quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A BOA-FÉ COMO EXCEÇÃO À PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL. COLUNA DO MIGALHAS DE AGOSTO DE 2020

A BOA-FÉ COMO EXCEÇÃO À PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL

 Flávio Tartuce[1]

O instituto do Bem de Família Legal – tratado pela Lei n. 8.009/1990 – constitui um dos mais importantes não só no âmbito do Direito Civil, como também no campo processual, passando a sua análise pela abordagem de questões interdisciplinares, que envolvem ainda outras áreas jurídicas, como o Direito do Trabalho, o Direito Tributário e o Direito Constitucional; o último diante da proteção da moradia como direito fundamental, prevista no art. 6º da Constituição Federal de 1998.

O tratamento legislativo, como se sabe, tem origem nas lições doutrinárias de Álvaro Villaça Azevedo – que sempre merece as nossas homenagens –, ao abordar a categoria do homestead do Direito Norte-Americano em seus estudos e trazer tal instituto ao nosso País, colaborando para a elaboração da norma citada. Também nesse tema, além da união estável, Villaça deixou a sua "marca legislativa", que ficará para a posteridade e para as futuras gerações.

Assim, o art. 1º da Lei n. 8.009/1990 consagra a proteção automática, pela impenhorabilidade, do imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, não respondendo por qualquer dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas exceções previstas na própria lei.

No âmbito da jurisprudência, tem-se interpretado o comando extensivamente em alguns casos, justamente para a tutela da moradia. Por isso, considera-se que também é impenhorável o imóvel onde resida a pessoa solteira (Súmula n. 364 do STJ). Ainda, também é considerado bem de família o único imóvel locado para terceiros, cujo aluguel é utilizado para a locação de outro imóvel, este sim destinado à moradia (Súmula n. 486 do STJ). Na última situação, tem-se o que denomino como bem de família indireto.

A respeito dos bens que podem ser penhorados ou não, alguns acessórios do imóvel, tido como bem principal, são excluídos da proteção. Como consta do art. 2º da Lei n. 8.009/1990, "excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos". Lembro que, por força do art. 833, inc. II, do CPC/2015, são impenhoráveis os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida. Constata-se, portanto, que a lei especial escolheu alguns bens como excluídos do padrão médio de vida do devedor.

Quanto às exceções à impenhorabilidade do próprio imóvel, estão previstas no art. 3º da norma em estudo. Pontue-se que o seu inciso I, relativo ao empregado doméstico, foi expressamente revogado pela Lei Complementar n. 150/2015, restando apenas seis exceções, todas elas com polêmicas na devida análise prática, notadamente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (sobre o tema, ver: TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 1, p. 380-384).

 A primeira exceção diz respeito ao crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato. A segunda é relativa aos alimentos familiares, resguardados os direitos, sobre o bem imóvel, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida. A terceira exceção abrange a cobrança de impostos, predial ou territorial – caso do IPTU que recaia sobre o próprio imóvel –, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar, o que alcança as dívidas condominiais, assim como outras obrigações propter rem. A quarta possibilidade de quebra da impenhorabilidade é relativa à execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, nos seus interesses conjuntos. Também se admite a penhora no caso de o imóvel ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. Por fim, apesar de persistente o debate da sua inconstitucionalidade, admite-se que a proteção do bem de família seja afastada no caso de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação de imóvel urbano, regulado pela Lei n. 8.245/1991.

Sobre a última previsão, sabe-se que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2006, julgou pela sua constitucionalidade (RE 407.688/SP). Diante da insistência de alguns Tribunais Estaduais em aderirem ao entendimento da inconstitucionalidade – que havia sido adotado em decisão monocrática anterior, do Ministro Carlos Velloso (RE 352.940/SP) –, em outubro de 2015, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 549 da Corte, segundo a qual “é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”. De toda sorte, a demonstrar toda a divergência a respeito da exceção, no ano de 2018, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal voltou a aderir à tese da inconstitucionalidade, em se tratando de locação não residencial, em que a proteção da moradia do credor não está presente, mesmo que de forma indireta (STF, RE 605.709/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Red. p/ Ac. Min. Rosa Weber, j. 12.06.2018, Informativo n. 906 do STF). Toda essa variação diz respeito a uma norma que nunca foi de pacífica aceitação, a gerar instabilidade e insegurança.

Além desse rol de exceções, o Superior Tribunal de Justiça tem concluído que a boa-fé, notadamente a de natureza objetiva, deve ser levada em conta na análise da tutela do bem de família, o que representaria uma outra exceção à estudada impenhorabilidade.

De início, em julgado do ano de 2012, entendeu a Corte que a impenhorabilidade não prevalece nas hipóteses em que o devedor atua de má-fé, alienando todos os seus bens e fazendo restar apenas o imóvel de residência. Conforme voto da Ministra Nancy Andrighi, “não há, em nosso sistema jurídico, norma que possa ser interpretada de modo apartado aos cânones da boa-fé. Todas as disposições jurídicas, notadamente as que confiram excepcionais proteções, como ocorre com a Lei 8.009/1990, só têm sentido se efetivamente protegerem as pessoas que se encontram na condição prevista pelo legislador. Permitir que uma clara fraude seja perpetrada sob a sombra de uma disposição legal protetiva implica, ao mesmo tempo, promover uma injustiça na situação concreta e enfraquecer, de maneira global, todo o sistema especial de proteção objetivado pelo legislador” (STJ, REsp 1.299.580/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20.03.2012). A premissa tem sido confirmada em decisões posteriores, uma vez que “deve ser afastada a impenhorabilidade do único imóvel pertencente à família na hipótese em que os devedores, com o objetivo de proteger o seu patrimônio, doem em fraude à execução o bem a seu filho menor impúbere após serem intimados para o cumprimento espontâneo da sentença exequenda” (STJ, REsp 1.364.509/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.06.2014).

Ou, ainda mais recentemente: “a regra de impenhorabilidade do bem de família trazida pela Lei 8.009/90 deve ser examinada à luz do princípio da boa-fé objetiva, que, além de incidir em todas as relações jurídicas, constitui diretriz interpretativa para as normas do sistema jurídico pátrio. Nesse contexto, caracterizada fraude à execução na alienação do único imóvel dos executados, em evidente abuso de direito e má-fé, afasta-se a norma protetiva do bem de família, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação dos devedores em desconformidade com o cânone da boa-fé objetiva. Precedentes” (STJ, REsp 1.575.243/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.03.2018, DJe 02.04.2018).

Além dessa reiteração de julgamentos na Terceira Turma da Corte, na sua Quarta Turma, de 2020, destaco o acórdão que admitiu que o bem de família seja objeto de alienação fiduciária em garantia, hipótese em que não se admite a alegação da impenhorabilidade, novamente com base no argumento da quebra da boa-fé. Como consta dos seus termos, como regra geral, "a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada (Ag. Rg. nos EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 14.03.2011, DJe 18.03.2011)". Todavia, ainda nos termos do decisum, "à luz da jurisprudência dominante das Turmas de Direito Privado: (a) a proteção conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (b) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação do princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico. No caso dos autos, não há como afastar a validade do acordo de vontades firmado entre as partes, inexistindo lastro para excluir os efeitos do pacta sunt servanda sobre o contrato acessório de alienação fiduciária em garantia, afigurando-se impositiva, portanto, a manutenção do acórdão recorrido no ponto, ainda que por fundamento diverso" (STJ, REsp 1.595.832/SC, Quarta Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 29.10.2019, DJe 04.02.2020).

Como se observa, a Corte Superior, em suas duas Turmas de Direito Privado, tem entendido reiteradamente que a boa-fé objetiva deve ser levada em conta para a análise da impenhorabilidade ou não do bem de família legal. Como se pode observar, os acórdãos abrem mais uma exceção, além do rol previsto no art. 3º da Lei n. 8.009/1990, concebido como meramente exemplificativo ou numerus apertus.

As decisões trazem uma interessante análise, prestigiando a socialidade e a eticidade, dois dos princípios do Código Civil de 2002. Também efetivam a boa-fé objetiva, argumento que tem prevalecido em muitos debates existentes no âmbito do Direito Privado. De todo modo, encontram obstáculo na antiga máxima segundo a qual as normas de exceção não admitem interpretação extensiva; além de sacrificar a proteção da moradia, de índole constitucional. Eis, portanto, uma questão que envolve uma difícil escolha aos julgadores e juristas. De todo modo, fico com as segundas afirmações e com a tese de que o rol do art. 3º da Lei n. 8.009/1990 é taxativo ou numerus clausus.


[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

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