No interior da Bahia, um juiz ensina o que é Justiça
por Gláucia Milicio
por Gláucia Milicio
Humanizar a figura do juiz e banir o excesso de juridiquês das decisões judiciais pode parecer ainda algo distante de acontecer no Judiciário, mas lá no interior da Bahia, na pequena cidade de Conceição do Coité, de 58 mil habitantes, o juiz Gerivaldo Alves Neiva, de 46 anos, consegue.
Ele leva seus “companheiros”, como gosta de chamar os moradores e até mesmo os réus que chegam ao fórum da cidade, a discutir o conteúdo e o resultado de suas decisões judiciais em bares, celas, praças e até mesmo em comunidade no site de relacionamento Orkut. Ele também costuma dar título para as mais polêmicas: “Sentença para ser lida e entendida por um Marceneiro” e “A crônica de um Crime Anunciado” são alguns exemplos.
A discussão jurídica lá em Coité só é garantida entre os moradores pela simplicidade das decisões de Gerivaldo. O juiz dispensa formalismo e é firme ao ressaltar que suas decisões não precisam satisfazer colegas e jurisdicionados. “Só precisa ser justa.”
Pau para toda obra
Gerivaldo julga cerca de 100 processos por mês e exerce uma jurisdição plena: cuida do criminal, cível e eleitoral. Segundo ele, na linguagem popular, “é pau para toda obra”. Antes de chegar à magistratura, 18 anos atrás, o juiz se formou em sociologia com especialização em educação popular. Era estudioso de Leonardo Boff e Paulo Freire. Essa formação o acompanha até hoje na busca da Justiça utópica.
No último mês de agosto, Gerivaldo conseguiu dividir a cidade com mais uma de suas decisões. Ele mandou soltar um rapaz de 21 anos, mudo e surdo, acusado de furto, a quem chama de Mudinho. Como pena, determinou que ele fosse estudar e procurar emprego.
“O que esperar de alguém que passou a infância e adolescência lançado à sorte, esquecido pelo Estado? De certo, que se torne um bandido. O que pode mudar o futuro desse indivíduo é a forma como será aplicada a Justiça. Se jogado em uma penitenciária, talvez a ressocialização seja a última coisa que acontecerá”, escreveu na sentença, A Crônica de um Crime Anunciado.
O juiz conta que, depois dessa decisão, metade da cidade gostou do resultado, dizendo que Mudinho merecia mais uma chance. A outra, contudo, alegou que a decisão poderia causar grandes problemas e Gerivaldo podia até se tornar a próxima vítima do jovem mudo.
A sua decisão sobre o caso de um marceneiro também ganhou repercussão. Em linguagem simples, como de costume, o juiz escreveu sobre José de Gregório Pinto, que comprou um telefone celular, “certamente pensando em facilitar o contato com a sua clientela”. Dois meses depois de ter “domado os dedos grossos e calejados” para apertar os botões do aparelho, o telefone quebrou. Não teve conserto. “Seu Gregório” também não conseguiu nenhum acordo nem com a Siemens, fabricante do produto, nem com as Lojas Insinuante, que lhe venderam o celular. E foi à Justiça.
O juiz não aceitou nenhum dos argumentos tanto da Siemens como das Lojas Insinuantes. Ficou do lado do “Seu Gregório”. Gerivaldo dispensou as provas técnicas e qualquer outra formalidade da Justiça. Apenas mandou a loja devolver a “Seu Gregório” o dinheiro usado para comprar o celular. Mandou também a Siemens enviar ao marceneiro um novo aparelho, “para que ele não se desanime com as facilidades dos tempos modernos”. Simples assim. Afinal, “no mais, é uma sentença para ser lida e entendida por um marceneiro”, registrou.
Noutro caso, Neiva mandou expedir alvará de soltura para uma jovem de 19 anos, acusada de envolvimento com o tráfico de drogas. Ela é mãe e, na época, seu bebê tinha dois meses. Na decisão ele escreveu: “Não, Graciele, você não necessita do seu filho, ao contrário, ele chora todos os dias, sente falta do cheiro da mãe, do seu leite, do seu calor e do seu amor. Talvez você não mereça, mas é um crime ainda maior privar uma criança de dois meses do aconchego daquela que lhe concebeu e lhe deu à luz. Não demore! Saia e vá amamentar seu filho enquanto seus seios ainda permitem”.
Voz do povo
De acordo com Gerivaldo, o seu ideal, além de exercer uma Justiça plena e efetiva, é fazer com que a cidade trave diálogos para discutir um pouco mais sobre o assunto. “Escrevo minha sentença pensando numa pessoa que não entende nada da ciência do Direito. Depois de redigi-la, leio em voz alta para saber se vão entender e acompanhar meu raciocínio”, explica.
O juiz conta que, no final de cada decisão, coloca seu e-mail e o endereço de seu blog para receber críticas. Num tom descontraído, ele brinca: “assim como existe um pós-venda numa grande concessionária de carros, eu tenho a minha pós-sentença. É importante dar a cara a bater. Saber onde errei”.
Lá em Coité, os presos também ficam à vontade para conversar com o juiz. E, provavelmente, nenhum julgamento será anulado por causa do uso de algemas. Quando os presos chegam ao fórum da cidade, Gerivaldo manda logo tirar as pulseiras de aço para que possam bater um papo. Segundo o juiz, existe uma confiança mútua entre ele e os réus. Ele não é visto como um algoz e está lá para aplicar apenas a Justiça.
Certa vez, ele conta, durante uma festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição, a praça ficou repleta de gente e houve uma grande confusão. Ele e a mulher ficaram presos no meio dela. Quando o juiz menos esperava, apareceu um ex-presidiário para ajudá-los, o conhecido “Nescau”. Sua mulher ficou aliviada, mas advertiu: “Ele nos ajudou, mas outro [ex-presidiário] poderia fazer algum mal a você”. Gerivaldo deu de ombros.
As suas decisões, pelo menos as mais polêmicas, não costumam ser reformadas pela segunda instância, gaba-se. Ele atribui o fato à grande repercussão que muitas delas ganham na mídia. “Por isso, muitas vezes o Ministério Público estadual nem recorre.”
Questionado sobre as falhas do Judiciário, Gerivaldo diz que um grande problema é o fato de a maioria de seus pares não conseguir dialogar. “Juízes são formados para impor, decidir e determinar. Muitos adoram prender, como se fosse a solução de todos os problemas. Eu adoro soltar”, brincou.
O juiz Gerivaldo não acredita numa violência “originária” de cada ser humano. Para ele, existe uma violência derivada. Explicou que muitos jovens entram no mundo do crime e das drogas por falta de base familiar. Aí, prisão não resolve. “O sistema prisional é uma lixeira humana”.
Baile da lei
De acordo com o juiz, a Constituição Federal de 1988 convidou o Judiciário para um grande baile social, democrático e igualitário. Na festa, a magistratura seria representada por garçons e dançarinos. Segundo ele, os dançarinos deveriam dançar de tudo: salsa, merengue, xote e até um tango argentino.
Passados 20 anos, Gerivaldo acredita que o Judiciário ainda não criou o espaço para o baile e está pior do que antes. “Sem espaço, não tem baile. Sem Poder Judiciário forte, autônomo e bem estruturado, como pensar na garantia dos direitos constitucionais?”
Gerivaldo diz que a magistratura não aceita a função de garçom e menos ainda a de dançarino. “A magistratura jamais aprendeu a dançar e também não se dispôs a aprender. Aliás, já bailou em alguns bailes, só que inacessíveis ao povo e não num grande forró popular.”
O juiz afirma que, enquanto o Judiciário não preparar o espaço para o baile e não for um bom anfitrião, o sonho de Justiça ideal não vai virar realidade. “Enquanto o Judiciário não for completamente democratizado e a figura do juiz, humanizada, não teremos saída.”
Revista Consultor Jurídico, 2 de novembro de 2008
Ele leva seus “companheiros”, como gosta de chamar os moradores e até mesmo os réus que chegam ao fórum da cidade, a discutir o conteúdo e o resultado de suas decisões judiciais em bares, celas, praças e até mesmo em comunidade no site de relacionamento Orkut. Ele também costuma dar título para as mais polêmicas: “Sentença para ser lida e entendida por um Marceneiro” e “A crônica de um Crime Anunciado” são alguns exemplos.
A discussão jurídica lá em Coité só é garantida entre os moradores pela simplicidade das decisões de Gerivaldo. O juiz dispensa formalismo e é firme ao ressaltar que suas decisões não precisam satisfazer colegas e jurisdicionados. “Só precisa ser justa.”
Pau para toda obra
Gerivaldo julga cerca de 100 processos por mês e exerce uma jurisdição plena: cuida do criminal, cível e eleitoral. Segundo ele, na linguagem popular, “é pau para toda obra”. Antes de chegar à magistratura, 18 anos atrás, o juiz se formou em sociologia com especialização em educação popular. Era estudioso de Leonardo Boff e Paulo Freire. Essa formação o acompanha até hoje na busca da Justiça utópica.
No último mês de agosto, Gerivaldo conseguiu dividir a cidade com mais uma de suas decisões. Ele mandou soltar um rapaz de 21 anos, mudo e surdo, acusado de furto, a quem chama de Mudinho. Como pena, determinou que ele fosse estudar e procurar emprego.
“O que esperar de alguém que passou a infância e adolescência lançado à sorte, esquecido pelo Estado? De certo, que se torne um bandido. O que pode mudar o futuro desse indivíduo é a forma como será aplicada a Justiça. Se jogado em uma penitenciária, talvez a ressocialização seja a última coisa que acontecerá”, escreveu na sentença, A Crônica de um Crime Anunciado.
O juiz conta que, depois dessa decisão, metade da cidade gostou do resultado, dizendo que Mudinho merecia mais uma chance. A outra, contudo, alegou que a decisão poderia causar grandes problemas e Gerivaldo podia até se tornar a próxima vítima do jovem mudo.
A sua decisão sobre o caso de um marceneiro também ganhou repercussão. Em linguagem simples, como de costume, o juiz escreveu sobre José de Gregório Pinto, que comprou um telefone celular, “certamente pensando em facilitar o contato com a sua clientela”. Dois meses depois de ter “domado os dedos grossos e calejados” para apertar os botões do aparelho, o telefone quebrou. Não teve conserto. “Seu Gregório” também não conseguiu nenhum acordo nem com a Siemens, fabricante do produto, nem com as Lojas Insinuante, que lhe venderam o celular. E foi à Justiça.
O juiz não aceitou nenhum dos argumentos tanto da Siemens como das Lojas Insinuantes. Ficou do lado do “Seu Gregório”. Gerivaldo dispensou as provas técnicas e qualquer outra formalidade da Justiça. Apenas mandou a loja devolver a “Seu Gregório” o dinheiro usado para comprar o celular. Mandou também a Siemens enviar ao marceneiro um novo aparelho, “para que ele não se desanime com as facilidades dos tempos modernos”. Simples assim. Afinal, “no mais, é uma sentença para ser lida e entendida por um marceneiro”, registrou.
Noutro caso, Neiva mandou expedir alvará de soltura para uma jovem de 19 anos, acusada de envolvimento com o tráfico de drogas. Ela é mãe e, na época, seu bebê tinha dois meses. Na decisão ele escreveu: “Não, Graciele, você não necessita do seu filho, ao contrário, ele chora todos os dias, sente falta do cheiro da mãe, do seu leite, do seu calor e do seu amor. Talvez você não mereça, mas é um crime ainda maior privar uma criança de dois meses do aconchego daquela que lhe concebeu e lhe deu à luz. Não demore! Saia e vá amamentar seu filho enquanto seus seios ainda permitem”.
Voz do povo
De acordo com Gerivaldo, o seu ideal, além de exercer uma Justiça plena e efetiva, é fazer com que a cidade trave diálogos para discutir um pouco mais sobre o assunto. “Escrevo minha sentença pensando numa pessoa que não entende nada da ciência do Direito. Depois de redigi-la, leio em voz alta para saber se vão entender e acompanhar meu raciocínio”, explica.
O juiz conta que, no final de cada decisão, coloca seu e-mail e o endereço de seu blog para receber críticas. Num tom descontraído, ele brinca: “assim como existe um pós-venda numa grande concessionária de carros, eu tenho a minha pós-sentença. É importante dar a cara a bater. Saber onde errei”.
Lá em Coité, os presos também ficam à vontade para conversar com o juiz. E, provavelmente, nenhum julgamento será anulado por causa do uso de algemas. Quando os presos chegam ao fórum da cidade, Gerivaldo manda logo tirar as pulseiras de aço para que possam bater um papo. Segundo o juiz, existe uma confiança mútua entre ele e os réus. Ele não é visto como um algoz e está lá para aplicar apenas a Justiça.
Certa vez, ele conta, durante uma festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição, a praça ficou repleta de gente e houve uma grande confusão. Ele e a mulher ficaram presos no meio dela. Quando o juiz menos esperava, apareceu um ex-presidiário para ajudá-los, o conhecido “Nescau”. Sua mulher ficou aliviada, mas advertiu: “Ele nos ajudou, mas outro [ex-presidiário] poderia fazer algum mal a você”. Gerivaldo deu de ombros.
As suas decisões, pelo menos as mais polêmicas, não costumam ser reformadas pela segunda instância, gaba-se. Ele atribui o fato à grande repercussão que muitas delas ganham na mídia. “Por isso, muitas vezes o Ministério Público estadual nem recorre.”
Questionado sobre as falhas do Judiciário, Gerivaldo diz que um grande problema é o fato de a maioria de seus pares não conseguir dialogar. “Juízes são formados para impor, decidir e determinar. Muitos adoram prender, como se fosse a solução de todos os problemas. Eu adoro soltar”, brincou.
O juiz Gerivaldo não acredita numa violência “originária” de cada ser humano. Para ele, existe uma violência derivada. Explicou que muitos jovens entram no mundo do crime e das drogas por falta de base familiar. Aí, prisão não resolve. “O sistema prisional é uma lixeira humana”.
Baile da lei
De acordo com o juiz, a Constituição Federal de 1988 convidou o Judiciário para um grande baile social, democrático e igualitário. Na festa, a magistratura seria representada por garçons e dançarinos. Segundo ele, os dançarinos deveriam dançar de tudo: salsa, merengue, xote e até um tango argentino.
Passados 20 anos, Gerivaldo acredita que o Judiciário ainda não criou o espaço para o baile e está pior do que antes. “Sem espaço, não tem baile. Sem Poder Judiciário forte, autônomo e bem estruturado, como pensar na garantia dos direitos constitucionais?”
Gerivaldo diz que a magistratura não aceita a função de garçom e menos ainda a de dançarino. “A magistratura jamais aprendeu a dançar e também não se dispôs a aprender. Aliás, já bailou em alguns bailes, só que inacessíveis ao povo e não num grande forró popular.”
O juiz afirma que, enquanto o Judiciário não preparar o espaço para o baile e não for um bom anfitrião, o sonho de Justiça ideal não vai virar realidade. “Enquanto o Judiciário não for completamente democratizado e a figura do juiz, humanizada, não teremos saída.”
Revista Consultor Jurídico, 2 de novembro de 2008
Um comentário:
Dr. Prof. Flávio Tartuce eu não o conheço pessoalmente, mas estou sempre por aqui lendo seu blog e outras informações do seu site. Achei que depois de muito enriquecer meu conhecimento já estava na hora de lhe agradecer e incentivá-lo a sempre colocar as novidades do direito para que nós possamos estar a cada dia mais atualizados e conhecedores deste fascinante mundo jurídico. Aproveito também para informá-lo que coloquei o endereço do seu site no meu blog como forma de 'boa referência' para os estudantes de direito. Caso o senhor tenha alguma objeção entre em contato.
Luciana
lucianacosta07@gmail.com
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