RECURSO ESPECIAL Nº 468.062 - CE (2002/0121761-0)
RELATOR
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
RECORRENTE
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", CF/1988, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 5a. Região (fls. 138/143).
A decisão ficou assim ementada:
"ADMINISTRATIVO. CIVIL. PRELIMINARES. NULIDADE DA SENTENÇA. CONEXÃO. DENUNCIAÇÃO À LIDE. ILEGITIMIDADE AD CAUSAM DOS AUTORES. INOCORRÊNCIA. (sic) CEF COMO SUCESSORA DO EX-BNH (DECRETO Nº 2.291/86). RESPONSABILIDADE DE FISCALIZAÇÃO DOS AGENTES FINANCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EFETIVA QUITAÇÃO ANTECIPADA DA DÍVIDA COM GARANTIA DA LIBERAÇÃO DA CAUÇÃO HIPOTECÁRIA.
1. Nulidade da sentença, em virtude do juiz fundamentar sua decisão dentro dos limites da pretensão com base nos documentos trazidos aos autos.
2. Incabível a preliminar de conexão, por força do art. 95, CPC, 'nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa'.
3. Assumindo a CEF enquanto sucessora do BNH a posição de Agente e Operadora do fundo, passando assim a deter as cauções hipotecárias, não há falar-se em denunciação à lide do Agente Financeiro.
4. A ilegitimidade ativa AD CAUSAM dos autores, não prospera em virtude do que dispõe o art. 859, do Código, 'presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu'.
5. No mérito, ressalta a inteira responsabilidade da CEF, sucessora do ex-BNH, fiscalizar os repasses feitos pelos seus agentes financeiros.
6. Diante da efetiva liquidação do saldo devedor do imóvel em questão e conforme transcrição do mesmo no Cartório de Registro de Imóveis, é devida a liberação da caução hipotecária.
7. Preliminares rejeitadas.
8. Apelação improvida."
O recurso especial da CEF louva-se nos seguintes fundamentos: (fls.145/156)
a) violação do art. 70, inciso III, CPC; do art. 458, inciso II, e do art. 102, CPC;
b) ofensa aos arts. 3º, 6º e 267, VI, CPC;
c) desrespeito ao art.794, CCB/1916.
Contra-razões. (fls.161/167)
Recurso admitido. (fls.169)
Parecer do MPF em favor do conhecimento parcial e pelo não-provimento do recurso. (fls.178/187)
É, no essencial, o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 468.062 - CE (2002/0121761-0)
EMENTA
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - FCVS - CAUÇÃO DE TÍTULOS - QUITAÇÃO ANTECIPADA - EXONERAÇÃO DOS MUTUÁRIOS - COBRANÇA SUPERVENIENTE PELA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, SUCESSORA DO BNH - DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE - EFICÁCIA DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS EM RELAÇÃO A TERCEIROS - OPONIBILIDADE - TUTELA DA CONFIANÇA.
1. CAUSA E CONTROVÉRSIA. A causa (a lide deduzida em juízo) e a controvérsia (a questão jurídica a ser resolvida), para se usar de antiga linguagem, de bom e velho sabor medieval, ainda conservada no direito anglo-saxão (cause and controverse), dizem respeito à situação jurídica de mutuários em relação à cessão de títulos de crédito caucionados entre o agente financeiro primitivo e a Caixa Econômica Federal -CEF, sucessora do BNH, quando se dá quitação antecipada do débito. A CEF pretende exercer seus direitos de crédito contra os mutuários, ante a inadimplência do agente financeiro originário. Ausência de precedentes nos órgãos da Primeira Seção.
2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO “DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE" TUTELA EXTERNA DO CRÉDITO. O tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros “de modo positivo ou negativo", bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes. As mitigações ocorrem por meio de figuras como a doutrina do terceiro cúmplice e a proteção do terceiro em face de contratos que lhes são prejudiciais, ou mediante a tutela externa do crédito. Em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
3. SITUAÇÃO DOS RECORRIDOS EM FACE DA CESSÃO DE POSIÇÕES CONTRATUAIS. Os recorridos, tal como se observa do acórdão, quitaram suas obrigações com o agente financeiro credor - TERRA CCI. A cessão dos direitos de crédito do BNH “sucedido pela CEF" ocorreu após esse adimplemento, que se operou inter partes (devedor e credor). O negócio entre a CEF e a TERRA CCI não poderia dilatar sua eficácia para atingir os devedores adimplentes.
4. CESSÃO DE TÍTULOS CAUCIONADOS. A doutrina contemporânea ao Código Civil de 1916, em interpretação aos arts. 792 e 794, referenda a necessidade de que sejam os devedores intimados da cessão, a fim de que não se vejam compelidos a pagar em duplicidade. Nos autos, segundo as instâncias ordinárias, não há prova de que a CEF haja feito esse ato de participação.
5. DISSÍDIO PRETORIANO. Não se conhece da divergência, por não-observância dos requisitos legais e regimentais.
Recurso especial conhecido em parte e improvido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
PERMISSIVO "A"
A.1 - A CAUSA DOS AUTOS
O caso dos autos tem por subjacente um contrato de mútuo habitacional firmado entre José Américo Sobrinho e TERRA COMPANHIA DE CRÉDITO IMOBILIÁRIO - TERRA CCI, agente financeiro vinculado ao extinto Banco Nacional de Habitação - BNH, sucedido pela ora recorrente.
Houve, posteriormente, cessão de posição contratual de José Américo Sobrinho para os recorridos ANTONIO OSMAR TELES MONTEIRO e OUTRO, por força de escritura de compra e venda, lavrada aos 30.10.1989. Na escritura, ressalvou-se a existência de caução hipotecária dada ao BNH por TERRA CCI, por meio de endosso em cédula hipotecária.
Houve quitação antecipada do saldo devedor pelos cessionários ANTONIO OSMAR TELES MONTEIRO aos 27.3.1991, com quitação passada por TERRA CCI aos 24.6.1997. Na ocasião, foi autorizado o levantamento do gravame hipotecário.
Remanesceu, porém, o direito real de caução sobre crédito hipotecário, titularizado pela CEF contra a TERRA CCI, que gravava o imóvel adquirido pelos recorridos. Por essa razão, optaram os recorridos pelo ingresso de ação ordinária contra a CEF, a fim de liberá-los desse ônus real.
A CEF, em sua manifestação nos autos, deu ciência de que, aos 30.9.1998, firmou contrato de novação e outros pactos com TERRA CCI, que se encontrava em liquidação extrajudicial. Por esse negócio jurídico, a CEF adquiriu o direito real de garantia pelos créditos hipotecários de titularidade da TERRA CCI a serem exercidos contra os mutuários do SFH. Dentre esses direitos, encontrava-se a caução hipotecária constituída sobre o imóvel dos recorridos.
O inadimplemento das obrigações pela TERRA CCI ante à CEF gerou a esta a pretensão de se opor ao levantamento do gravame de caução.
Apreciada a lide, em primeiro grau, decidiu-se pela ineficácia do negócio jurídico celebrado entre a CEF e a TERRA CCI em relação a terceiros, dada a ausência de comunicação prévia. O fato de haver registro do título não implicava presunção de conhecimento.
O acórdão do TRF-5, que conservou a sentença, entendeu que os recorridos cumpriram suas obrigações perante o credor, não sendo lícito mantê-los vinculados por efeito de inadimplemento da TERRA CCI para com a CEF.
A questão, por conseguinte, está em saber se os recorridos podem-se liberar de gravame, após a quitação de suas obrigações, quando persistem vínculos de seu credor com a CEF.
B.2. A CONTROVÉRSIA JURÍDICA
A causa (a lide deduzida em juízo) e a controvérsia (a questão jurídica a ser resolvida), para se usar de antiga linguagem, de bom e velho sabor medieval, ainda conservada no direito anglo-saxão (cause and controverse) não possuem precedentes na Segunda Turma. Trata-se, em verdade, de um problema que envolve conceitos jurídicos recentemente estudados na doutrina brasileira, introduzidos no debate contemporâneo por ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO (Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado. Direito de execlusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribuiu para inadimplemento contratual. In. Estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p.137-147), posteriormente desenvolvida em outros estudos dogmáticos: RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Título A doutrina do terceiro cúmplice : autonomia da vontade, o princípio res inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. In Revista dos Tribunais, v.93, n.821, p.80-98, mar., 2004; PENTEADO, Luciano Camargo. Efeitos contratuais perante terceiros. São Paulo: Quartier Latin, 2007.)
O tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros – de modo positivo ou negativo –, bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes.
Para tanto, faz-se indispensável citar três formas diferentes de apresentação dessa eficácia contratual extra partes, a saber:
1. Oponibilidade. Os contratos podem ser oponíveis a terceiros, o que implica duas situações clássicas:
a) a obrigação de conhecimento de um contrato alheio por alguém, o que opera efeitos (principalmente) no plano subjetivo da boa-fé. É o exemplo clássico da oponibilidade de um contrato particular registrado em cartório, o que lhe confere publicidade e, com isso, faz presumir seu conhecimento por terceiros, negando-se-lhes a alegação de boa-fé quando invocam sua insciência.
b) a obrigação de respeitar uma relação jurídica alheia, o que implica a produção de efeitos jurídicos na esfera de quase todos os demais indivíduos não-partícipes do negócio. Em geral, essa forma de oponibilidade é também eficaz quanto à boa-fé de terceiros. Mas, essencialmente, ela atrai a chamada eficácia 'erga omnes' (oponibilidade contra todos), presente nos Direitos Reais, e nascida do registro imobiliário.
O registro dá publicidade e torna o direito oponível a terceiros, os quais devem conhecê-lo e respeitá-lo. Se imobiliário, o registro dá publicidade e cria "imunidade ao conteúdo daqueles atos pelos demais atuantes no cenário jurídico, revestindo-se a situação jurídica registrada de um poder de exclusão das demais faculdades, pretensões e poderes jurídicos em geral." (PENTEADO, Luciano Camargo. Op. cit. p.167).
2. Doutrina do terceiro cúmplice. A doutrina do terceiro cúmplice tem por objeto a interferência ilícita do terceiro em negócios jurídicos alheios, por meio da indução ao inadimplemento (RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. p.94-98).
3. Contrato em dano a terceiro. É o caso da dilatação eficacial (as chamadas externalidades negativas) de um contrato em relação a terceiros. Cuida-se de hipótese na qual os contraentes, ao celebrarem um negócio, geram efeitos danosos a alguém que é alheio ao contrato.
Além de situações já bem conhecidas da doutrina (contrato com pessoa a declarar e estipulação em favor de terceiro), essas três formas de ampliação da eficácia dos negócios têm por suporte a quebra da higidez do princípio da relatividade dos efeitos do contrato e, ainda, a proteção à boa-fé objetiva e à função social do contrato.
Essa restrição genérica a que a lesividade contratual inter partes se projeta extra partes é especialmente aplicada nas doutrina e jurisprudência francesas, quando se cuida de cessão de posições contratuais. É essa, em linhas gerais, a posição de MARIE-LAURE IZORCHE:
"O princípio é, desse modo, conservado: o cessionário do contrato, ainda que nos casos legalmente previstos, é tido como um terceiro qualquer para todo o período precedente à cessão, e ele apenas sofre a oponibilidade, até quando se torne parte do contrato após a cessão, e se vincule, nessa qualidade, pelos efeitos obrigatórios.
A única diferença com a cessão convencional está no fat ode que ele (o cessionário) não manifestou sua vontade de assumir a posição de parte do contrato que lhe foi transmitido, em concomitância à coisa adquirida: tudo se passa como se o contrato fosse um accessório da coisa, o qual se transmite automaticamente com ela mesma."(IZORCHE, Marie-Laure. Les effets des conventions à l'égard des tiers: l'expérience française. In. VACCA, Letizia (a cura di). Gli effeti del contratto nei confronti dei terzi nella prospettiva storico-comparatistica. Torino: Giappichelli, 2001. p.98.)
No original:
"Le principe est donc sauf: le cessionnaire du contrat, même dans les cas prévus par la loi, est consideré comme un tiers quelconque pour toute la période précédant la cession, et il n'est concerné que par l'opposabilité, alors qu'il devient partie au contrat après la cession, et est donc concerné, en tant que tel, par les effets obligatoires.
La seule différence avec la cession conventionelle réside dans le fait qu'il n'a pas manifesfé sa volonté de recueillir la position de partie au contrat qui lui est transmis, em même temps que la chose qu'il acquiert: tout se passe comme si le contrat était un acessoire de la chose, accessoire que se transmet automatiquement avec celle-ci".
Ora, os recorridos, tal como se observa do acórdão, quitaram suas obrigações com a credora TERRA CCI. A cessão dos direitos de crédito do BNH, sucedido pela CEF, ocorreu após esse adimplemento, que se operou inter partes (devedor e credor). O negócio entre a CEF e a TERRA CCI não poderia dilatar sua eficácia para atingir os devedores adimplentes.
Aqui, a oponibilidade da cessão de direitos (TERRA CCI e CEF) deixa de atingir a eficácia dos terceiros, por conta da proteção jurídica hoje concedida pelo ordenamento às pessoas que se põem à margem de negócios que lhes são prejudiciais, como ocorreu na espécie.
Logo, não houve violação do art. 458, II, CPC. O acórdão é bem fundamento e escolheu, dentre as molduras possíveis, a melhor interpretação para o caso e a controvérsia.
Outrossim, não houve malferimento dos arts.70 e 102, CPC. Nesse ponto, invoco, como razão de decidir, o parecer do Ministério Público Federal:
"A alegação de infringência ao art. 102 do CPC mostra-se manifestamente improcedente, vez que as demandas articuladas entre a CEF e a agente financeira TERRA CCI, com fundamento no descumprimento de contrato pactuado entre elas não tem qualquer conexão com o presente feito, a versar sobre direito real de garantia pendente sobre imóvel, que, a toda evidência, deve ser processado no foro em que situado o imóvel.
O mesmo se diga da tese que pugna pelo reconhecimento de atentado ao art. 70, III, do CPC, pois não há obrigatoriedade em se convocar a TERRA CCI à presente relação processual, na medida em que a legitimidade para liberação da caução fiduciária é exclusiva da CEF, que poderá, por outros meio judiciais, exigir da agente financeira o cumprimento das obrigações contratuais desrespeitadas."
A tese de ofensa aos arts. 3º, 6º, e 267, inciso VI, CPC, também não se sustenta. A posição jurídica dos recorridos é avaliável como digna de interesse processual, em razão da aludida dilatação de efeitos do contrato entre a TERRA e a CEF. A liberação de seu gravame está estritamente vinculada à solução da controvérsia. Daí não se cuidar desse suposto vilipêndio.
O único ponto digno de exame mais acurado é o relativo à suposta ofensa ao art. 794 do Código Civil revogado, que possui a redação seguinte:
"Art. 794. O devedor do título caucionado, tanto que receba a intimação do art. 792, II, ou se dê por ciente da caução, não poderá receber quitação do seu credor."
Cumpre examinar a estrutura jurídica dessa norma.
Entenderam os juízos ordinários que a existência de caução devidamente publicizada no registro imobiliário não tornaria oponível aos recorridos o negócio realizado entre a CEF e a TERRA CCI. Com isso, não se poderia atribuir-lhes responsabilidade pela inadimplência da TERRA CCI.
Se interpretado o art. 794 em concomitância com o revogado art. 792, observar-se-á que:
"Art. 792.  Ao credor por esta caução compete o direito de:
IÂ -Â conservar e recuperar a posse dos títulos caucionados, por todos os meios cíveis ou criminais, contra qualquer detentor, inclusive o próprio dono;
IIÂ - fazer intimar ao devedor dos títulos caucionados, que não pague ao seu credor, enquanto durar a caução (art. 794);
IIIÂ - usar das ações, recursos e exceções convenientes, para assegurar os seus direitos, bem como os do credor caucionante, como se deste fora procurador especial;
IVÂ - receber a importância dos títulos caucionados, e restituí-los ao devedor, quando este solver a obrigação por eles garantida."
Observando o que se deu no caso concreto:
a) a CEF não intimou (rectius, notificou) os recorridos para que não pagassem o débito à TERRA CCI durante a vigência da caução, como prescrevia a legislação vigente à época;
b) a CEF, como lembra o Ministério Público Federal, "imputou à agente financeira TERRA CCI a obrigação de fazer a cobrança dos créditos devidos pelos Recorridos. De acordo com o que se aferiu na instância a quo, com base no instrumento de novação e outros pactos ofertado pela própria CEF, esta teria, inclusive, assumido a responsabilidade pela fiscalização do repasse dos valores recebidos pela agente financeira TERRA CCI, no que, efetivamente, não logrou êxito".
A indispensabilidade da notificação, como atestado nas instâncias próprias, não foi objeto das mesuras necessárias pela CEF.
A doutrina contemporânea ao Código Civil de 1916, em interpretação aos arts. 792 e 794, mostra-se simétrica aos postulados aqui delineados. O clássico JOÃO MANUEL DE CARVALHO SANTOS (Código Civil brasileiro interpretado. 12 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982. v.10. p. 205, ao comentar o art.792, inciso II, CCB/1916, anota que:
"3. Fazer intimar ao devedor dos títulos caucionados, que não pague ao seu credor, enquanto durar a caução. É o que se denomina denúncia da caução. A denúncia se justifica, porque a caução, em última análise envolve uma cessão limitada dos direitos creditórios, que, se não prevalecesse a tornaria sem efeito. Para que possa prevalecer, é imprescindível que o devedor dos títulos caucionados fique conhecendo a existência da caução, e pois, dessa cessão.
A denúncia deve ser feita por via de intimação judicial ao devedor dos títulos caucionados, para que não pague ao seu credor, enquanto durar a caução."
Adiante, JOÃO MANUEL DE CARVALHO SANTOS (Op. cit. p.208) explicita que, se o devedor receber a quitação do credor, a despeito da cessão do título, prevalece o direito exoneratório daquele: "Mas se a quitação for dada, não obstante a proibição legal, nem por isso o pagamento feito e a quitação respectiva ficam sem valor".
Por fim, considero que, independentemente do teor da lei, a aplicação dos princípios relativos à proteção das relações jurídicas em face de terceiros é fundamento suficiente, ao lado da função social e da boa-fé objetiva, para impedir a responsabilização dos recorridos.
Essa perspectiva foi a que presidiu, no STJ, a edição da Súmula 308, cujo teor é auto-explicativo: "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel".
Analogicamente, a Súmula tem aplicação ao caso. O promitente comprador não pode responder por dívidas da construtora, contraídas com agente financeiro, em razão de lhe ser conservada a esfera jurídica dos atos de terceiros lesivos a seu patrimônio. É idêntico o fundamento deste recurso.
Desse modo, é de ser negado provimento ao recurso especial.
PERMISSIVO "C"
O recurso desatende o teor do art. 541, parágrafo único, CPC, combinado com o art. 255, RISTJ.
Como se tem ressaltado na Segunda Turma, não se pode conhecer do especial quando se omite a parte na "demonstração da exata similitude fático-jurídica entre os acórdãos tidos por divergentes e, tampouco (há) o cotejo analítico entre eles, o que se afigura indispensável para a admissão do apelo especial, conforme os ditames estabelecidos pelo § 2º do art. 255 do RISTJ e art. 541, parágrafo único, do CPC." (REsp 681.500/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 12.8.2008, DJe 26.8.2008.)
Em suma, "não havendo a recorrente demonstrado, mediante a realização do devido cotejo analítico, a existência de similitude das circunstâncias fáticas e do direito aplicado nos acórdãos recorrido e paradigmas, resta desatendido o comando dos arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ." (REsp 881.672/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 24.6.2008, DJe 13.8.2008).
Não conheço do recurso pelo permissivo "c".
CONCLUSÃO
Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso especial e nego-lhe provimento.
É como penso. É como voto.
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator
RELATOR
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
RECORRENTE
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto por CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", CF/1988, contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 5a. Região (fls. 138/143).
A decisão ficou assim ementada:
"ADMINISTRATIVO. CIVIL. PRELIMINARES. NULIDADE DA SENTENÇA. CONEXÃO. DENUNCIAÇÃO À LIDE. ILEGITIMIDADE AD CAUSAM DOS AUTORES. INOCORRÊNCIA. (sic) CEF COMO SUCESSORA DO EX-BNH (DECRETO Nº 2.291/86). RESPONSABILIDADE DE FISCALIZAÇÃO DOS AGENTES FINANCEIROS. COMPROVAÇÃO DA EFETIVA QUITAÇÃO ANTECIPADA DA DÍVIDA COM GARANTIA DA LIBERAÇÃO DA CAUÇÃO HIPOTECÁRIA.
1. Nulidade da sentença, em virtude do juiz fundamentar sua decisão dentro dos limites da pretensão com base nos documentos trazidos aos autos.
2. Incabível a preliminar de conexão, por força do art. 95, CPC, 'nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa'.
3. Assumindo a CEF enquanto sucessora do BNH a posição de Agente e Operadora do fundo, passando assim a deter as cauções hipotecárias, não há falar-se em denunciação à lide do Agente Financeiro.
4. A ilegitimidade ativa AD CAUSAM dos autores, não prospera em virtude do que dispõe o art. 859, do Código, 'presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu'.
5. No mérito, ressalta a inteira responsabilidade da CEF, sucessora do ex-BNH, fiscalizar os repasses feitos pelos seus agentes financeiros.
6. Diante da efetiva liquidação do saldo devedor do imóvel em questão e conforme transcrição do mesmo no Cartório de Registro de Imóveis, é devida a liberação da caução hipotecária.
7. Preliminares rejeitadas.
8. Apelação improvida."
O recurso especial da CEF louva-se nos seguintes fundamentos: (fls.145/156)
a) violação do art. 70, inciso III, CPC; do art. 458, inciso II, e do art. 102, CPC;
b) ofensa aos arts. 3º, 6º e 267, VI, CPC;
c) desrespeito ao art.794, CCB/1916.
Contra-razões. (fls.161/167)
Recurso admitido. (fls.169)
Parecer do MPF em favor do conhecimento parcial e pelo não-provimento do recurso. (fls.178/187)
É, no essencial, o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 468.062 - CE (2002/0121761-0)
EMENTA
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO - FCVS - CAUÇÃO DE TÍTULOS - QUITAÇÃO ANTECIPADA - EXONERAÇÃO DOS MUTUÁRIOS - COBRANÇA SUPERVENIENTE PELA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, SUCESSORA DO BNH - DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE - EFICÁCIA DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS EM RELAÇÃO A TERCEIROS - OPONIBILIDADE - TUTELA DA CONFIANÇA.
1. CAUSA E CONTROVÉRSIA. A causa (a lide deduzida em juízo) e a controvérsia (a questão jurídica a ser resolvida), para se usar de antiga linguagem, de bom e velho sabor medieval, ainda conservada no direito anglo-saxão (cause and controverse), dizem respeito à situação jurídica de mutuários em relação à cessão de títulos de crédito caucionados entre o agente financeiro primitivo e a Caixa Econômica Federal -CEF, sucessora do BNH, quando se dá quitação antecipada do débito. A CEF pretende exercer seus direitos de crédito contra os mutuários, ante a inadimplência do agente financeiro originário. Ausência de precedentes nos órgãos da Primeira Seção.
2. PRINCÍPIO DA RELATIVIDADE DOS EFEITOS DO CONTRATO “DOUTRINA DO TERCEIRO CÚMPLICE" TUTELA EXTERNA DO CRÉDITO. O tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros “de modo positivo ou negativo", bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes. As mitigações ocorrem por meio de figuras como a doutrina do terceiro cúmplice e a proteção do terceiro em face de contratos que lhes são prejudiciais, ou mediante a tutela externa do crédito. Em todos os casos, sobressaem a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
3. SITUAÇÃO DOS RECORRIDOS EM FACE DA CESSÃO DE POSIÇÕES CONTRATUAIS. Os recorridos, tal como se observa do acórdão, quitaram suas obrigações com o agente financeiro credor - TERRA CCI. A cessão dos direitos de crédito do BNH “sucedido pela CEF" ocorreu após esse adimplemento, que se operou inter partes (devedor e credor). O negócio entre a CEF e a TERRA CCI não poderia dilatar sua eficácia para atingir os devedores adimplentes.
4. CESSÃO DE TÍTULOS CAUCIONADOS. A doutrina contemporânea ao Código Civil de 1916, em interpretação aos arts. 792 e 794, referenda a necessidade de que sejam os devedores intimados da cessão, a fim de que não se vejam compelidos a pagar em duplicidade. Nos autos, segundo as instâncias ordinárias, não há prova de que a CEF haja feito esse ato de participação.
5. DISSÍDIO PRETORIANO. Não se conhece da divergência, por não-observância dos requisitos legais e regimentais.
Recurso especial conhecido em parte e improvido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
PERMISSIVO "A"
A.1 - A CAUSA DOS AUTOS
O caso dos autos tem por subjacente um contrato de mútuo habitacional firmado entre José Américo Sobrinho e TERRA COMPANHIA DE CRÉDITO IMOBILIÁRIO - TERRA CCI, agente financeiro vinculado ao extinto Banco Nacional de Habitação - BNH, sucedido pela ora recorrente.
Houve, posteriormente, cessão de posição contratual de José Américo Sobrinho para os recorridos ANTONIO OSMAR TELES MONTEIRO e OUTRO, por força de escritura de compra e venda, lavrada aos 30.10.1989. Na escritura, ressalvou-se a existência de caução hipotecária dada ao BNH por TERRA CCI, por meio de endosso em cédula hipotecária.
Houve quitação antecipada do saldo devedor pelos cessionários ANTONIO OSMAR TELES MONTEIRO aos 27.3.1991, com quitação passada por TERRA CCI aos 24.6.1997. Na ocasião, foi autorizado o levantamento do gravame hipotecário.
Remanesceu, porém, o direito real de caução sobre crédito hipotecário, titularizado pela CEF contra a TERRA CCI, que gravava o imóvel adquirido pelos recorridos. Por essa razão, optaram os recorridos pelo ingresso de ação ordinária contra a CEF, a fim de liberá-los desse ônus real.
A CEF, em sua manifestação nos autos, deu ciência de que, aos 30.9.1998, firmou contrato de novação e outros pactos com TERRA CCI, que se encontrava em liquidação extrajudicial. Por esse negócio jurídico, a CEF adquiriu o direito real de garantia pelos créditos hipotecários de titularidade da TERRA CCI a serem exercidos contra os mutuários do SFH. Dentre esses direitos, encontrava-se a caução hipotecária constituída sobre o imóvel dos recorridos.
O inadimplemento das obrigações pela TERRA CCI ante à CEF gerou a esta a pretensão de se opor ao levantamento do gravame de caução.
Apreciada a lide, em primeiro grau, decidiu-se pela ineficácia do negócio jurídico celebrado entre a CEF e a TERRA CCI em relação a terceiros, dada a ausência de comunicação prévia. O fato de haver registro do título não implicava presunção de conhecimento.
O acórdão do TRF-5, que conservou a sentença, entendeu que os recorridos cumpriram suas obrigações perante o credor, não sendo lícito mantê-los vinculados por efeito de inadimplemento da TERRA CCI para com a CEF.
A questão, por conseguinte, está em saber se os recorridos podem-se liberar de gravame, após a quitação de suas obrigações, quando persistem vínculos de seu credor com a CEF.
B.2. A CONTROVÉRSIA JURÍDICA
A causa (a lide deduzida em juízo) e a controvérsia (a questão jurídica a ser resolvida), para se usar de antiga linguagem, de bom e velho sabor medieval, ainda conservada no direito anglo-saxão (cause and controverse) não possuem precedentes na Segunda Turma. Trata-se, em verdade, de um problema que envolve conceitos jurídicos recentemente estudados na doutrina brasileira, introduzidos no debate contemporâneo por ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO (Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado. Direito de execlusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribuiu para inadimplemento contratual. In. Estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004. p.137-147), posteriormente desenvolvida em outros estudos dogmáticos: RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz. Título A doutrina do terceiro cúmplice : autonomia da vontade, o princípio res inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. In Revista dos Tribunais, v.93, n.821, p.80-98, mar., 2004; PENTEADO, Luciano Camargo. Efeitos contratuais perante terceiros. São Paulo: Quartier Latin, 2007.)
O tradicional princípio da relatividade dos efeitos do contrato (res inter alios acta), que figurou por séculos como um dos primados clássicos do Direito das Obrigações, merece hoje ser mitigado por meio da admissão de que os negócios entre as partes eventualmente podem interferir na esfera jurídica de terceiros – de modo positivo ou negativo –, bem assim, tem aptidão para dilatar sua eficácia e atingir pessoas alheias à relação inter partes.
Para tanto, faz-se indispensável citar três formas diferentes de apresentação dessa eficácia contratual extra partes, a saber:
1. Oponibilidade. Os contratos podem ser oponíveis a terceiros, o que implica duas situações clássicas:
a) a obrigação de conhecimento de um contrato alheio por alguém, o que opera efeitos (principalmente) no plano subjetivo da boa-fé. É o exemplo clássico da oponibilidade de um contrato particular registrado em cartório, o que lhe confere publicidade e, com isso, faz presumir seu conhecimento por terceiros, negando-se-lhes a alegação de boa-fé quando invocam sua insciência.
b) a obrigação de respeitar uma relação jurídica alheia, o que implica a produção de efeitos jurídicos na esfera de quase todos os demais indivíduos não-partícipes do negócio. Em geral, essa forma de oponibilidade é também eficaz quanto à boa-fé de terceiros. Mas, essencialmente, ela atrai a chamada eficácia 'erga omnes' (oponibilidade contra todos), presente nos Direitos Reais, e nascida do registro imobiliário.
O registro dá publicidade e torna o direito oponível a terceiros, os quais devem conhecê-lo e respeitá-lo. Se imobiliário, o registro dá publicidade e cria "imunidade ao conteúdo daqueles atos pelos demais atuantes no cenário jurídico, revestindo-se a situação jurídica registrada de um poder de exclusão das demais faculdades, pretensões e poderes jurídicos em geral." (PENTEADO, Luciano Camargo. Op. cit. p.167).
2. Doutrina do terceiro cúmplice. A doutrina do terceiro cúmplice tem por objeto a interferência ilícita do terceiro em negócios jurídicos alheios, por meio da indução ao inadimplemento (RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Op. cit. p.94-98).
3. Contrato em dano a terceiro. É o caso da dilatação eficacial (as chamadas externalidades negativas) de um contrato em relação a terceiros. Cuida-se de hipótese na qual os contraentes, ao celebrarem um negócio, geram efeitos danosos a alguém que é alheio ao contrato.
Além de situações já bem conhecidas da doutrina (contrato com pessoa a declarar e estipulação em favor de terceiro), essas três formas de ampliação da eficácia dos negócios têm por suporte a quebra da higidez do princípio da relatividade dos efeitos do contrato e, ainda, a proteção à boa-fé objetiva e à função social do contrato.
Essa restrição genérica a que a lesividade contratual inter partes se projeta extra partes é especialmente aplicada nas doutrina e jurisprudência francesas, quando se cuida de cessão de posições contratuais. É essa, em linhas gerais, a posição de MARIE-LAURE IZORCHE:
"O princípio é, desse modo, conservado: o cessionário do contrato, ainda que nos casos legalmente previstos, é tido como um terceiro qualquer para todo o período precedente à cessão, e ele apenas sofre a oponibilidade, até quando se torne parte do contrato após a cessão, e se vincule, nessa qualidade, pelos efeitos obrigatórios.
A única diferença com a cessão convencional está no fat ode que ele (o cessionário) não manifestou sua vontade de assumir a posição de parte do contrato que lhe foi transmitido, em concomitância à coisa adquirida: tudo se passa como se o contrato fosse um accessório da coisa, o qual se transmite automaticamente com ela mesma."(IZORCHE, Marie-Laure. Les effets des conventions à l'égard des tiers: l'expérience française. In. VACCA, Letizia (a cura di). Gli effeti del contratto nei confronti dei terzi nella prospettiva storico-comparatistica. Torino: Giappichelli, 2001. p.98.)
No original:
"Le principe est donc sauf: le cessionnaire du contrat, même dans les cas prévus par la loi, est consideré comme un tiers quelconque pour toute la période précédant la cession, et il n'est concerné que par l'opposabilité, alors qu'il devient partie au contrat après la cession, et est donc concerné, en tant que tel, par les effets obligatoires.
La seule différence avec la cession conventionelle réside dans le fait qu'il n'a pas manifesfé sa volonté de recueillir la position de partie au contrat qui lui est transmis, em même temps que la chose qu'il acquiert: tout se passe comme si le contrat était un acessoire de la chose, accessoire que se transmet automatiquement avec celle-ci".
Ora, os recorridos, tal como se observa do acórdão, quitaram suas obrigações com a credora TERRA CCI. A cessão dos direitos de crédito do BNH, sucedido pela CEF, ocorreu após esse adimplemento, que se operou inter partes (devedor e credor). O negócio entre a CEF e a TERRA CCI não poderia dilatar sua eficácia para atingir os devedores adimplentes.
Aqui, a oponibilidade da cessão de direitos (TERRA CCI e CEF) deixa de atingir a eficácia dos terceiros, por conta da proteção jurídica hoje concedida pelo ordenamento às pessoas que se põem à margem de negócios que lhes são prejudiciais, como ocorreu na espécie.
Logo, não houve violação do art. 458, II, CPC. O acórdão é bem fundamento e escolheu, dentre as molduras possíveis, a melhor interpretação para o caso e a controvérsia.
Outrossim, não houve malferimento dos arts.70 e 102, CPC. Nesse ponto, invoco, como razão de decidir, o parecer do Ministério Público Federal:
"A alegação de infringência ao art. 102 do CPC mostra-se manifestamente improcedente, vez que as demandas articuladas entre a CEF e a agente financeira TERRA CCI, com fundamento no descumprimento de contrato pactuado entre elas não tem qualquer conexão com o presente feito, a versar sobre direito real de garantia pendente sobre imóvel, que, a toda evidência, deve ser processado no foro em que situado o imóvel.
O mesmo se diga da tese que pugna pelo reconhecimento de atentado ao art. 70, III, do CPC, pois não há obrigatoriedade em se convocar a TERRA CCI à presente relação processual, na medida em que a legitimidade para liberação da caução fiduciária é exclusiva da CEF, que poderá, por outros meio judiciais, exigir da agente financeira o cumprimento das obrigações contratuais desrespeitadas."
A tese de ofensa aos arts. 3º, 6º, e 267, inciso VI, CPC, também não se sustenta. A posição jurídica dos recorridos é avaliável como digna de interesse processual, em razão da aludida dilatação de efeitos do contrato entre a TERRA e a CEF. A liberação de seu gravame está estritamente vinculada à solução da controvérsia. Daí não se cuidar desse suposto vilipêndio.
O único ponto digno de exame mais acurado é o relativo à suposta ofensa ao art. 794 do Código Civil revogado, que possui a redação seguinte:
"Art. 794. O devedor do título caucionado, tanto que receba a intimação do art. 792, II, ou se dê por ciente da caução, não poderá receber quitação do seu credor."
Cumpre examinar a estrutura jurídica dessa norma.
Entenderam os juízos ordinários que a existência de caução devidamente publicizada no registro imobiliário não tornaria oponível aos recorridos o negócio realizado entre a CEF e a TERRA CCI. Com isso, não se poderia atribuir-lhes responsabilidade pela inadimplência da TERRA CCI.
Se interpretado o art. 794 em concomitância com o revogado art. 792, observar-se-á que:
"Art. 792.  Ao credor por esta caução compete o direito de:
IÂ -Â conservar e recuperar a posse dos títulos caucionados, por todos os meios cíveis ou criminais, contra qualquer detentor, inclusive o próprio dono;
IIÂ - fazer intimar ao devedor dos títulos caucionados, que não pague ao seu credor, enquanto durar a caução (art. 794);
IIIÂ - usar das ações, recursos e exceções convenientes, para assegurar os seus direitos, bem como os do credor caucionante, como se deste fora procurador especial;
IVÂ - receber a importância dos títulos caucionados, e restituí-los ao devedor, quando este solver a obrigação por eles garantida."
Observando o que se deu no caso concreto:
a) a CEF não intimou (rectius, notificou) os recorridos para que não pagassem o débito à TERRA CCI durante a vigência da caução, como prescrevia a legislação vigente à época;
b) a CEF, como lembra o Ministério Público Federal, "imputou à agente financeira TERRA CCI a obrigação de fazer a cobrança dos créditos devidos pelos Recorridos. De acordo com o que se aferiu na instância a quo, com base no instrumento de novação e outros pactos ofertado pela própria CEF, esta teria, inclusive, assumido a responsabilidade pela fiscalização do repasse dos valores recebidos pela agente financeira TERRA CCI, no que, efetivamente, não logrou êxito".
A indispensabilidade da notificação, como atestado nas instâncias próprias, não foi objeto das mesuras necessárias pela CEF.
A doutrina contemporânea ao Código Civil de 1916, em interpretação aos arts. 792 e 794, mostra-se simétrica aos postulados aqui delineados. O clássico JOÃO MANUEL DE CARVALHO SANTOS (Código Civil brasileiro interpretado. 12 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982. v.10. p. 205, ao comentar o art.792, inciso II, CCB/1916, anota que:
"3. Fazer intimar ao devedor dos títulos caucionados, que não pague ao seu credor, enquanto durar a caução. É o que se denomina denúncia da caução. A denúncia se justifica, porque a caução, em última análise envolve uma cessão limitada dos direitos creditórios, que, se não prevalecesse a tornaria sem efeito. Para que possa prevalecer, é imprescindível que o devedor dos títulos caucionados fique conhecendo a existência da caução, e pois, dessa cessão.
A denúncia deve ser feita por via de intimação judicial ao devedor dos títulos caucionados, para que não pague ao seu credor, enquanto durar a caução."
Adiante, JOÃO MANUEL DE CARVALHO SANTOS (Op. cit. p.208) explicita que, se o devedor receber a quitação do credor, a despeito da cessão do título, prevalece o direito exoneratório daquele: "Mas se a quitação for dada, não obstante a proibição legal, nem por isso o pagamento feito e a quitação respectiva ficam sem valor".
Por fim, considero que, independentemente do teor da lei, a aplicação dos princípios relativos à proteção das relações jurídicas em face de terceiros é fundamento suficiente, ao lado da função social e da boa-fé objetiva, para impedir a responsabilização dos recorridos.
Essa perspectiva foi a que presidiu, no STJ, a edição da Súmula 308, cujo teor é auto-explicativo: "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel".
Analogicamente, a Súmula tem aplicação ao caso. O promitente comprador não pode responder por dívidas da construtora, contraídas com agente financeiro, em razão de lhe ser conservada a esfera jurídica dos atos de terceiros lesivos a seu patrimônio. É idêntico o fundamento deste recurso.
Desse modo, é de ser negado provimento ao recurso especial.
PERMISSIVO "C"
O recurso desatende o teor do art. 541, parágrafo único, CPC, combinado com o art. 255, RISTJ.
Como se tem ressaltado na Segunda Turma, não se pode conhecer do especial quando se omite a parte na "demonstração da exata similitude fático-jurídica entre os acórdãos tidos por divergentes e, tampouco (há) o cotejo analítico entre eles, o que se afigura indispensável para a admissão do apelo especial, conforme os ditames estabelecidos pelo § 2º do art. 255 do RISTJ e art. 541, parágrafo único, do CPC." (REsp 681.500/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 12.8.2008, DJe 26.8.2008.)
Em suma, "não havendo a recorrente demonstrado, mediante a realização do devido cotejo analítico, a existência de similitude das circunstâncias fáticas e do direito aplicado nos acórdãos recorrido e paradigmas, resta desatendido o comando dos arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ." (REsp 881.672/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 24.6.2008, DJe 13.8.2008).
Não conheço do recurso pelo permissivo "c".
CONCLUSÃO
Ante o exposto, conheço parcialmente do recurso especial e nego-lhe provimento.
É como penso. É como voto.
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator
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