2017: o ano do retrocesso representativo do direito do
consumidor
Fernando Rodrigues Martins
Promotor de Justiça
Professor de Direito - UFU
O ano de 2017 revelou retrocessos
significativos na promoção do consumidor no Brasil. De início é imperativo relembrar
a conversão da MP nº 764/16 na Lei federal nº 13.455/17. Referida legislação
permite a possibilidade de forma de pagamento diferenciada entre consumidores
(cartão de crédito e pagamento à vista). Dois aspectos são importantes para
considerar.
O primeiro procedimental referente ao trâmite legislativo em si: o governo inicialmente
valeu-se de medida provisória para tratar de tema nada urgente (CF, art. 62, caput) corrompendo a lisura do debate
democrático, deixando de lado a oitiva da população, bem como perdendo a
oportunidade em tratar do tema nos projetos de atualização do CDC (PLs 3514/15
e 3.515/2015), onde há
comissão de juristas com larga experiência. O segundo valorativo que respeita à pertencialidade
sistêmica da lei: há ofensa clara ao princípio da não discriminação entre
consumidores (CDC, art. 6º, inc. II; CF, art. 5º, caput), verdadeira norma
de imunização do direito em face das ‘diferenças jurídicas’, já que no âmbito
do direito os casos devem ser tratados igualmente.
Também o fim da franquia das bagagens no
transporte aéreo atingiu diretamente o consumidor que nos últimos anos passou a
ter maior acesso às viagens nacionais e internacionais. A nova regulamentação derivada
da ANAC não levou em consideração igualmente princípios básicos de promoção ao
vulnerável, senão o contrário: mera análise mercadológica. Curiosamente e ao
lado disso, o STF julgou a prevalência da Convenção de Varsóvia sobre o CDC (RE
636.331 – rel. Min. Gilmar Mendes) quanto ao tema de responsabilidade civil em
voos internacionais. Portanto, ‘injustiça casada’ e considerável: pagamos mais e somos indenizados menos!
Outro ponto de diminuição da potência de
empoderamento do consumidor foi travado na movimentação do setor imobiliário,
com ampla adesão do governo, quanto às resilições dos contratos de incorporação
imobiliária e o percentual de devolução dos valores pagos pelos adquirentes. Sob
a falácia de falta de disciplina quanto
ao tema, propostas foram espargidas esvaziando os conteúdos normativos de
proteção consumerista (CDC, art. 4º, inc. I, art. 51, IV e art. 53), bem como de
equilíbrio entre iguais (CC, art. 884), chegando ao absurdo de indicar como equivalente
a ser restituído apenas vinte por cento (20%) do valor pago. O acinte é tão
tormentoso que opera contra as bases do direito natural, especialmente a
proibição do locupletamento à custa alheia e caminha contra jurisprudência
consolidada, como na hipótese da Súmula STJ – 543.
O pior ainda se avizinha quanto aos
planos de saúde, cujo debate se estenderá para 2018. A reforma anunciada é
aquela que projeta diminuição nos atendimentos, nas coberturas e, sobretudo,
consolida a ênfase nos contratos coletivos onde a igualdade entre contratantes
‘pessoa jurídica’ é presumida. Verdadeiro escárnio quanto à natureza do contrato que transmudou de aleatório quanto ao risco para
comutativo pelos serviços, fustigando a dependência de vida e saúde do
vulnerável em benefício dos investimentos no mercado financeiro pelas
operadoras de saúde.
Entretanto, o mais impactante retrocesso
se dá justamente no campo da representatividade do consumidor. As entidades
associativas de promoção ao consumidor, especialmente aquelas integradas por
operadores do direito e juristas, pouco fizeram no campo do embate e das
críticas às proposições legislativas e regulatórias. Construíram mais discussões
internas sem efetividade do que foram a público fomentar o debate e exortar a
ampla participação do cidadão para frear tantos desvios de perspectivas.
Aliás, é importante não esquecer da
ancoragem básica que deve unir todos os ‘militantes’ da promoção do consumidor,
conforme eixo fixado pela Constituição Federal: direito fundamental. Observe
que a opção constitucional brasileira foi tratar subjetivamente um dos entes da relação de consumo, diferenciando-o
dos demais atores mercadológicos (como diz a densa doutrina: agente constitucionalmente designado)[1]. Verba gratia, enquanto em muitos países
a aplicação do direito do consumidor se dá pela consagração de relação jurídica
(como no caso de Portugal), no Brasil o liame intersubjetivo fica em segundo
plano, dando-se azo à proteção da pessoa consumidora.
A convivência entre os ilustres partícipes
dessas associações vai demonstrando a enxurrada de teorias utilizadas para a
tutela do consumidor (paternalismo, análise econômica do direito, economia
comportamental etc.), as quais – muito embora consistentes no aspecto da
multidisciplinariedade – não dão a mesma vazão da articulação do direito do
consumidor como instrumento de mobilização social, consciência, resistência e
emancipação. Em outras palavras: manter o foco é necessário para preservação de
nosso ‘diamante ético’[2].
Outra questão a ser enfrentada são os
limites dessas associações na celebração de transações e acordos coletivos na
defesa do consumidor. Há necessidade de evitar situações macabras e atalhos
nefastos aos consumidores, caso contrário a representação será pior que as ‘legislações
encomendadas’. Mire-se no exemplo de transação realizada por entidade representativa
com incorporadora imobiliária e que até tempos atuais pulveriza enormes
prejuízos na adequada defesa do consumidor[3].
No ano vindouro, as entidades
representativas necessitam se reinventar, recuperar valores, estabelecer estratégias
metodológicas coerentes, sistêmicas e propositivas, sob pena de se aliarem ao
governo e ao mercado no esfacelamento dos consumidores.