quarta-feira, 27 de novembro de 2019

INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM TESTAMENTO. COLUNA DO MIGALHAS DO MÊS DE NOVEMBRO DE 2019.

INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM TESTAMENTO
Flávio Tartuce[1]
Com a aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei 4.725/2004, convertido na Lei 11.441/2007, o sistema jurídico brasileiro passou a admitir o inventário extrajudicial, feito por escritura pública, perante o Tabelionato de Notas. Trata-se de inovação festejada, que veio a reduzir consideravelmente a burocracia para a partilha dos bens do falecido. Nesse sentido, a redação anterior do art. 982 do CPC de 1973, já alterada pela Lei 11.965/2009, pela menção ao defensor público, estabelecia que, havendo testamento ou interessado incapaz, somente seria possível o inventário judicial. Por seu turno, se todos herdeiros fossem capazes e concordes, haveria a viabilidade jurídica de processamento do inventário e da partilha por escritura pública, a qual constituiria título hábil para o registro imobiliário. A norma também enunciava que o tabelião somente lavraria a escritura pública se todas as partes interessadas estivessem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constariam do ato notarial. Por fim, estava previsto na lei anterior que a escritura e demais atos notariais seriam gratuitos àqueles que se declarassem pobres, sob as penas da lei.
O Código de Processo Civil de 2015 praticamente repetiu o preceito no seu art. 610, que merece destaque, para os devidos fins de aprofundamento:
“Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial.
§ 1.º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
§ 2.º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial”.
Como se pode perceber, a única diferença substancial entre os dois comandos diz respeito à falta de menção à gratuidade do ato para os que se declararem pobres, assim como ocorreu com a separação e o divórcio extrajudiciais. De todo modo, defendo desde a emergência do CPC/2015 que a gratuidade permanece no sistema jurídico brasileiro, por estar prevista em lei especial anterior, qual seja a Lei 11.441/2007, que não foi recepcionada nem revogada nessa parte pelo Estatuto Processual em vigor. Vale lembrar, entre outros argumentos para a sua manutenção, que há referência expressa à gratuidade no art. 5.º, inciso LXXIV, da Norma Fundamental, in verbis: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Exatamente nesse sentido, e citando a minha posição doutrinária, merece relevo decisão prolatada no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em abril de 2018, no sentido de que “a consulta é respondida no sentido que a gratuidade de justiça deve ser estendida, para efeito de viabilizar o cumprimento da previsão constitucional de acesso à jurisdição e a prestação plena aos atos extrajudiciais de notários e de registradores. Essa orientação é a que melhor se ajusta ao conjunto de princípios e normas constitucionais voltados a garantir ao cidadão a possibilidade de requerer aos poderes públicos, além do reconhecimento, a indispensável efetividade dos seus direitos (art. 5.º, XXXIV, XXXV, LXXIV, LXXVI e LXXVII, da CF/88), restando, portanto, induvidosa a plena eficácia da Resolução n. 35 do CNJ, em especial seus artigos 6.º e 7.º” (CNJ, Consulta 0006042-02.2017.2.00.0000, requerente: Corregedoria-Geral da Justiça do Estado da Paraíba). Assim, a gratuidade das escrituras de inventário está mantida em todo o território nacional, na linha desse importante julgado do CNJ, que teve como relator o Conselheiro Arnaldo Hossepian.
Voltando à essência do tema deste artigo, pela literalidade dos dois textos instrumentais, o anterior e o atual, constata-se que, sendo as partes capazes e inexistindo testamento, poderão os herdeiros optar pelo inventário extrajudicial. O requisito da inexistência do testamento já vinha sendo contestado por muitos doutrinadores, existindo decisões de primeira instância que afastavam tal elemento essencial, quando todos os herdeiros forem maiores, capazes e concordantes com a via extrajudicial.
A questão foi anteriormente julgada pela 2.ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital de São Paulo, tendo sido prolatada a decisão pelo magistrado Marcelo Benacchio, em abril de 2014. A dúvida havia sido levantada pelo 7.º Tabelião de Notas da Comarca da Capital, com pareceres favoráveis à dispensa do citado requisito de representante do Ministério Público e do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo, este último apoiado em entendimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Ponderou o julgador, naquela ocasião, que as posições que admitem o inventário extrajudicial havendo testamento “são entendimentos respeitáveis voltados à eficiente prestação do imprescindível serviço público destinado à atribuição do patrimônio do falecido aos herdeiros e legatários. Ideologicamente não poderíamos deixar de ser favoráveis a essa construção na crença da necessidade da renovação do Direito no sentido de facilitar sua aplicação e produção de efeitos na realidade social, econômica e jurídica”. No entanto, seguindo outro caminho, deduziu o magistrado em trechos principais de sua sentença que “o ordenamento jurídico aproxima, determina e impõe o processamento da sucessão testamentária em unidade judicial como se depreende dos regramentos atualmente incidentes e dos institutos que cercam a sucessão testamentária; daí a razão da parte inicial do art. 982, caput, do Código de Processo Civil iniciar excepcionando expressamente a possibilidade de inventário extrajudicial no caso da existência de testamento independentemente da existência de capacidade e concordância de todos interessados na sucessão; porquanto há necessidade de se aferir e cumprir (conforme os limites impostos à autonomia privada na espécie) a vontade do testador, o que não pode ser afastado mesmo concordes os herdeiros e legatários”.
Com o devido respeito, a minha posição sempre foi no sentido de que os diplomas legais que exigem a inexistência de testamento para que a via administrativa do inventário seja possível devem ser mitigados, especialmente nesses casos em que os herdeiros são maiores, capazes e concordam com esse caminho facilitado, havendo prévio processamento de abertura do testamento na via judicial. Nos termos do art. 5.º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o fim social da Lei 11.441/2007 foi a redução de formalidades, devendo essa sua finalidade sempre guiar o intérprete do Direito. O mesmo deve ser dito quanto ao CPC/2015, inspirado pelas máximas de desjudicialização e de celeridade, em vários de seus comandos.
Pontue-se que o próprio Colégio Notarial do Brasil aprovou enunciado em seu XIX Congresso Brasileiro, realizado entre 14 e 18 de maio de 2014, estabelecendo que “é possível o inventário extrajudicial ainda que haja testamento, desde que previamente registrado em Juízo ou homologado posteriormente perante o Juízo competente”. Como reforço para a tese na VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em de 2015, foi aprovado enunciado prevendo que, após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial (Enunciado n. 600). Ainda em 2015, em outubro, no X Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do IBDFAM, aprovou-se o Enunciado n. 16 da entidade, com o seguinte teor: “mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.
Em 2016, o Provimento 37 da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo passou a aplicar exatamente o teor desse Enunciado n. 600, da VII Jornada de Direito Civil. Conforme decisão do Desembargador-Corregedor Manoel de Queiroz Pereira Calças, “diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário. Poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, também, nos casos de testamento revogado ou caduco, ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros. Nas hipóteses do subitem 129.1, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a certidão do testamento e, constatada a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, e o inventário far-se-á judicialmente”.
A propósito, ainda em 2016, no mês de agosto, o mesmo Conselho da Justiça Federal promoveu a I Jornada sobre Solução Extrajudicial de Conflitos, sob a coordenação do Ministro Luís Felipe Salomão, também com a aprovação de enunciados doutrinários sobre a extrajudicialização do direito. Umas das propostas aprovadas amplia o sentido do Enunciado 600 da VII Jornada de Direito Civil, possibilitando o inventário extrajudicial se houver testamento também nos casos de autorização do juiz do inventário. Nos termos do Enunciado n. 77, “havendo registro ou autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial”. Em agosto de 2017, dando ainda mais sustento doutrinário a tal posição, foi aprovado outro enunciado com o mesmo teor do último, quando da realização da I Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo mesmo Conselho da Justiça Federal.
Por fim, pontue-se que, no mesmo ano de 2017, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro seguiu o exemplo paulista, e passou a admitir que, se todos os interessados forem maiores de idade, lúcidos e não discordarem entre si, o inventário e a partilha de bens poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo, se isso for autorizado pelo juiz da Vara de Órfãos e Sucessões onde o testamento foi aberto. Citando enunciados doutrinários aqui destacados, houve alteração do art. 297 da Consolidação Normativa da Corregedoria-Geral da Justiça da Corte, por meio do Provimento 21/2017, que passou a ter a seguinte redação: “A escritura pública de inventário e partilha conterá a qualificação completa do autor da herança; o regime de bens do casamento; pacto antenupcial e seu registro imobiliário se houver; dia e lugar em que faleceu o autor da herança; data da expedição da certidão de óbito; livro, folha, número do termo e unidade de serviço em que consta o registro do óbito, além da menção ou declaração dos herdeiros de que o autor da herança não deixou testamento e outros herdeiros, sob as penas da lei. § 1.º Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente nos autos da apresentação e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro. § 2.º Será permitida a lavratura de escritura de inventário e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco, ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento”. Outros Estados percorreram o mesmo caminho, sucessivamente, caso da Paraíba e do Paraná, que editaram normas administrativas na mesma linha.
Espera-se que outras unidades da Federação sigam esse sadio caminho da desjudicialização, ou que a questão seja definitivamente regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, valendo para todo o País. Essa possibilidade de regulamentação pelo CNJ ganhou força pelo fato de que, em 2019, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou por admitir a realização de inventário extrajudicial, mesmo havendo testamento público, desde que a sua abertura seja feita anteriormente, no âmbito judicial. O acórdão cita todos os enunciados doutrinários aqui referenciados e também a posição deste autor, representando um passo importante para a sadia desburocratização (STJ, Recurso Especial n. 1.808.767/RJ, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 15 de agosto de 2019). De toda sorte, acaba não dispensando que a abertura prévia do testamento seja feita judicialmente, o que representa outro entrave burocrático que deve ser repensado.
Na verdade, para que não surjam argumentos contrários a todas essas posições doutrinárias e jurisprudenciais de avanço, parece-me que a melhor solução é a reforma do art. 610 do CPC/2015, admitindo-se o inventário extrajudicial mesmo com a existência de testamento – desde que todos os herdeiros concordem –, até mesmo havendo filhos incapazes do de cujus. Tais alterações são almejadas pelo grande Projeto de Lei de Desburocratização, originário de comissão mista formada no Senado Federal. Pelo PL 217/2018, que é específico sobre o preceito em comento, passaria ele a ter a seguinte dicção: “Havendo testamento, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1.º Se todos forem concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2.º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 3.º Havendo interessado incapaz, o Ministério Público deverá se manifestar no procedimento, para fiscalizar a conformidade com a ordem jurídica do inventário e da partilha feitos por escritura pública. § 4.º Na hipótese do § 3.º, caso o tabelião se recuse a lavrar a escritura nos termos propostos pelas partes, ou caso o Ministério Público ou terceiro a impugnem, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juiz”. Faz o mesmo o projeto de lei de reforma do Direito das Sucessões elaborado pelo IBDFAM, que originou o PL 3.799/2019, proposto pela Senadora Soraya Thronicke, que tem conteúdo no mesmo sentido.
Pelas projeções, nota-se que o Ministério Público passa a atuar nos inventários extrajudiciais, diretamente no Tabelionato de Notas, o que já ocorre em outros Países, como em Portugal. Aguarda-se, assim, que uma das proposições citadas seja aprovada com brevidade pelo Congresso Nacional, retirando-se definitivamente entraves burocráticos do inventário extrajudicial, que não fazem mais o menor sentido, e efetivando-se a saudável e esperada desjudicialização.

[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Professor Titular do programa de mestrado e doutorado da FADISP – Faculdade Especializada em Direito. Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação em Direito Privado lato sensu da EPD – Escola Paulista de Direito. Professor do G7 Jurídico.
Diretor nacional e vice-presidente estadual do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Advogado e consultor jurídico em São Paulo

Nenhum comentário: