial do respectivo Conselho Seccional.”
A nova redação do art. 17, contudo, ressalva que “Além da sociedade, o sócio e o titular da sociedade individual de advocacia respondem subsidiária e ilimitadamente pelos danos causados aos clientes por ação ou omissão no exercício da advocacia, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar em que possam incorrer.”
A propósito, diante da existência de regra especial que autoriza os membros de determinada categoria profissional a se valerem da figura da “sociedade unipessoal”, no âmbito das sociedades simples, não se vislumbra obstáculos para que – em reforço ao princípio da isonomia – tal possibilidade seja contemplada pela lei geral, conferindo-se o mesmo direito a outras categorias profissionais, inclusive de caráter não empresário, tais como contabilistas, médicos, engenheiros, arquitetos, entre outras.
Considera-se pertinente, contudo, o estabelecimento de regras específicas regulando minimamente a figura, tais como aquelas inseridas no “Estatuto da Advocacia”, as quais também se encontram previstas em sistemas jurídicos estrangeiros, que acolheram, em sentido amplo, a possibilidade de constituição de sociedades unipessoais.
Nesse sentido, em reforço às referidas conclusões, destaca-se o tratamento conferido à figura na realidade portuguesa, onde a “sociedade unipessoal” foi instituída por influência da 12ª Diretiva da União Europeia, que impulsionou a promulgação do Decreto-Lei nº 257/96 de 31 de dezembro[11]. Registra-se que ainda na década de 1980 foi criada, na realidade portuguesa, a figura do denominado “estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada (e.i.r.l.)”, destinado ao exercício da empresa, aproximando-se da EIRELI do sistema brasileiro, em razão da fixação de um capital mínimo (5.000 euros), embora juridicamente o “e.i.r.l.” se caracterize como um patrimônio separado não personificado e não como um reflexo da subjetivação da atividade, conforme se verifica na realidade brasileira.
Atualmente, a figura das “sociedades unipessoais” está plenamente consolidada e encontra ampla aplicação na realidade portuguesa, com fundamento nos artigos 7º[12] e 270-A a G[13] do Código das Sociedades Comerciais Português, bem como na Lei n.º 53/2015, de 11 de junho, que regula o “Regime jurídico da constituição e funcionamento das sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais.”[14]
Com base em tais fundamentos jurídicos, legais e doutrinários, da realidade brasileira e estrangeira, considera-se que o locus adequado para inserção da sociedade unipessoal na realidade jurídica brasileira é o artigo 981 CC, capaz de abranger tanto as sociedades empresárias, como as não empresárias, sem restrições quanto aos tipos societários, com exceção das sociedades anônimas, que ostentam disciplina jurídica própria (Lei 6.404), que merece ser objeto de ressalva expressa.
Considera-se, prudente, ainda, que a figura das sociedades unipessoais seja minimamente regulada, mediante a previsão legal de regras destinadas a conferir maior segurança e a evitar abusos por intermédio da figura, tal como ocorre, por exemplo, na realidade portuguesa, por influência europeia, nos moldes dos artigos 270-A a 270-G do Código das Sociedades Comerciais Português.
4. A inclusão do §7º no artigo 980-A: A desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI
A outra alteração promovida pela MP 881/19 na parte de “Direito de Empresa” do Código Civil Brasileiro, encontra-se intimamente relacionada com os acima expostos, pois relaciona-se à desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI.
Foi inserido mais um parágrafo (§7º) ao artigo 980-A, para estabelecer que: “Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.”
Em linhas gerais, o referido dispositivo fez ressurgir a regra do § 4º, que constava originariamente do artigo 980-A, e fora objeto de veto presidencial, cujo teor era o seguinte: “§ 4º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente.”
Por coerência lógica do sistema e em prol da segurança jurídica a inserção de referida regra não deve prosperar. A crítica se justifica, pois a regra do referido § 7º cria situação de antinomia em relação ao disposto no § 6º do próprio art. 980-A[15] e também em relação às hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no artigo 50 CC.
Note-se que o §7º inserido pela MP 881/19 cria regra de exceção aplicável apenas às EIRELIs, afastando, ao que parece, a incidência dos requisitos gerais da desconsideração da personalidade jurídica previstos no artigo 50, para restringir as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI “aos casos de fraude”. Não nos parece, contudo, ser a solução jurídica mais adequada, pois confere tratamento jurídico excepcional à referida espécie de pessoa jurídica, que não encontra qualquer amparo ou justificativa plausível no sistema ou em relação aos valores que nortearam a criação da figura.
Em reforço aos referidos argumentos é oportuno relembrar os fundamentos constantes da justificativa de veto ao encetado §4º do texto originário. Asseverou-se que: “Não obstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão 'em qualquer situação', que pode gerar divergências quanto à aplicação das hipóteses gerais de desconsideração da personalidade jurídica, previstas no art. 50 do Código Civil. Assim, e por força do § 6º do projeto de lei, aplicar-se-á à EIRELI as regras da sociedade limitada, inclusive quanto à separação do patrimônio.”
Do ponto de vista prático e dos riscos efetivos envolvendo a nova regra do §7º, destaca-se ementa de acórdão proferido nos autos do recurso de agravo de instrumento n. 2008101-36.2016.8.26.0000, julgado pela 12ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, Des. Rel. Cerqueira Leite, em 11.5.16, no qual foi determinada a desconsideração da personalidade jurídica de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, nos seguintes termos:
“Ementa: Pessoa jurídica - Desconsideração da personalidade - Execução por quantia certa de título extrajudicial. Fraude Confusão patrimonial entre pessoas jurídicas e pessoas naturais. Pessoas naturais com vínculos familiares que são titulares de microempresas que atuam no mesmo ramo de confecção de peças de vestuário para venda em eventos esportivos - Autonomia patrimonial abrandada pela teoria da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. Desnecessidade da prova da ilicitude ou da fraude, bastando o uso inadequado do direito. Recurso provido, para a inclusão no polo passivo da microempresa DS Sports Confecções e Comércio de Roupas Eireli, ressalvado o seu direito à ampla defesa.”
Por tais razões, conclui-se pela inadequação da regra criada pela MP 881/19, que inseriu, de forma injustificada e confusa, hipótese excepcional de desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI, contrariando, inclusive, as próprias alterações promovidas pela mesma MP 881/19 no artigo 50 CC.
Por fim, cumpre salientar, sob uma perspectiva prática, que caso prospere a inclusão da “sociedade unipessoal” na realidade brasileira, a EIRELI tende a ter sua relevância e abrangência bastante reduzidas[16], o que tornaria referida regra absolutamente inócua.
Em linhas conclusivas, embora se reconheça o mérito da iniciativa que, entre outros propósitos, busca fomentar o desenvolvimento da atividade econômica na realidade brasileira, considera-se que as alterações decorrentes da MP 881/19, no tocante à parte de “Direito de Empresa” do Código Civil Brasileiro, dependem de maiores reflexões, as quais envolvem o aprimoramento de instituto jurídico já existente (EIRELI) e que se mostra apto a atender os mesmos objetivos das sociedades unipessoais. Caso as medidas sejam convertidas em lei pelo Congresso Nacional, devem ser objeto de ajustes e complementos nos moldes propostos neste artigo, a fim de evitar o estabelecimento de situações contraditórias e lesivas aos legítimos interesses sociais e econômicos que gravitam no ambiente empresarial brasileiro.
[1] Conforme destacado, dentre outros, por FILHO, Calixto Salomão. A sociedade unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995.
[2] Já que o §4º fora vetado e continha a seguinte redação: "§ 4º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente."
[3] Que, entre outras peculiaridades, passou a “subjetivar” a noção de “empresa”, entendida como “atividade econômica organizada” e adotou, equivocadamente, as expressões próprias do direito societário, tais como “capital social”, “denominação social”, entre outras, o que foi, inclusive, objeto de enunciado aprovado na “V Jornada de Direito Civil”, com o seguinte teor: “Enunciado 472. É inadequada a utilização da expressão “social” para as empresas individuais de responsabilidade limitada.”
[4] Tal como tivemos a oportunidade de ilustrar, por meio da apresentação de dados estatísticos, em LACERDA, Maurício Andere Von Bruck. Empresa Individual de Responsabilidade Limitada e sua natureza jurídica. In: Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); Diogo Leonardo de Machado. (Org.). PRODIREITO: Direito Civil: Programa de Atualização em Direito: Ciclo 1. 1ed.Porto Alegre: Artmed Panamericana, 2016, v. 3, p. 99-138.
[5] Nesse sentido COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial - Sociedades. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 46/47, que defende tratar-se a EIRELI de “sociedade limitada unipessoal”, sob os argumentos principais de que “ao disciplinar o instituto, o legislador valeu-se exclusivamente de conceitos do direito societário, como ‘capital social’, ‘denominação social’ e ‘quotas’. Mais que isto, referiu-se à EIRELI como uma ‘modalidade societária’ e submeteu-a ao mesmo regime jurídico da sociedade limitada.”
[6] Tal como defende GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa (Comentários aos arts. 966 a 1.195 do CC). 4ª edição. São Paulo: RT, 2012.p. 123, que considera a EIRELI “nova figura jurídica”, asseverando que “o legislador brasileiro procurou uma terceira via: não atribuiu ao empresário individual responsabilidade limitada aos bens que afetar à sua empresa, na linha da mais recente orientação do direito francês; também não escolheu o caminho da sociedade unipessoal. Preferiu a fórmula não societária sob peculiar roupagem, regulando uma nova figura jurídica”. A propósito, acrescenta-se a tal posição os fatos de terem sido criados um novo inciso (VI) para o artigo 44 do Código Civil, do qual já constavam expressamente “as sociedades” (inciso II); e um título próprio dedicado à nova modalidade de pessoa jurídica, no art. 980-A, que se situa imediatamente antes do “Título II – Da Sociedade”, cujo conceito do art. 981CC, fora integralmente mantido. Esse foi o entendimento alcançado na “V Jornada de Direito Civil”, pelo “Enunciado 469. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade, mas novo ente jurídico personificado.” e consolidado na “I Jornada de Direito Comercial”, por intermédio do “Enunciado 3. A Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI não é sociedade unipessoal, mas um novo ente, distinto da pessoa do empresário e da sociedade empresária.”
[7] Tal como salienta PEDRO, Paulo Roberto Bastos. Curso de direito Empresarial. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 47, ao analisar a imposição do capital mínimo à figura, “o próprio empresário é que saberá o seu verdadeiro e mais adequado valor, não podendo o Estado determinar um valor para este capital.”
[8] Registra-se, a respeito do assunto, a existência da Instrução Normativa DNRC n. 117, de 22 de novembro de 2011; da Instrução Normativa DREI n. 10, de 5 de dezembro de 2013 e, mais recentemente, da Instrução Normativa DREI n. 38/2017, de 2 de março de 2017, que permitiu a constituição de EIRELI por pessoa jurídica.
[9] Tal como decidido na V Jornada de Direito Civil, enunciado 468 “A empresa individual de responsabilidade limitada só poderá ser constituída por pessoa natural”. De um lado, juristas como Fábio Ulhôa Coelho e Márcio Tadeu Guimarães Nunes defendem que o intérprete não tem o poder de impor limitações que não constem, de forma expressa, do texto legal, em especial quando se trata de figura do universo do direito privado – e especialmente empresarial – no qual vigoram os princípios da livre iniciativa e da autonomia privada. No sentido contrário, Alfredo de Assis Gonçalves Neto e outros doutrinadores argumentam que a hermenêutica do referido instituto jurídico não deve se limitar a uma interpretação litero-gramatical do disposto no caputdo dispositivo legal em comento, reclamando uma interpretação sistemática e axiológica, de forma a proporcionar uma análise do disposto no caput e a sua harmonização com o conteúdo normativo dos parágrafos, que seja coerente com os valores e com os propósitos que influenciaram a construção da figura.
[10] “Art. 15 Os advogados podem reunir-se em sociedade simples de prestação de serviços de advocacia ou constituir sociedade unipessoal de advocacia, na forma disciplinada nesta Lei e no regulamento geral.”
[11] A respeito da evolução da figura no direito português ver CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito das Sociedades – Das Sociedades em geral – I. 2ª edição. 2007. Coimbra: Almedina, p. 245/249.
[12] Sociedades: Artigo 7º: Formas e parte do Contrato: 1 - O contrato de sociedade deve ser reduzido a escrito e as assinaturas dos seus subscritores devem ser reconhecidas presencialmente, salvo se forma mais solene for exigida para a transmissão dos bens com que os sócios entram para a sociedade, devendo, neste caso, o contrato revestir essa forma, sem prejuízo do disposto em lei especial. 2 - O número mínimo de partes de um contrato de sociedade é de dois, excepto quando a lei exija número superior ou permita que a sociedade seja constituída por uma só pessoa. (...)
[13] Sociedades unipessoais por quotas: Artigo 270º - A – Constituição: 1 - A sociedade unipessoal por quotas é constituída por um sócio único, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social. 2 - A sociedade unipessoal por quotas pode resultar da concentração na titularidade de um único sócio das quotas de uma sociedade por quotas, independentemente da causa da concentração. 3 - A transformação prevista no número anterior efectua-se mediante declaração do sócio único na qual manifeste a sua vontade de transformar a sociedade em sociedade unipessoal por quotas, podendo essa declaração constar do próprio documento que titule a cessão de quotas. 4 - Por força da transformação prevista no n.º 3 deixam de ser aplicáveis todas as disposições do contrato de sociedade que pressuponham a pluralidade de sócios. 5 - O estabelecimento individual de responsabilidade limitada pode, a todo o tempo, transformar-se em sociedade unipessoal por quotas, mediante declaração escrita do interessado. (...)
[14] Art. 4º: Liberdade de forma e direito subsidiário 1 - As sociedades de profissionais podem ser sociedades civis ou assumir qualquer forma jurídica societária admissível segundo a lei comercial, salvo o disposto no número seguinte.
2 - As sociedades de profissionais não podem constituir-se enquanto sociedades anónimas europeias.
3 - No que a presente lei não dispuser, são aplicáveis às sociedades de profissionais as normas da lei civil ou da lei comercial, consoante se trate de uma sociedade de profissionais sob a forma civil ou de uma sociedade de profissionais sob a forma comercial, respetivamente.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são aplicáveis às sociedades de profissionais que se constituam enquanto sociedades unipessoais por quotas as disposições da presente lei compatíveis com a sua natureza.
[15] § 6º Aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas.
[16] Tal como ocorreu na realidade portuguesa, em relação ao “estabelecimento individual de responsabilidade limitada”, após o advento da sociedade unipessoal, como referido por RAMOS, Maria Elisabete Gomes. Sociedade unipessoais – perspectivas da experiência portuguesa.Questões de Direito Societário em Portugal e no Brasil (Coord. Fábio Ulhôa Coelho e Maria de Fátima Ribeiro). Coimbra: Almedina, 2012, p. 376/377. o “e.i.r.l. não teve êxito no mundo empresarial português e, em particular, não pôs termos à prática das sociedades por quotas formalmente pluripessoais, mas de facto a funcionar como sociedades unipessoais”, concluindo que embora a figura ainda exista na realidade portuguesa encontra-se totalmente desprestigiada como alternativa para a limitação da responsabilidade do empresário individual, especialmente após o advento do Decreto Lei 33/2011, de 7 de março, o qual “introduziu na ordem jurídica portuguesa a vulgarmente designada ‘empresa de um euro’ ”, que se refere à sociedade por quotas “que, quando é unipessoal, pode ser constituída com capital social de um euro (art. 201º)”.
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