A LEI N. 13.811/2019 E A UNIÃO ESTÁVEL DO MENOR DE 16 ANOS
Flávio Tartuce[1]
Em texto anterior, publicado neste canal, fiz uma breve e inicial análise da Lei n. 13.811/2019, que alterou o art. 1.520 do Código Civil Brasileiro, passando a proibir, expressamente, o casamento do menor de 16 anos, denominado por alguns como casamento infantil. Conforme o atual texto do dispositivo da codificação privada, “não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código”.
Como antes pontuei, não houve alteração ou revogação expressa de qualquer outro comando do Código Civil em vigor. Diante dessa realidade legal, e como o menor de 16 anos já era considerado incapaz para o casamento pelo sistema anterior, manifestei a minha opinião doutrinária no sentido de subsistir a nulidade relativa ou anulabilidade do casamento do menor de 16 anos. Assim, continua plenamente em vigor o art. 1.550, inc. I, da codificação material, que assim o expressa. A mesma conclusão vale para os dispositivos que tratam da possibilidade de convalidação do casamento do menor (arts. 1.551 e 1.553 do CC/2002); da norma que elenca os legitimados para promoverem a ação anulatória (art. 1.552) e do comando que consagra o prazo decadencial de 180 dias para o ingresso da ação anulatória do casamento em casos tais (art. 1.560, § 1º).
Não me convence, portanto, a afirmação feita por alguns doutrinadores no sentido de ser o casamento infantil nulo de pleno direito, diante da norma emergente. Argumentam que a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção, presente a chamada nulidade virtual, nos termos do art. 166, inc. VII, segunda parte, do Código Civil. Contudo, com o devido respeito, esse comando geral somente seria aplicado se não existissem todas as disposições específicas citadas, que não foram revogadas expressa ou tacitamente pela Lei n. 13.811/2019. Para afastar a alegação de revogação tácita, lembro e insisto: o casamento do menor de 16 anos já não era admitido pelo sistema jurídico nacional, presente hipótese de incapacidade para o ato.
Resta agora analisar a hipótese fática da união estável constituída pelo menor de 16 anos. Seria ela nula ou perfeitamente válida, na realidade jurídica brasileira? A resposta a essa indagação é importante pois, estando proibido peremptoriamente o casamento infantil, a união estável acaba sendo uma opção para muitas pessoas que querem constituir outra entidade familiar. Imagine, por exemplo, o caso de uma menor com 15 anos de idade que engravida do namorado de 18 anos e que pretende com ele viver em estado de conjugalidade, cuidando do filho havido dessa união, em comunhão plena de vidas.
Como é notório, a união estável é tida como uma união livre, cujos elementos caracterizadores constam do art. 1.723 da codificação privada, segundo o qual é reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, "configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". São seus elementos fundamentais, portanto: a) a convivência pública, no sentido de notória ou conhecida; b) a continuidade e certa durabilidade da união, o que não encontra previsão de um prazo mínimo na lei, demandando análise casuística; c) o objetivo de constituição de família já presente no caso concreto (intuitu familiae), o que serve para diferenciar essa entidade familiar de um namoro ou de um noivado, hipóteses em que o objetivo é de constituição de uma família no futuro.
Não há qualquer dispositivo que trate da idade mínima para a sua constituição, a exemplo do que ocorre com o casamento, estando a idade núbilde 16 anos fixada no antes citado art. 1.517 do Código Civil. Sobre a união estável, há outro comando a ser destacado, que afasta a sua caracterização em havendo impedimento matrimonial, prevendo o art. 1.727 da codificação que "as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato". Todavia, como adverti em meu texto anterior, a questão da idade não importa em impedimento para o casamento, mas em questão afeita à incapacidade matrimonial. Por isso, o último preceito não tem incidência para a temática que ora se analisa.
Apesar dessa ausência de norma específica relativa à capacidade para a constituição da união estável, é forte o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que devem ser observados, por analogia, os mesmos critérios presentes para o casamento. Seguindo essa posição, a união estável do menor de 16 anos deve ser tida como nula ou até como inexistente. Isso porque, em havendo incapacidade para o casamento, esta também se faz presente para a união estável, aplicando-se o art. 1.517 do Código Civil para a última entidade familiar. Não se cogita a anulabilidade da união estável pela falta de previsão legal a respeito da invalidade, ao contrário do que ocorre com o casamento (art. 1.550, inc. I, do CC). Nesse sentido, colaciona-se, entre os arestos estaduais:
"DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. CONFIGURAÇÃO DA UNIÃO. REQUISITOS. MENOR DE 16 ANOS. RECUSA DO GENITOR. AUSÊNCIA DOS ELEMENTOS NECESSÁRIOS À CONFIGURAÇÃO DA UNIÃO. RECURSO DESPROVIDO. I. Para a configuração da União protegida pelo ordenamento constitucional, exige-se, primordialmente, que o relacionamento ostente estabilidade e que, por conseguinte, seja contínuo, ou seja, sem interrupções e sobressaltos, pressupondo-se, ainda, a publicidade e o essencial objetivo de constituição de família, traduzido na comunhão de vida e de interesses, além da ausência de impedimentos ao Casamento e a capacidade para casar, nos termos do artigo 1.517, do Código Civil. II. Inviável a qualificação como União Estável da relação amorosa mantida por aquele que ainda não alcançou a idade núbil, dada a ausência de capacidade para a manifestação plena da sua intenção de constituir família, circunstância essa que não restou suprida, na espécie, pela autorização do representante legal, em virtude da manifesta recusa do genitor do de cujus no reconhecimento do vínculo familiar pretendido. III. Conquanto seja certo que a Recorrente e o de cujus mantiveram relacionamento amoroso até o momento do óbito, não se afigura possível afirmar, com amparo no contexto probatório dos autos, que referida relação ostentava estabilidade, continuidade e publicidade compatível com o objetivo mútuo de comunhão familiar, afastando-se a pretensão de reconhecimento da União Estável post mortem. IV. Recurso conhecido e desprovido, nos termos do voto do Eminente Desembargador Relator" (TJES, Apelação cível n. 0011778-29.2010.8.08.0030, Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Namyr Carlos de Souza Filho, julgado em 07.08.2012, DJES 14.08.2012).
“Apelação cível. Ação de reconhecimento de união estável. Instituto equiparado, por analogia, ao casamento. Convivente menor de idade ao tempo da união. Ausência de idade núbil. Aplicação do art. 1.517, do Código Civil. Impossibilidade jurídica do pedido. Recurso conhecido e desprovido. I. Primeiramente, a Lei n. 9.278/1996 reconheceu a união estável e disciplinou os direitos e deveres dos companheiros perante a entidade familiar, bem como os direitos patrimoniais e sucessórios advindos dessa espécie de relacionamento. Contudo, omissa a aludida Lei acerca dos requisitos necessários a sua efetivação, aplicáveis, por analogia, as disposições contidas no Código Civil que regulamentam o casamento, por se tratar de institutos jurídicos que se equiparam, em que pese distintos (art. 226, § 3.º, CF). III. Consoante disposição contida no art. 1.517 do Código Civil, podem casar o homem e a mulher com dezesseis anos, exigida a autorização dos pais ou representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil. Todavia, ausente idade núbil mínima exigida pela legislação, não há falar em casamento ou reconhecimento da união estável, por impossibilidade jurídica do pedido” (TJSC, Apelação Cível 2008.007832-0, Criciúma, 1.ª Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Joel Dias Figueira Júnior, j. 02.05.2011, DJSC31.05.2011, p. 114).
Entretanto, é possível concluir de forma diversa, entendimento sobre o qual tenho refletido a partir da entrada em vigor da Lei n. 13.811/2019. De início, para afastar a tese quanto à aplicação do art. 1.517 do Código Civil por analogia, lembro que se trata de norma restritiva, que, como tal, não comporta essa forma de integração, prevista no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
Sobre o argumento de equiparação das duas entidades familiares – que ganhou força com o julgamento do STF de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, publicado no Informativo n. 864 da Corte –, anote-se a afirmação no sentido de que permanecem diferenças entre o casamento e a união estável, sobretudo quanto às normas de constituição e de formalidades. Nesse sentido, pelo menos parcialmente, o Enunciado n. 641, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal em 2018: "a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável".
A eventual conclusão pela existência e validade da união estável do menor de 16 anos tem como fundamento a afirmação doutrinária no sentido de tratar-se de um ato-fato jurídico, um fato jurídico qualificado por uma vontade não relevante em um primeiro momento, mas que se revela relevante por seus efeitos. Em havendo tal instituto, mitigam-se as regras de validade, notadamente as que dizem respeito à capacidade. Nesse contexto, não deve ser considerada a incapacidade absoluta prevista no art. 3º do Código Civil, quanto aos menores de 16 anos. Relativiza-se, ainda, o que consta do art. 166, inc. I, da própria codificação, no sentido de ser nulo o negócio jurídico celebrado por absolutamente incapaz, sem a devida representação.
A melhor expressão de análise casuística da vontade no ato-fato jurídico é retirada do teor do Enunciado n. 138, aprovado na III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual a vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese dos menores de 16 anos, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto. Não se pode negar que a constituição de uma união estável é uma situação existencial e, tendo o menor de idade o necessário discernimento para esse ato familiar, pode ele ser tido como plenamente válido.
Sempre tive minhas resistências em relação ao ato-fato jurídico, por entender que a categoria não teria a necessária e efetiva aplicação prática no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, quanto à união estável, vinha sustentando tratar-se de um negócio jurídico ou de um ato jurídico em sentido estrito, a depender da qualificação da vontade no caso concreto. Todavia, a hipótese fática de união estável do menor de 16 anos traz conclusão em sentido contrário, de efetividade do instituto, sendo viável doutrinariamente adotá-lo em casos tais.
Como palavras finais, nota-se que o casamento e a união estável acabam por receber uma certa condenação legislativa prévia em alguns casos, no sentido de não admiti-los para não prejudicarem determinadas pessoas, tidas como em situações de vulnerabilidade. Esse raciocínio, por exemplo, fazia com que fosse proibido o casamento do enfermo mental, conforme a redação original do art. 1.548, inc. I, do Código Civil, revogado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015). Essa revogação, propiciando o casamento da pessoa com deficiência, evidencia o pensamento em contrário, de não se poder considerar a constituição da entidade familiar como prejudicial.
Todavia, a ideia de condenar a constituição da família parece ter voltado com a emergência da Lei n. 13.811/2019, na alteração relativa ao art. 1.520 do Código Civil. Seria correto estender tal raciocínio à união estável? Entendo que existem motivos consideráveis para se afirmar que não, dando-se ao sistema jurídico certa margem de liberdade para o exercício da autonomia privada quanto à escolha de uma ou outra entidade familiar.
[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor Titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Professor do G7 Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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