quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

DEBATE COM ANDRÉ BARROS. JORNAL CARTA FORENSE. BEM DE FAMÍLIA DE ALTO VALOR

Debate com André Barros. Jornal Carta Forense. Edição de Janeiro de 2017. Matéria de capa. Penhora de bem de família de alto valor.
Penhora do Bem de Família de alto valor: impossibilidade
Flávio Tartuce. Advogado. Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Autor do Grupo GEN Editorial.
O bem de família é um dos temas mais controvertidos do Direito brasileiro, trazendo debates interessantes sobre a interpretação da Lei n. 8.009/1990. Uma dessas questões de discussão jurídica diz respeito à existência ou não de um teto para o valor do imóvel que deve ser considerado como impenhorável, por força do art. 1º da citada norma jurídica.  
 Com o devido respeito ao posicionamento em contrário, parece-nos correta a conclusão que não estabelece limite de valor para o bem de família. Pensamos que essa afirmação deve ser mantida na vigência do Código de Processo Civil de 2015, a despeito de eventual posicionamento em contrário, que pretende levar em conta algum parâmetro. Nessa linha de pensamento, colaciona-se acórdão anterior do Superior Tribunal de Justiça, assim publicado no seu Informativo 441: “Penhora. Bem de Família. Valor Vultoso. Na espécie, o mérito da controvérsia é saber se o imóvel levado à constrição situado em bairro nobre de capital e com valor elevado pode ser considerado bem de família para efeito da proteção legal de impenhorabilidade, caso em que não há precedente específico sobre o tema no STJ. Ressalta o Min. Relator que, nos autos, é incontroverso o fato de o executado não dispor de outros bens capazes de garantir a execução e que a Lei n. 8.009/1990 não distingue entre imóvel valioso ou não, para efeito da proteção legal da moradia. Logo o fato de ser valioso o imóvel não retira sua condição de bem de família impenhorável. Com esse entendimento, a Turma conheceu em parte do recurso e lhe deu provimento para restabelecer a sentença. Precedentes citados do STF: RE 407.688-8-SP, DJ 06.10.2006; do STJ: REsp 1.024.394-RS, DJe 14.03.2008; REsp 831.811-SP, DJe 05.08.2008; AgRg no Ag 426.422-PR,  DJe 12.11.2009; REsp 1.087.727-GO, DJe 16.11.2009, e REsp 1.114.719-SP, DJe 29.06.2009” (STJ, REsp. 715.259/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05.08.2010).
Interessante perceber que o próprio Relator do último acórdão, o Ministro Luis Felipe Salomão, propôs, em setembro de 2016, uma revisão daquela posição anterior, quando do julgamento do Recurso Especial 1.351.571/SP. Segundo o magistrado, “o princípio da isonomia se vê afrontado por situação que privilegia determinado sujeito sem a correspondente razão que justifica esse privilégio. A questão exige muito mais que a simples interpretação literal da norma legal”. E mais, de acordo com as suas palavras: “a proposta é de afastamento da absoluta impenhorabilidade, e da possibilidade de ser afastada diante do caso concreto e da ponderação dos direitos em jogo. Não a imposição de nova sistemática. Se o objetivo da lei é garantir a dignidade humana e direito à moradia, acaso deferida, os bens jurídicos manterão incólumes. Ela continua morando em local com dignidade, superior à média”.
Apesar dos louváveis argumentos do Ministro Relator, a Quarta Turma do Tribunal da Cidadania acabou por confirmar a posição anterior, tendo se posicionado pela manutenção da impenhorabilidade do bem de família de alto valor os Ministros Marcos Buzzi – com voto prevalecente –, Maria Isabel Gallotti, Raul Araújo e Antonio Carlos Ferreira.
Como o devido respeito ao Ministro Salomão – com quem compartilhamos diversas posições sobre o Direito Privado Brasileiro –, aqui ficamos com a maioria dos julgadores.  As indagações e ponderações do voto-vista do Ministro Buzzi demonstram todas as dificuldades que surgem da tentativa de limitação de um montante fixo para o imóvel protegido pelo manto da impenhorabilidade: “o que é considerado bem de alto valor? Qual o patamar monetário a ser utilizado? O valor venal do imóvel, a quantia estipulada pelo mercado imobiliário, o critério pessoal do credor ou do julgador? Certamente, não fosse o tema tão intrigante e com inúmeros vetores econômicos, sociais, desenvolvimentistas, já se teria estipulado, inclusive, o imposto sobre grandes fortunas, porém nesse campo as indagações são as mesmas: o que é considerado grande fortuna? Qual o patamar monetário a ser considerado? etc. Como é sabido, o Brasil é um país continental, para cada região e localidade os critérios e padrões afetos tanto a valores necessários para a sobrevivência digna do ser humano como aqueles referentes ao mercado imobiliário são absolutamente diversos. Tanto o é que, na hipótese, o próprio credor afirma gravitar o valor de avaliação do imóvel entre R$ 470.000,00 e R$ 1.200.000,00, ou seja, uma diferença monetária subjetiva de mais de 250 por cento (2 vezes e meia), a denotar a total ausência de critério minimante objetivo para a aferição da grandeza imobiliária, bem ainda do que se compreende por alto valor” (julgamento do Recurso Especial 1.351.571/SP).  
De fato, na linha desse voto e dos outros que seguiram, pensamos que o parâmetro para a fixação do que seja bem de alto valor deve ser fixado pelo legislador, e não pelo julgador. Em complemento, tal limitação deve ser inserida de forma expressa no art. 3º da Lei n. 8.009/1990, norma que estabelece taxativamente as exceções à impenhorabilidade do imóvel destinado à residência da entidade familiar.  Não se olvide, na linha do que reconheceu o Ministro Buzzi, que o STJ tem dado uma interpretação extensiva para a tutela do bem de família, como o fez ao editar a sua Súmula 364, que reconhece a impenhorabilidade do imóvel onde reside pessoa solteira, separada ou viúva. Eventual limitação de valor pelo Tribunal está na contramão dessa posição superior, representando um contrassenso em relação a outras teses da própria Corte.
Como palavras finais, não se pode negar que o Novo Código de Processo Civil traz quebras quanto às proteções pela impenhorabilidade. Tanto isso é verdade que o seu art. 833 passou a elencar os bens impenhoráveis e não mais absolutamente impenhoráveis, como constava do art. 649 do CPC/1973, seu correspondente. Houve, nessa mudança, um claro sentido de abrandamento. Além disso, a própria norma processual emergente reconhece a possibilidade de penhora de pensões, salários e rendimentos em montantes superiores a cinquenta salários mínimos (art. 833, § 2º). Todavia, no que diz respeito ao bem de família nada inovou quanto a um teto de proteção. Como o legislador processual não o fez – e talvez tenha perdido a chance de fazê-lo –, não cabe ao julgador tal tarefa, sob pena de sacrifício de proteção da moradia, direito social e fundamental amparado pelo art. 6º da Constituição da República.
Penhora do Bem de Família de alto valor: possibilidade
André Borges de Carvalho Barros. Registrador civil. Doutorando pela FADISP e Mestre pela PUCSP. Professor de Direito Civil e do Consumidor do Curso Damásio e da Escola Paulista de Direito.
despatrimonialização do direito civil e a consagração do ser como fim e não como meio do direito resultaram no reconhecimento de diversos direitos da personalidade voltados à proteção dos mais variados aspectos da integridade física, psíquica e intelectual da pessoa humana. Contudo, o efetivo abrigo da dignidade da pessoa humana demanda, além dos direitos da personalidade, a proteção de um mínimo patrimonial que atenda às necessidades mais básicas do ser, como reconheceu o professor e ministro do STF Luiz Edson Fachin em sua famosa obra “Estatuto jurídico do patrimônio mínimo”.
 Neste sentido, o bem de família é, sem dúvida, o exemplo mais forte da importância do patrimônio para a consagração da dignidade do indivíduo, garantindo o direito social à moradia do devedor face ao crédito de outrem.   De acordo com a Lei 8.009/90 o bem de família legal é impenhorável, não respondendo por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos seus titulares, salvo nas hipóteses excepcionadas no artigo 3º, como a obrigação decorrente de alimentos, hipoteca, fiança, tributos relativos ao próprio imóvel etc.
Embora não exista qualquer limitação expressa na Lei 8.009/90 quanto ao valor do imóvel para que seja protegido como bem de família, algumas disposições restritivas chamam a atenção e merecem ser destacadas. Como a regra presente no artigo 5º, parágrafo único, pela qual se a pessoa for titular de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado como bem de família voluntário, nos termos e nos limites estabelecidos pelo Código Civil. Sim, o Código Civil limita o valor do bem de família voluntário a uma terça parte do patrimônio líquido da pessoa, apurada no momento da instituição.
Voltando à Lei 8.009/90, o artigo 4º determina que não será protegido aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga. Reconhecendo este propósito o juiz poderá, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso.
Tratando-se de imóvel rural, o parágrafo 2º do mesmo artigo 4º da Lei 8.009/90, dispõe que a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, com relação às dívidas decorrentes de sua atividade produtiva à área limitada como pequena propriedade rural (art. 5º, inciso XXVI, CF).

Quantos aos móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência, o artigo 833, inciso II, do novo Código de Processo Civil, manteve a regra introduzida no diploma anterior pela Lei 11.382/06, pela qual a impenhorabilidade não alcança aqueles de elevado valor e os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;
A existência de exceções à impenhorabilidade e de tantas regras restritivas não pode ser ignorada. O legislador brasileiro não instituiu um direito absoluto, mas limitado e vinculado a um fim específico: o direito à moradia digna. A ausência de limite quanto ao valor ou tamanho do imóvel urbano destoa da própria ratio do instituto desvirtuando-o. Afinal qual a lógica em restringir a proteção de acordo com o tamanho do imóvel rural e não fazê-lo quanto ao urbano?
A quebra da isonomia fica ainda mais evidente quanto nos atentamos ao fato de que a restrição da área rural pode diminuir ou até extinguir a fonte de sustento do homem do campo, enquanto que a restrição do tamanho do imóvel urbano não afeta a sobrevivência do homem da cidade que normalmente garante seu sustento com o trabalho externo. Não bastasse a antinomia valorativa do próprio ordenamento jurídico, no plano dos fatos a situação não se revela diferente.
A inexistência de restrição ao valor do imóvel dá azo a situações teratológicas, não sendo incomum a proteção de um devedor milionário diante de credores não tão favorecidos economicamente. Não é demais lembrar que quando da ampliação dos direitos do trabalhador doméstico, a Lei Complementar 150/2015 revogou o inciso I do artigo 3º, que afastava a impenhorabilidade para execução dos respectivos créditos. Desta forma, o empregado doméstico não pode mais requerer a penhora do imóvel em que trabalhava para garantir o seu salário, ainda que o imóvel seja de altíssimo valor.
É evidente que nesta época de excessivo subjetivismo judicial, a solução ideal para a questão da penhorabilidade do imóvel de elevado valor deveria ser apresentada pelo legislador, com a discriminação objetiva de limites pela extensão ou valor do bem, e restringindo a possibilidade a determinados créditos (ex: trabalhistas). Enquanto isso não ocorre, é possível a limitação da impenhorabilidade em situações absurdas com base na própria constituição federal, identificando qual é o direito patrimonial que efetivamente consagra o princípio da dignidade da pessoa humana.
O que garante a proteção do direito patrimonial do devedor (propriedade) face ao direito patrimonial do credor (crédito) é a pressuposição de que o primeiro consagra a dignidade do ser humano, ao garantir a moradia, e o segundo não. Pois bem, na prática essa pressuposição pode não se confirmar e se apresentar de forma oposta, como exemplificamos acima. A impossibilidade de penhorar um bem de família de elevado valor para executar o crédito de um trabalhador pode afetar a sua própria sobrevivência: sem receber o seu salário não conseguirá arcar com os custos de sua alimentação, saúde e até mesmo moradia (aluguel, condomínio, prestação de financiamento). Indaga-se: apenas o devedor tem direito à moradia? Apenas o devedor tem direitos existenciais e sociais?
É imperioso reconhecer que em situações muito peculiares o direito ao crédito pode estar mais próximo do cumprimento do comando constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana do que a impenhorabilidade do bem de família de elevado valor. O direito à moradia que pode estar sob risco é o do credor e não o do devedor, pois com a arrematação do bem de elevado o juiz deverá reservar para o devedor uma parcela considerável do valor obtido para aquisição de outro imóvel residencial.
Não é demais dizer que é somente na hipótese de deslocamento do fundamento axiológico (proteção da dignidade da pessoa humana) da propriedade para o crédito, do devedor para o credor, que entendemos possível afastar a proteção do bem de família de elevado valor. Em hipóteses em que o crédito não tem lastro na dignidade da pessoa humana e em direitos existenciais (credor abastado, crédito de dívidas fiscais, bancárias etc.) ou em que o bem de família tem valor moderado tal medida é inconstitucional.

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