A Medida Provisória da “Liberdade Econômica” e a Desconsideração da Personalidade Jurídica (Art. 50, CC) : Primeiras Impressões.
Pablo Stolze[1]
1. Introdução
A Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, que instituiu a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, estabelecendo garantias de livre mercado e consagrando o princípio da intervenção mínima do Estado, causou forte impacto no Código Civil.
Diversas partes do Código foram atingidas:
a) O art. 421, norma-sede da função social do contrato, experimentou o acréscimo de um vetor referencial ou limitativo, com a inserção da expressão “observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”, além da consagração, em parágrafo único, do princípio da intervenção mínima do Estado: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional.”;
b) Ao art. 423, que regula a interpretação do contrato por adesão, fora acrescentado um parágrafo único que, tratando de contratos que não sejam pactuados sob a técnica por adesão, dispõe acerca da interpretação mais favorável a quem não redigiu a cláusula controvertida: “Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas que gerem dúvida quanto à sua interpretação, será adotada a mais favorável ao aderente. Parágrafo único. Nos contratos não atingidos pelo disposto no caput, exceto se houver disposição específica em lei, a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida.”;
c) Foram acrescentados, no Título dedicado aos Contratos em Geral, no Capítulo II, Seção IV, os arts. 480-A e 480-B, voltados, especialmente, ao reconhecimento da paridade nas relações interempresariais: Art. 480-A. Nas relações interempresariais, é lícito às partes contratantes estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual. Art. 480-B. Nas relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida.”;
d) Ao art. 980-A, que disciplina a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), fora acrescentado o § 7º, com o nítido intuito de destacar a autonomia entre os patrimônios do instituidor e da EIRELI: “§ 7º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude.”;
e) O art. 1.052, que dispõe sobre a sociedade limitada, recebeu um parágrafo único, passando a admitir a anômala figura da sociedade unipessoal: “Parágrafo único. A sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social.”;
f) Acrescentou-se, ainda, o Capítulo X ao Livro III do Direito das Coisas, dedicado ao “Fundo de Investimento” (arts. 1.368-C a 1.368-E): “Art. 1.368-C. O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros. Parágrafo único. Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto no caput. Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo único do art. 1.368-C: I - estabelecer a limitação da responsabilidade de cada condômino ao valor de suas cotas; e II - autorizar a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade. Art. 1.368-E. A adoção da responsabilidade limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança.”
E, nesse contexto, sofreu também impacto o art. 50 do Código Civil, dispositivo de grande importância jurídica, que regula a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Sobre tais alterações, compartilharemos as nossas primeiras impressões.
2. Algumas Palavras sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica[2]
A doutrina da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica (disregard of legal entity) ganhou força na década de 50, com a publicação do trabalho de ROLF SERICK, professor da Faculdade de Direito de Heidelberg.
Com fulcro em sua teoria, pretendeu-se justificar a superação da personalidade jurídica da sociedade em caso de abuso, permitindo-se o reconhecimento da responsabilidade dos sócios. O seu pensamento causou forte influência na Itália[3] e na Espanha[4].
Segundo a doutrina clássica, o precedente jurisprudencial que permitiu o desenvolvimento da teoria ocorreu na Inglaterra, em 1897[5].
Em linhas gerais, a doutrina da desconsideração pretende o afastamento temporário da personalidade da pessoa jurídica, em caso de abuso, a fim de que o credor possa satisfazer o seu direito no patrimônio pessoal do sócio ou administrador que cometeu o ato abusivo.
“O juiz pode decretar a suspensão episódica da eficácia do ato constitutivo da pessoa jurídica”, diz FÁBIO ULHOA COELHO, “se verificar que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou abuso de direito”[6].
Em nossa visão, a desconsideração da personalidade jurídica é perfeitamente aplicável também às empresas individuais de responsabilidade limitada (EIRELI), assim como poderá ser decretada em face de pessoas jurídicas sem finalidade lucrativa, como associações e fundações.
Em qualquer caso, a desconsideração não pode ser decretada de ofício, sendo matéria sob reserva de jurisdição - ou seja, de competência do Poder Judiciário -, a despeito de já ter havido precedente admitindo a desconsideração por ato direto da Administração (desconsideração administrativa)[7].
Sobre a possibilidade de decretação de ofício, poderíamos excepcionar a regra geral no sentido da sua vedação, em situações específicas e justificadas, como escreve, com habitual erudição o talentoso jurista FLÁVIO TARTUCE:
De início, estabelece o art. 133, caput, do Novo Código de Processo Civil que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. Assim, fica afastada, pelo menos a priori, a possibilidade de conhecimento de ofício, pelo juiz, da desconsideração da personalidade jurídica. Lembre-se de que a menção ao pedido pela parte ou pelo Ministério Público consta do art. 50 do Código Civil. Apesar disso, o presente autor entende que, em alguns casos, de ordem pública, a desconsideração da personalidade jurídica ex officio é possível. Citem-se, de início, as hipóteses envolvendo os consumidores (…) também é viável (…) nos casos de danos ambientais (…). A conclusão deve ser a mesma nas hipóteses envolvendo corrupção, por força da recente Lei 12.846/2013, de interesse coletivo inquestionável[8].
Na seara processual, de forma inovadora no Direito Positivo, o CPC/2015 trouxe disciplina específica para a desconsideração da personalidade jurídica, estabelecendo expressamente um procedimento para a sua aplicação (arts. 133 a 137).
Claro está que a desconsideração da personalidade jurídica do ente que serviu como escudo para a prática de atos fraudulentos, abusivos, ou em desvio de função não pode significar, ressalvadas hipóteses excepcionais, a sua aniquilação.
Entretanto, reconhecemos que, em situações de excepcional gravidade, poderá justificar-se a despersonalização, em caráter definitivo, da pessoa jurídica, entendido tal fenômeno como a extinção compulsória, pela via judicial, da personalidade jurídica. Apontam-se os casos de algumas torcidas organizadas que, pela violência de seus integrantes, justificariam o desaparecimento da própria entidade de existência ideal.
Assim sendo, o rigor terminológico impõe diferenciar as expressões: despersonalização, que traduz a própria extinção da personalidade jurídica, e o termo desconsideração, que se refere apenas ao seu superamento episódico, em virtude de fraude ou abuso.
Ambas, porém, não se confundem com a responsabilidade patrimonial direta dos sócios, tanto por ato próprio quanto nas hipóteses de corresponsabilidade e solidariedade[9].
Um importante ponto deve ainda ser ressaltado: o Código Civil, em seu art. 50, adotou a denominada teoria maior da desconsideração, por exigir, além da insuficiência patrimonial, pressuposto lógico, a demonstração do abuso caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
Contrapõe-se, pois, à denominada teoria menor da desconsideração, de aplicação mais facilitada, que exige, apenas, a insuficiência patrimonial, consagrada no Direito Ambiental e do Consumidor, bem como na Justiça do Trabalho.
3. O art. 50 e a Medida Provisória da “Liberdade Econômica” (MP nº 881/19)
Visando a imprimir um aspecto claro, preciso e objetivo a este texto, permitindo que o nosso leitor compreenda as alterações decorrentes da Medida Provisória, cuidaremos de estabelecer uma argumentação comparativa com a antiga redação do art. 50.
Pois bem, originalmente, a norma assim estava redigida:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Com a publicação da nova MP, a redação do caput passou a ser:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.(grifamos)
Lembrando o célebre embate linguístico entre RUI BARBOSA e CARNEIRO RIBEIRO, quando em discussão o Código de 1916, observamos a adequada supressão de uma vírgula antes do primeiro conectivo “ou”.
Houve também a substituição do verbo decidir, o que não alterou o sentido do texto, dada opções feita pelo legislador[10] em adotar o verbo “ desconsiderar”.
Andou muito bem o novo diploma ao acrescentar, no final do texto legal, a expressão “beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”, porquanto a desconsideração é instrumento de imputação de responsabilidade, não podendo, por certo, sob pena de se ignorar a exigência do próprio nexo causal, atingir sócio que não experimentou nenhum benefício (direito ou indireto) em decorrência do ato abusivo perpetrado por outrem.
Pois bem.
Ultrapassada a análise do caput, os parágrafos seguintes não constavam na redação original do Código Civil:
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.
Este parágrafo conceituou o desvio de finalidade.
A sua redação não nos agrada.
É tarefa primordial da doutrina firmar conceitos.
Mas, ainda que se obtempere que a definição trazida pelo legislador traria uma maior segurança jurídica, por outro, a expressa menção à “utilização dolosa” como requisito para caracterizar o desvio é, em nosso sentir, um retrocesso.
A desnecessidade de se comprovar o dolo específico - a intenção, o propósito, o desiderato - daquele que, por meio da pessoa jurídica, perpetrou o ato abusivo, moldou a teoria objetiva, mais afinada à nossa realidade socioeconômica e sensível à condição a priori mais vulnerável daquele que, tendo o seu direito violado, invoca o instituto da desconsideração.
FÁBIO KONDER COMPARATO afirmava que a “desconsideração da personalidade jurídica é operada como consequência de um desvio de função, ou disfunção, resultando, sem dúvida, as mais das vezes, de abuso ou fraude, mas que nem sempre constitui um ato ilícito”[11].
Ora, a exigência do elemento subjetivo intencional (dolo) para caracterizar o desvio, colocaria por terra o reconhecimento objetivo da tese da disfunção.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
O inciso III, deste § 2º, ao mencionar, genericamente, que caracterizam a confusão patrimonial “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”, resultou por tornar meramente exemplificativos os incisos anteriores.
Podem traduzir confusão patrimonial, por exemplo, a movimentação bancária em conta individual do sócio para as operações habituais da sociedade, o lançamento direto como despesa da pessoa jurídica de gastos pessoais do sócio ou administrador etc.
§ 3º O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.
Em nossa visão, consagrou-se, aqui, a desconsideração inversa ou invertida, o que significa ir ao patrimônio da pessoa jurídica, quando a pessoa física que a compõe esvazia fraudulentamente o seu patrimônio pessoal.
Trata-se de uma visão desenvolvida notadamente nas relações de família, de forma original, em que se visualiza, com frequência, a lamentável prática de algum dos cônjuges que, antecipando-se ao divórcio, retira do patrimônio do casal bens que deveriam ser objeto de partilha, incorporando-os na pessoa jurídica da qual é sócio, diminuindo o quinhão do outro consorte.
Nesta hipótese, pode-se vislumbrar a possibilidade de o magistrado desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, buscando bens que estão em seu próprio nome, para responder por dívidas que não são suas e sim de seus sócios, o que tem sido aceito pela força criativa da jurisprudência:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO MONITÓRIA.
CONVERSÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. COBRANÇA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS CONTRATUAIS. TERCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EXISTÊNCIA DA SOCIEDADE. MEIO DE PROVA. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. OCULTAÇÃO DO PATRIMÔNIO DO SÓCIO. INDÍCIOS DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EXISTÊNCIA. INCIDENTE PROCESSUAL.
PROCESSAMENTO. PROVIMENTO.
1. O propósito recursal é determinar se: a) há provas suficientes da sociedade de fato supostamente existente entre os recorridos; e b) existem elementos aptos a ensejar a instauração de incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
2. A existência da sociedade pode ser demonstrada por terceiros por qualquer meio de prova, inclusive indícios e presunções, nos termos do art. 987 do CC/02.
3. A personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade, reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe a existir.
4. Com a desconsideração inversa da personalidade jurídica, busca-se impedir a prática de transferência de bens pelo sócio para a pessoa jurídica sobre a qual detém controle, afastando-se momentaneamente o manto fictício que separa o sócio da sociedade para buscar o patrimônio que, embora conste no nome da sociedade, na realidade, pertence ao sócio fraudador.
5. No atual CPC, o exame do juiz a respeito da presença dos pressupostos que autorizariam a medida de desconsideração, demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração de incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a decisão de desconsideração ser precedida do efetivo contraditório.
6. Na hipótese em exame, a recorrente conseguiu demonstrar indícios de que o recorrido seria sócio e de que teria transferido seu patrimônio para a sociedade de modo a ocultar seus bens do alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que, pelo princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito estabelecido no CPC/15.
7. Recurso especial conhecido e provido.
(STJ, REsp 1647362/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 10/08/2017)
O Código de Processo Civil de 2015 expressamente contemplou a possibilidade jurídica desta modalidade de desconsideração, conforme se verifica do § 2.º do seu art. 133[12].
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Nada demais é dito aqui.
Nenhuma desconsideração poderá ser decretada, se os requisitos legais não forem obedecidos.
Um detalhe, todavia, deve ser salientado.
Se, por um lado, a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos legais não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, por outro, nada impede que, uma vez observados tais pressupostos, o juiz decida, dentro de um mesmo grupo, pelo afastamento de um ente controlado, para alcançar o patrimônio da pessoa jurídica controladora que, por meio da primeira, cometeu um ato abusivo.
Trata-se da denominada desconsideração indireta, segundo MARCIO SOUZA:
A desconsideração da personalidade jurídica para alcançar quem está por trás dela não se afigura suficiente, pois haverá outra ou outras integrantes das constelações societárias que também têm por objetivo encobrir algum fraudador.(…)
A jurisprudência tem adotado tal posicionamento: "Hipótese em que o acórdão embargado admitiu a aplicação da doutrina do "disregard of legal entity", para impedir a fraude contra credores, considerando válida penhorasobre bem pertencente a embargante, nos autos de execução proposta contra a outra sociedade do mesmo grupo econômico." (41). No mesmo sentido: "Sendo as empresas mera fachada de seu presidente comum, é de ser aplicado à hipótese a teoria da "disregard", agasalhada em nosso ordenamento, pelo art. 28, da Lei 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor)."[13]
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
Aqui, o desvio de finalidade - um dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica segundo o art. 50 - recebeu um segundo golpe (o primeiro decorreu da exigência do “dolo” para a sua configuração, conforme o §1º já analisado acima).
Ao dispor que não constitui desvio de finalidade a “alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica”, o legislador dificultou sobremaneira o seu reconhecimento: aquele que “ expande” a finalidade da atividade exercida - como pretende a primeira parte da norma - pode não desviar, mas aquele que “altera” a própria finalidade original da atividade econômica da pessoa jurídica, muito provavelmente, desvia-se do seu propósito.
Caberá, portanto, neste ponto, à jurisprudência, estabelecer as balizas razoáveis de interpretação para que o instituto da desconsideração não perca a sua eficácia, tão importante para a salvaguarda do crédito no Brasil.
Aguardemos.
[1] Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia e da Rede LFG. Co-autor do Manual de Direito Civil, do Novo Curso de Direito Civil e do Manual da Sentença Cível (Ed. Saraiva).
[2] Serviu de inspiração para este tópico o volume I - Parte Geral, do nosso Novo Curso de Direito Civil, 21ª ed. 2019, Ed. Saraiva, escrito em coautoria com Rodolfo Pamplona Filho.
[3] Na Itália, cita-se a grande contribuição de Piero Verrucoli, Professor da Universidade de Pisa, no seu estudo Il Superamento della Personalità Giuridica della Società di Capitali nella “Common Law” e nella “Civil Law”.
[4] Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 23. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 349.
[5] Trata-se do famoso caso Salomon v. Salomon & Co. Aaron Salomon, objetivando constituir uma sociedade, reuniu seis membros da sua própria família, cedendo para cada um apenas uma ação representativa, ao passo que, para si, reservou vinte mil. Pela desproporção na distribuição do controle acionário já se verificava a dificuldade em reconhecer a separação dos patrimônios de Salomon e de sua própria companhia. Em determinado momento, talvez antevendo a quebra da empresa, Salomon cuidou de emitir títulos privilegiados (obrigações garantidas) no valor de dez mil libras esterlinas, que ele mesmo cuidou de adquirir. Ora, revelando-se insolvável a sociedade, o próprio Salomon, que passou a ser credor privilegiado da sociedade, preferiu a todos os demais credores quirografários (sem garantia), liquidando o patrimônio líquido da empresa. Apesar de Salomon haver utilizado a companhia como escudo para lesar os demais credores, a Câmara dos Lordes, reformando as decisões de instâncias inferiores, acatou a sua defesa, no sentido de que, tendo sido validamente constituída, e não se identificando a responsabilidade civil da sociedade com a do próprio Salomon, este não poderia, pessoalmente, responder pelas dívidas sociais. “Mas a tese das decisões reformadas das instâncias inferiores repercutiu”, assevera RUBENS REQUIÃO, pioneiro no Brasil no estudo da matéria, “dando origem à doutrina do disregard of legal entity, sobretudo nos Estados Unidos, onde se formou larga jurisprudência, expandindo-se mais recentemente na Alemanha e em outros países europeus” (ob. cit.).
[6] Fábio Ulhoa Coelho, Desconsideração da Personalidade Jurídica, São Paulo: RT, 1989, p. 54. Parece-nos, porém, que o ilustrado e reconhecido Professor, posteriormente à edição de sua excelente monografia, passou a sustentar um pensamento situado entre as linhas subjetivista e objetivista, consoante se depreende da seguinte lição: “em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante” (Curso de Direito Comercial, São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 44).
[7]Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE.
PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual, com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
- A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular.
- Recurso a que se nega provimento.
(RMS 15.166/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2003, DJ 08/09/2003, p. 262)
[8] Flávio Tartuce. Manual de Direito Civil - Volume Único. 7ª ed. São Paulo: Gen, 2017, págs. 192-193.
[9] Cf., por exemplo, o art. 135 do Código Tributário Nacional:
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I - as pessoas referidas no artigo anterior;
II - os mandatários, prepostos e empregados;
III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
[10] Utilizamos a expressão “ legislador”, com a ciência de que se trata de lei apenas em sentido material, dado que se trata de uma Medida Provisória.
[11] Fábio Konder Comparato, O Poder de Controle na Sociedade Anônima, 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 284-6.
[12] CPC/2015: “§ 2.º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica”.
[13] Márcio Souza Guimarães. Aspectos modernos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/3996>. Acesso em: 1 maio 2019.
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