quarta-feira, 17 de agosto de 2011

STJ RECONHECE IMPLICITAMENTE DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PARA O COMPANHEIRO.

Direito Civil - Sucessões - Direito real de habitação do cônjuge supérstite - Evolução legislativa - Situação jurídica mais vantajosa para o companheiro que para o cônjuge - Equiparação da União Estável - 1 - O CC/1916, com a redação que lhe foi dada pelo Estatuto da Mulher Casada, conferia ao cônjuge sobrevivente direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que casado sob o Regime da Comunhão Universal de Bens. 2 - A Lei nº 9.278/1996 conferiu direito equivalente aos companheiros e o CC/2002 abandonou a postura restritiva do anterior, estendendo o benefício a todos os cônjuges sobreviventes, independentemente do regime de bens do casamento. 3 - A CF (art. 226, § 3º), ao incumbir o legislador de criar uma moldura normativa isonômica entre a união estável e o casamento, conduz também o intérprete da norma a concluir pela derrogação parcial do § 2º do art. 1.611 do CC/1916, de modo a equiparar a situação do cônjuge e do companheiro no que respeita ao direito real de habitação, em antecipação ao que foi finalmente reconhecido pelo CC/2002. 4 - Recurso Especial improvido (STJ - 3ª T.; REsp nº 821.660-DF; Rel. Min. Sidnei Beneti; j. 14/6/2011; v.u.).




ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os Autos em que são partes as acima indicadas,

Acordam os Ministros da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao Recurso Especial, nos termos do Voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília, 14 de junho de 2011

Sidnei Beneti

Relator

RELATÓRIO

O Exmo. Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): ... e outros interpõem Recurso Especial com fundamento na alínea a do inciso III do art. 105 da CF, contra Acórdão proferido pelo TJDFT, Relator o Desembargador Romeu Gonzaga Neiva, cuja ementa ora se transcreve (fls. 165-166):

“Civil. Reintegração de posse. Direito real de habitação de cônjuge sobrevivente. Improcedência do pedido. Aplicação do novo CC. Análise do feito sob a ótica de imissão de posse. 1 - No aspecto concernente à análise do feito sob a ótica de imissão de posse, creio ter o nobre Juiz sentenciante discorrido com acerto que ‘imissão na posse agasalha a mesma natureza de ação possessória’ (fls. 126), motivo que torna descaracterizados os fundamentos afirmados no Recurso, ensejando o inacolhimento do pedido. 2 - Ainda que no presente caso recaia sobre o cônjuge sobrevivente parte ínfima do direito sobre o imóvel (1/4 da meação), extrai-se do novo CC a garantia do direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência, desde que seja o único a inventariar, conforme dispõe o art. 1.831 do novo CC. 3 - Com este novo instituto, busca o legislador tão somente promover proteção ao cônjuge supérstite. 4 - A lei não deixa, todavia, de respaldar o direito de propriedade dos herdeiros, que inquestionavelmente já lhes é garantido mediante o direito positivo, mas apenas adequá-la a seus propósitos de forma a não malferir nos termos em que preconizados. 5 - Uma vez restado infrutíferas as tentativas de possível conciliação entre as partes e tratando-se de bem imóvel indivisível, o que busca a lei não é sobrelevar o usufruto pelo singelo valor pecuniário correspondente à 4ª parte do total de herança, em relação à sua totalidade, mas enfatizar a utilidade do instituto, enquanto fonte de sobrevivência. 6 - Apelação desprovida. Unânime”.

Os Embargos de Declaração (fls. 178/183) foram rejeitados (fls. 189/184).

Os recorrentes alegam que o Tribunal de origem teria violado o art. 535 do CPC ao deixar de se manifestar sobre os temas suscitados nos Embargos de Declaração.

Sustentam que a esposa do de cujus não tem direito real de habitação sobre o imóvel, porque casada sob o Regime de Separação Total de Bens.

Sustentam que, nos termos do art. 1.611, § 2º, do CC/1916, vigente ao tempo da abertura da Sucessão, o direito de habitação só socorria ao cônjuge sobrevivente que estivesse casado sob o Regime da Comunhão Universal de Bens.

Ressaltam que o direito real de habitação do cônjuge supérstite, tal como previsto no art. 1.831 do CC em vigor, só pode ser aplicado às sucessões abertas sob a égide do novo diploma.

É o relatório.

VOTO

O Exmo Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): ... e sua esposa, ..., eram proprietários do Apartamento nº ..., da ... nº ..., Bloco ..., desta Capital.

A cônjuge virago faleceu em 26/10/1981, transferindo às filhas do casal, ..., ..., ... e ..., a meação que tinha sobre o imóvel.

Em 28/6/1989, ... convolou novas núpcias com ..., tendo sido adotado o Regime da Separação Obrigatória de Bens. Dessa união não resultaram filhos.

Em 18/6/1999, ... veio a óbito, ocasião em que as filhas do 1º casamento herdaram a outra metade do imóvel descrito.

Em 17/2/2002, ..., ..., ... e ... ajuizaram Ação de Reintegração de Posse contra a viúva de seu pai, ..., visando a se imitirem na posse do bem (fls. 02/06).

A sentença indeferiu o pedido, argumentando, basicamente, que o art. 1.831 do CC outorgava ao cônjuge supérstite o direito real de habitação sobre o imóvel da família, desde que fosse o único a inventariar (fls. 116/120).

O Tribunal de origem manteve a sentença nos termos da ementa constante do Relatório.

Não se viabiliza o especial pela indicada ausência de prestação jurisdicional, porquanto a matéria em exame foi devidamente enfrentada, emitindo-se pronunciamento de forma fundamentada e sem contradições. A jurisprudência desta Casa é pacífica ao proclamar que, se os fundamentos adotados bastam para justificar o concluído na decisão, o Julgador não está obrigado a rebater, um a um, os argumentos utilizados pela parte.

A questão posta no presente Recurso Especial está, essencialmente, em saber se a recorrida ... faz ou não faz jus ao direito real de habitação sobre o imóvel em que residia com o seu falecido esposo, tendo em vista a data da abertura da Sucessão e o Regime de Bens do Casamento.

O CC/2002, no seu art. 1.831, confere ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens e sem prejuízo do que lhe caiba por herança, o direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único dessa natureza a inventariar.

Não se trata, porém, de uma inovação legislativa. A Lei nº 4.121/1962 (Estatuto da Mulher Casada) havia acrescido ao art. 1.611 do CC/1916 um § 2º que estabelecia o mesmo direito subjetivo, restringindo-o, porém, às hipóteses em que o cônjuge sobrevivente e o de cujus fossem casados pelo Regime da Comunhão Universal de Bens.

A restrição contida no Código antigo era alvo de severas críticas, sobretudo a partir de 1977, quando o regime legal de bens no casamento deixou de ser o da comunhão universal para ser o da comunhão parcial, por criar situações de injustiça social.

ORLANDO GOMES assinalava, a propósito, que:

“A restrição ao Regime da Comunhão Universal é injustificável. Quando se não quisesse estender o favor ao cônjuge casado pelo regime da separação, caberia, pela mesma razão, no caso de comunhão parcial, ao menos quando o imóvel fosse adquirido na constância do matrimônio e, portanto, se houvesse comunicado, tornando-se bem comum” (GOMES, ORLANDO, apud LEITE, EDUARDO DE OLIVEIRA, Comentários ao Novo Código Civil, Vol. XXI, Rio de Janeiro, Forense: 2003, p. 226).

Possivelmente em razão dessas críticas, o legislador de 2002 houve por bem abandonar a posição mais restritiva, conferindo o direito real de habitação ao cônjuge supérstite casado sob qualquer regime de bens (art. 1.831).

Antes do CC/2002, porém, a Lei nº 9.278/1996 já havia conferido direito equivalente às pessoas ligadas pela União Estável.

“Art. 7º

Parágrafo único - Dissolvida a União Estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”.

Instaurou-se, assim, uma certa perplexidade, pois, entre a edição dessa Lei e o início da vigência do CC/2002, uma interpretação literal das normas de regência então vigentes autorizava concluir que o companheiro sobrevivente estava em situação mais vantajosa do que o cônjuge sobrevivente (que não fosse casado pelo Regime da Comunhão Universal de Bens).

Perceba-se que o direito real de habitação, até então exclusivo do cônjuge supérstite, havia sido estendido ao companheiro sobrevivente por força do parágrafo único do art. 7º da Lei nº 9.278/1996, de maneira mais abrangente, conferindo ao companheiro sobrevivente um direito subjetivo que não socorria à maioria dos cônjuges em idêntica situação.

Examinando-se as consequências dessa exegese, tem-se o seguinte: se 2 pessoas vivessem em união estável e uma delas falecesse, a outra teria a segurança de continuar vivendo no imóvel em que residiam. Se, porém, essas mesmas pessoas resolvessem se casar, o que provavelmente ocorreria sob o Regime da Comunhão Parcial, já que esse era o regime legal a partir de 1977, o cônjuge sobrevivente não teria mais assegurado o direito de continuar habitando o imóvel da família.

O Casamento, a partir do que se extrai inclusive da CF, conserva posição juridicamente mais forte que a da União Estável. Não se pode, portanto, emprestar às normas destacadas uma interpretação dissonante dessa orientação constitucional.

Tal impossibilidade vem bem destacada, por exemplo, nos seguintes precedentes desta Corte Superior:

“Direito Civil. Família. Recurso Especial. Concubinato. Casamento simultâneo. Ação de indenização. Serviços domésticos prestados.

Se com o término do casamento não há possibilidade de se pleitear indenização por serviços domésticos prestados, tampouco quando se finda a união estável, muito menos com o cessar do concubinato, haverá qualquer viabilidade de se postular tal direito, sob pena de se cometer grave discriminação frente ao casamento, que tem primazia constitucional de tratamento; ora, se o cônjuge no casamento nem o companheiro na união estável fazem jus à indenização, muito menos o concubino pode ser contemplado com tal direito, pois teria mais do que se casado fosse.

A concessão da indenização por serviços domésticos prestados à concubina situaria o concubinato em posição jurídica mais vantajosa que o próprio Casamento, o que é incompatível com as diretrizes constitucionais fixadas pelo art. 226 da CF/1988 e com o Direito de Família, tal como concebido.

(...)

Inviável o debate acerca dos efeitos patrimoniais do concubinato quando em choque com os do casamento pré e coexistente, porque definido aquele, expressamente, no art. 1.727 do CC/2002, como relação não eventual entre o homem e a mulher, impedidos de casar; a disposição legal tem o único objetivo de colocar a salvo o Casamento, Instituto que deve ter primazia, ao lado da União Estável, para fins de tutela do Direito” (REsp nº 872.659-MG; Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., DJe de 19/10/2009).

“Processual Civil. Recurso Especial. Ação de Conhecimento sob o rito ordinário. Casamento. Regime da Separação Legal de Bens. Cônjuge com idade superior a 60 anos. Doações realizadas por ele ao outro cônjuge na constância do matrimônio. Validade.

São válidas as doações promovidas, na constância do casamento, por cônjuges que contraíram matrimônio pelo Regime da Separação Legal de Bens, por 3 motivos: 1 - O CC/1916 não as veda, fazendo-no apenas com relação às doações antenupciais; 2 - O fundamento que justifica a restrição aos atos praticados por homens maiores de 60 anos ou mulheres maiores que 50, presente à época em que promulgado o CC/1916, não mais se justifica nos dias de hoje, de modo que a manutenção de tais restrições representa ofensa ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 3 - Nenhuma restrição seria imposta pela lei às referidas doações caso o doador não tivesse se casado com a donatária, de modo que o CC, sob o pretexto de proteger o patrimônio dos cônjuges, acaba fomentando a União Estável em detrimento do Casamento, em ofensa ao art. 226, § 3º, da CF” (REsp nº 471.958-RS; Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., DJe de 18/2/2009).

Considerando, pois, que a interpretação literal das normas postas levaria à conclusão de que o companheiro estaria em situação privilegiada em relação ao cônjuge e, bem assim, que essa exegese propõe uma situação de todo indesejada no ordenamento jurídico brasileiro, é de se rechaçar a adoção dessa interpretação literal da norma.

Uma interpretação que melhor ampara os valores espelhados na CF é aquela segundo a qual o art. 7º da Lei nº 9.278/1996 teria derrogado, a partir da sua entrada em vigor, o § 2º do art. 1.611 do CC/1916, de modo a neutralizar o posicionamento restritivo contido na expressão “casados sob o regime da comunhão universal de bens”.

Em outras palavras, é de se admitir que a CF (art. 226, § 3º), ao exortar o legislador a criar uma moldura normativa pautada pela isonomia entre a União Estável e o Casamento, exortou também o intérprete da norma e o Juiz a concluírem pela derrogação parcial do § 2º do art. 1.611 do CC/1916, de modo a equiparar a situação do cônjuge e do companheiro no que respeita ao direito real de habitação.

Perceba-se que, dessa maneira, tanto o companheiro como o cônjuge, qualquer que seja o regime do casamento, estarão em situação equiparada, adiantando-se, de tal maneira, o quadro normativo que só veio a se concretizar de maneira explícita com a edição do novo CC.

Resumindo, é possível afirmar que, no caso dos Autos, como o cônjuge da recorrida faleceu em 1999, é indevido recusar a esta o direito real de habitação sobre o imóvel em que residiam desde essa data, tendo em vista a aplicação analógica por extensão do art. 7º da Lei nº 9.278/1996.

Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial.

Sidnei Beneti

Relator

Nenhum comentário: