JULGAMENTOS PARCIAIS DE MÉRITO EM AÇÕES DE FAMÍLIA.
VISÃO JURISPRUDENCIAL APÓS SEIS ANOS DE VIGÊNCIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Flávio Tartuce [1]
Em coluna anterior, publicada neste canal em janeiro de 2016, destaquei que uma das normas do então Novo Código de Processo Civil que poderia ter grande aplicação para as ações de família seria o seu art. 356, que trata do julgamento parcial de mérito (ver em: https://www.migalhas.com.br/coluna/familiaesucessoes/233055/do-julgamento-antecipado-parcial-de-me....
A sua incidência, como defendido, dar-se-ia sobretudo em ações de divórcio e de dissolução de união estável, podendo o julgador decretar o fim do vínculo familiar havido entre as partes e seguir na demanda com o debate e a análise de outros temas, como alimentos, guarda de filhos, uso do nome, partilha de bens e pedido de reparação de danos, inclusive morais.
Conforme está previsto nesse comando instrumental, o juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: a) mostrar-se incontroverso; e b) estiver em condições de imediato julgamento, por não haver a necessidade de produção de provas ou por ter ocorrido à revelia. Ademais, o seu § 1º prevê que a decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida – certa quanto à existência e determinada quanto ao valor –, ou mesmo ilíquida – que não preenche tais requisitos; o que pode ser aplicado a dívidas alimentares, por exemplo.
Além disso, prescreve o comando que, eventualmente, a parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto; o que igualmente pode incidir a respeito dos alimentos (art. 356, § 2.º, do CPC/2015). Na hipótese dessa execução, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva (art. 356, § 3.º, do CPC/2015). Em complemento, a liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz (art. 356, § 4.º, do CPC/2015).
Por fim, está estabelecido na norma processual que a decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento (art. 356, § 5.º, do CPC/2015); posição que há tempos era defendida por parte da doutrina, inclusive para as ações de família (TARTUCE, Fernanda. Processo civil aplicado ao direito de família. São Paulo: GEN/Método, 2012. p. 253).
Como também sustentei naquele meu texto anterior, ainda no âmbito doutrinário, a solução retirada do art. 356 do CPC/2015 para as ações de família, pelo menos parcialmente, era retirada do Enunciado n. 602, aprovado na VII Jornada de Direito Civil, no ano de 2015, e com a seguinte redação: “transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição de mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento” (Enunciado n. 602). No mesmo sentido, o Enunciado n. 18 do IBDFAM, aprovado no seu X Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões, em outubro do mesmo ano, prescreve que, “nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do Novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas”.
Conforme também pontuava, a norma processual em estudo dialoga perfeitamente com a Emenda Constitucional n. 66/2010, que suprimiu os prazos para o divórcio e a separação de direito – pelo menos na visão que sigo –, alterando o art. 226, § 6.º, do Texto Maior e facilitando a dissolução do vínculo conjugal. Esse diálogo é perfeitamente percebido pelo fato de o Estatuto Processual afastar qualquer burocracia ou entrave maior para o fim do casamento ou da união estável, deixando as questões pendentes para a solução posterior das partes. Sobre o divórcio, concretiza-se o teor do art. 1.581 do Código Civil, segundo o qual o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens.
Pois bem, passados seis anos de vigência do Código de Processo Civil, é preciso verificar se, de fato, a minha previsão de incidência da norma se efetivou, ou não, no campo prático das ações de família.
Realizando pesquisa específica relativa ao art. 356 do CPC e a palavra "divórcio" em base de dados da Editora Lex, encontrei 77 acórdãos que aplicam ou trazem o debate de incidência do comando para as ações dessa natureza, dos Tribunais de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Ceará, Pernambuco, Paraná, Sergipe, Santa Catarina, Goiás e Mato Grosso. A grande maioria dos arestos que encontrei é da primeira Corte citada, merecendo destaque o seguinte, que segue exatamente exemplos por mim destacados a respeito de temas que podem ser debatidos, após a decretação do fim do casamento:
"DIVÓRCIO. DECISÃO QUE INDEFERIU A HOMOLOGAÇÃO DO DIVÓRCIO CONSENSUAL, ANTE O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO APENAS QUANTO AOS ALIMENTOS DEVIDOS AOS FILHOS. Insurgência. Acolhimento. Partes que acordaram no que diz respeito ao divórcio, partilha de bens, guarda e regime de visitas dos filhos. Caso de sentença parcial de mérito, para a decretação e homologação do divórcio consensual. Exegese do art. 356 do CPC. Precedentes desta Corte. Agravo Provido" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2230989-39.2021.8.26.0000, Acórdão n. 15328528, Araraquara, Quinta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, julgado em 19/01/2022, DJESP 24/01/2022, p. 7114).
Realizando a busca pelo art. 356 do CPC/2015 e o termo "separação judicial" no mesmo repertório, apenas três arestos surgiram, dos Tribunais Estaduais de Goiás, Ceará e Rio Grande do Sul. Isso demonstra que – a despeito do debate sobre a manutenção ou não no nosso sistema jurídico desde a Emenda Constitucional n. 66, o que pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal – as ações de separação são hoje raras na prática. Dos três acórdãos que encontrei, colaciono o seguinte, com interessante análise processual sobre a sua conversão em divórcio: "de acordo com o art. 327 e §§ 1º e 2º do CPC/2015, é admitida a cumulação, em um único processo contra o mesmo réu, de vários pedidos, desde que compatíveis entre si, seja competente para apreciá-los o mesmo juízo e seja empregado o mesmo tipo de procedimento. Situação em que o autor ingressou com ação de conversão de separação judicial em divórcio, requerendo, cumulativamente, a revisão de alimentos e regulamentação de visita, optando pelo procedimento comum. [...]. O provimento deste recurso limita-se à desconstituição da sentença no que diz com a extinção do feito relativamente às pretensões cumuladas (item 'a' do dispositivo sentencial). Resta, porém, subsistente o Decreto de divórcio (item 'b' do dispositivo sentencial). Tal solução é agora autorizada pelo art. 356, I, do CPC, na medida em que não há controvérsia quanto ao pedido de divórcio" (TJRS, Apelação cível n. 0005725-67.2017.8.21.7000, Canoas, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 23/03/2017, DJERS 30/03/2017).
Com a pesquisa pelo art. 356 do CPC e a expressão "união estável", foram encontrados 35 acórdãos, dos Tribunais Estaduais de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Ceará. Da última Corte Estadual, destaco decisum com conclusão prática interessante, no sentido de que a norma processual em estudo pode ser aplicada não só para a dissolução da união estável, mas para o seu reconhecimento, quando for inconteste entre as partes: "é cediço, que nos processos de família a conciliação é de fundamental importância, tanto para as partes, como para o judiciário, interessados, familiares e a própria sociedade, uma vez que oportuniza aos envolvidos na relação processual a construção de uma decisão resolutiva dos seus próprios conflitos, além de imprimir celeridade aos feitos no âmbito de família. Também observa-se, que no caso concreto, havia a possibilidade de julgamento antecipado parcial do mérito (artigo 356, do CPC), com a solução prévia da matéria incontroversa, como por exemplo, o reconhecimento da união estável, prosseguindo o processo em relação às demais, o que também constitui instrumento hábil para oferecer efetividade à prestação jurisdicional, minimizando os pontos de atrito entre as partes" (TJCE, Apelação n. 0838528-40.2014.8.06.0001, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Maria de Fátima de Melo Loureiro, DJCE 24/06/2020, p. 228). Justamente pela não aplicação da última norma, entre outros temas, a sentença de primeiro grau acabou sendo anulada pelo Tribunal.
Sendo assim, pela pesquisa realizada, parece-me que o que previ, no ano de 2016, a respeito da efetivação prática do art. 356 do CPC/2015 para as ações de família acabou se concretizando.
Por fim, pela sua relevância, há que se mencionar importante julgado da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, de 15 de março de 2022, relatado pelo Ministro Marco Buzzi e publicado no seu Informativo de Jurisprudência n. 729. O número do Recurso Especial não foi divulgado, por questão de segredo de justiça. Conforme a tese publicada, "sob a égide do CPC/1973, inexiste incompatibilidade lógica entre o acordo efetuado quanto à pretensão principal de separação conjugal e o prosseguimento do feito quanto às pretensões conexas".
Penso que, em certa medida, a conclusão do aresto antecipa, sob a vigência do Estatuto Processual anterior, conclusões que podem ser retiradas do art. 356 do CPC/2015. Mais do que isso, traz orientações importantes a respeito da última norma instrumental.
No caso concreto, debateu-se se houve a renúncia tácita a direito de ação ou a perda superveniente do interesse de agir, a obstar o prosseguimento do feito quanto a pedido de indenização por danos morais em ação de separação judicial, notadamente diante da composição das partes quando de audiência, a respeito da sua separação. A resposta dada pelos julgadores foi negativa, uma vez que a renúncia e a transação merecem interpretação restritiva, pelo que se retira dos arts. 114 e 843 do Código Civil.
Ainda como está na publicação do acórdão naquele informativo do Superior Tribunal de Justiça, "no particular, assinala-se que a demanda subjacente ao recurso especial, assim como a autocomposição celebrada, deu-se em momento anterior à Emenda Constitucional n. 66/2010, a qual introduziu o divórcio direto e, de forma elogiável, mitigou a necessidade de interferência estatal na esfera familiar, possibilitando a concretização, pelos cônjuges, de sua autonomia privada". E, mais, "conforme dispunha o vigente artigo 1.123 do CPC/1973, é lícito às partes, a qualquer tempo, no curso da separação judicial, requererem a conversão em separação consensual [...], sem que isso implique renúncia ou perda de interesse de agir em relação a pretensões conexas, decorrentes do descumprimento de obrigações inerentes à sociedade conjugal, mormente nas hipóteses em que igualmente consubstanciam grave lesão a direito de personalidade. No caso, nada obstante tenha a parte autora, ao entabular acordo, transmudado a natureza da demanda, no que se refere à separação – de litigiosa para consensual –, com o acertamento dos demais pedidos decorrentes (guarda, visitas), em nenhum momento declarou expressamente desistência ou renúncia ao direito em que fundamentado o pedido condenatório".
Entendo que deduções do julgado dialogam perfeitamente com a possibilidade de aplicação do julgamento parcial de mérito nas ações de família. Sendo assim, eventuais transações realizadas entre as partes não podem afastar a possibilidade de ingresso de demandas ou a formulação de pedidos posteriores na própria ação que visa à dissolução do vínculo do casamento e da união estável.
Essa última conclusão está totalmente adequada à instrumentalidade e à eficiência do processo, incentivando, ainda, a composição entre as partes sobre questões pacíficas da demanda, conceitos que ganharam muita força desde a elaboração do meu último texto e nos seis anos de vigência do Código de Processual Civil.
[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Conselheiro seccional da OABSP e Diretor da ESAOABSP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.r jurídico.
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