sábado, 31 de agosto de 2019

RESUMO. INFORMATIVO 653 DO STJ

RESUMO. INFORMATIVO 653 DO STJ.
CORTE ESPECIAL
PROCESSO
REsp 1.803.925-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 01/08/2019, DJe 06/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Agravo de instrumento. Liquidação, cumprimento de sentença, execução e inventário. Decisão interlocutória. Recorribilidade imediata. Cabimento, independentemente do conteúdo da decisão. Art. 1.015, parágrafo único, do CPC/2015.
DESTAQUE
Cabe agravo de instrumento contra todas as decisões interlocutórias proferidas na liquidação e no cumprimento de sentença, no processo executivo e na ação de inventário.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
As decisões interlocutórias proferidas na fase de conhecimento se submetem ao regime recursal disciplinado pelo art. 1.015, caput e incisos do CPC/2015, segundo o qual apenas os conteúdos elencados na referida lista se tornarão indiscutíveis pela preclusão se não interposto, de imediato, o recurso de agravo de instrumento. Dessa forma, todas as demais interlocutórias deverão aguardar a prolação da sentença, para que possam ser impugnadas na apelação ou nas contrarrazões de apelação, observado, quanto ao ponto, a tese da taxatividade mitigada fixada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento dos recursos especiais repetitivos nº 1.696.396/MT e 1.704.520/MT. Para as decisões interlocutórias proferidas em fases subsequentes à cognitiva – liquidação e cumprimento de sentença –, no processo de execução e na ação de inventário, o legislador optou conscientemente por um regime recursal distinto. O art. 1.015, parágrafo único, do CPC/2015 prevê que haverá ampla e irrestrita recorribilidade de todas as decisões interlocutórias, quer seja porque a maioria dessas fases ou processos não se findam por sentença e, consequentemente, não haverá a interposição de futura apelação, quer seja em razão de as decisões interlocutórias proferidas nessas fases ou processos possuírem aptidão para atingir, imediata e severamente, a esfera jurídica das partes. Tem-se, portanto, que é absolutamente irrelevante investigar, nessas hipóteses, se o conteúdo da decisão interlocutória se amolda ou não às hipóteses previstas no caput e incisos do art. 1.015 do CPC/2015.
TERCEIRA TURMA
PROCESSO
REsp 1.723.690-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 06/08/2019, DJe 12/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Promessa de compra e venda de imóvel. Inadimplemento contratual. Cláusula penal que estabelece a perda total dos valores já pagos. Validade. Vícios de estado de perigo e de lesão não configurados. Proibição de comportamento contraditório.
DESTAQUE
É válida a cláusula penal que prevê a perda integral dos valores pagos em contrato de compromisso de compra e venda firmado entre particulares.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Inicialmente cumpre salientar que, no caso dos autos, por se tratar de compromisso de compra e venda celebrado de forma voluntária entre particulares que, em regra, estão em situação de paridade, é imprescindível que os elementos do estado de perigo e da lesão sejam comprovados, não se admitindo a presunção de tais elementos. No estado de perigo, a existência de um risco à vida ou à integridade de uma pessoa faz com que a vítima se submeta ao negócio excessivamente oneroso. A lesão, por sua vez, está intrinsecamente relacionada com o princípio da boa-fé, que deve pautar a atuação de todos os envolvidos na relação contratual. Para a caracterização do instituto, é necessária a presença simultânea do elemento objetivo - a desproporção das prestações - e do elemento subjetivo - a inexperiência ou a premente necessidade. Quanto ao elemento objetivo, o Código Civil de 2002 afastou-se do sistema do tarifamento e optou por não estabelecer um percentual indicador da desproporção, permitindo ao julgador examinar o caso concreto para aferir a existência de prestações excessivamente desproporcionais de acordo com a vulnerabilidade da parte lesada. Os requisitos subjetivos também devem ser examinados de acordo com as circunstâncias fáticas, considerando a situação que levou o indivíduo a celebrar o negócio jurídico e sua experiência para a negociação, conforme destacado no Enunciado n. 410 do Conselho da Justiça Federal: "(...) a inexperiência a que se refere o art. 157 do CC não deve necessariamente significar imaturidade ou desconhecimento em relação à prática de negócios jurídicos em geral, podendo ocorrer também quando o lesado, ainda que estipule contratos costumeiramente, não tenha conhecimento específico sobre o negócio em causa". O mero interesse econômico em resguardar o patrimônio investido em determinado negócio jurídico não configura premente necessidade para o fim do art. 157 do Código Civil. Nas relações contratuais, deve-se manter a confiança e a lealdade, não podendo o contratante exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior. No caso, verifica-se que os próprios recorrentes deram causa à "excessiva desproporcionalidade" que alegam ter suportado com a validade de cláusula penal que prevê a perda integral dos valores pagos em contrato de compromisso de compra e venda firmado entre particulares. Logo, concluir pela invalidade da referida cláusula, ou mesmo pela redução da penalidade imposta implicaria, ratificar a conduta da parte que não observou os preceitos da boa-fé em todas as fases do contrato, o que vai de encontro à máxima do venire contra factum proprium.

PROCESSO
AgInt no AREsp 1.411.485-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 01/07/2019, DJe 06/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Decisão que fixou ponto controvertido e deferiu a produção de provas. Inexistência de decisão parcial de mérito. Art. 356, I e II, § 5º, c/c art. 1.015, II, do CPC/2015. Agravo de instrumento. Descabimento.
DESTAQUE
Não é cabível agravo de instrumento contra decisão que indefere pedido de julgamento antecipado do mérito por haver necessidade de dilação probatória.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Consoante dispõe o art. 356, caput, I e II, e § 5º, do CPC/2015, o juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles mostrarem-se incontroversos ou estiverem em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355, sendo a decisão proferida com base neste artigo impugnável por agravo de instrumento. Ocorre que, no caso, a decisão do Juízo singular não ingressou no mérito, justamente porque entendeu pela necessidade de dilação probatória, deferindo as provas testemunhal e pericial. Logo, não havendo questão incontroversa que possibilitasse a prolação de decisão de mérito, inviável se falar, por conseguinte, na impugnação por meio de agravo de instrumento, por não estar configurada a hipótese do art. 1.015, II, do CPC/2015.

PROCESSO
REsp 1.756.791-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 06/08/2019, DJe 08/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Ação de execução de título executivo extrajudicial. Débitos condominiais. Inclusão das cotas condominiais vincendas. CPC/2015. Possibilidade.
DESTAQUE
À luz das disposições do Código de Processo Civil de 2015, é possível a inclusão em ação de execução de cotas condominiais das parcelas vincendas no débito exequendo, até o cumprimento integral da obrigação no curso do processo.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O art. 323 do CPC/2015 prevê que na ação que tiver por objeto cumprimento de obrigação em prestações sucessivas, essas serão consideradas incluídas no pedido, independentemente de declaração expressa do autor, e serão incluídas na condenação, enquanto durar a obrigação, se o devedor, no curso do processo, deixar de pagá-las ou de consigná-las. A despeito de referido dispositivo legal ser indubitavelmente aplicável aos processos de conhecimento, tem-se que deve se admitir a sua aplicação, também, aos processos de execução. O novo CPC inovou ao permitir o ajuizamento de ação de execução para a cobrança de despesas condominiais, considerando como título executivo extrajudicial o crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomínio edilício, desde que documentalmente comprovadas (art. 784, X). O art. 771 do CPC/2015, na parte que regula o procedimento da execução fundada em título executivo extrajudicial, admite a aplicação subsidiária das disposições concernentes ao processo de conhecimento à lide executiva. Tal entendimento está em consonância com os princípios da efetividade e da economia processual, evitando o ajuizamento de novas execuções com base em uma mesma relação jurídica obrigacional.

PROCESSO
REsp 1.778.629-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por maioria, julgado em 06/08/2019, DJe 14/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL
TEMA
Sociedade anônima. Ação reparatória da sociedade contra ex-administradores (ut universi). Autorização da assembleia geral. Necessidade. Art. 159 da Lei n. 6.404/1976. Sanação da legitimatio ad processum. Possibilidade. Art. 13 do CPC/1973.
DESTAQUE
A ação social reparatória (ut universi) ajuizada pela sociedade empresária contra ex-administradores, na forma do art. 159 da Lei n. 6.404/1976, depende de autorização da assembleia geral ordinária ou extraordinária, que poderá ser comprovada após o ajuizamento da ação.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O art. 159 da Lei 6.404/1976 estabelece requisito de procedibilidade para o ajuizamento de ação indenizatória pela sociedade empresária em face dos administradores, consistente na específica autorização assemblear. Tem-se no referido dispositivo duas modalidades de ações de reparação: a) a ação social exercida pela pessoa jurídica (ut universi) ou, excepcionalmente, pelos acionistas (ut singuli); b) a ação individual (§7º), que é exclusiva dos acionistas diretamente prejudicados. Trata-se, no presente caso, de ação social (ut universi) de reparação de danos, uma vez que foi ajuizada em nome do ente coletivo para o ressarcimento dos prejuízos da sociedade empresária dependendo, assim, de prévia autorização da assembleia geral (ou, excepcionalmente, assembleia extraordinária uma vez satisfeitos os requisitos do § 1º do art. 159), para que possa demandar em juízo os seus administradores. A razão de ser da autorização assemblear é a necessidade de os acionistas reconhecerem, na causa de pedir e no pedido formulados na ação reparatória, interesse coletivo e, assim, coadjuvarem a pretensão de acionamento de administradores atuais ou antigos em nome da sociedade empresária. Outrossim, não fosse o fato de os atos da sociedade empresária espelharem a vontade dos acionistas e, assim, ser natural exigir que o instrumento de manifestação desta vontade, fosse consultado acerca do ajuizamento da ação reparatória contra ex-administradores, não se deve desprezar o fato de que tenha havido a aprovação das contas dos antigos administradores com o fim de sua gestão. Torna-se, também por isso, relevante que a própria assembleia delibere acerca da possibilidade de ajuizar-se ação reparatória em face do administrador que teve as contas por ela aprovadas. Ademais, as sociedades anônimas, em regra, têm as ações negociadas em bolsa, podendo sofrer algum decaimento na confiança que possuem no mercado em face do ajuizamento de ações reparatórias sociais contra sua administração, atual ou anterior, hipótese que poderia refletir diretamente no valor da companhia, já que a enunciar ao mercado que a sua administração fora falha a ponto de ter causado danos ao ente coletivo. Cumpre salientar, por fim, que a deliberação assemblear habilita a sociedade empresária para estar em juízo e pleitear a indenização pelos danos causados à sociedade por seus administradores, atuais e antigos. Assim, em se tratando de capacidade para estar em juízo (legitimatio ad processum), eventual irregularidade pode vir a ser sanada após o ajuizamento da ação, impondo-se que se oportunize a regularização na forma do art. 13 do CPC/1973 (art. 76 do CPC/2015).

QUARTA TURMA
PROCESSO
AgInt nos EDcl no REsp 1.460.908-PE, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 04/06/2019, DJe 02/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Depósito judicial. Responsabilidade da instituição financeira depositária (CC, art. 629). Remuneração do capital: incidência de correção monetária e juros remuneratórios. Juros moratórios descabidos.
DESTAQUE
Realizado pelo devedor o depósito da dívida para a garantia do juízo, cessa sua responsabilidade pela incidência de correção monetária e de juros relativamente ao valor depositado, passando a instituição financeira depositária a responder pela atualização monetária, a título de conservação da coisa, e pelos juros remuneratórios, a título de frutos e acréscimos, sendo indevida a incidência de novos juros moratórios, exceto se a instituição financeira depositária recusar-se ou demorar injustificadamente na restituição integral do valor depositado.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O depósito judicial realizado para garantia do juízo na execução ou em cumprimento de sentença está sujeito à remuneração específica a cargo da instituição financeira depositária, com acréscimo de correção monetária e (frutos) de juros remuneratórios, nos termos do art. 629 do Código Civil, não podendo ser exigido do depositário o pagamento de juros moratórios sobre o quantum depositado. Assim, se o depositante já realizou a entrega do valor devido, com inclusão dos juros moratórios acaso devidos, estes já estarão presentes na composição da base de cálculo sobre a qual o depositário fica obrigado a fazer incidir correção monetária e juros remuneratórios. Portanto, a incidência de novos juros moratórios representaria descabido bis in idem. Além disso, seria injusto atribuir os encargos da dívida correspondentes aos juros moratórios a mero depositário judicial, pois, como se sabe, os juros moratórios e os remuneratórios não se confundem, têm natureza e finalidade diversas. Então, sobre o valor depositado judicialmente, a instituição financeira depositária (CC, art. 629) deve remunerar o capital por meio de correção monetária, a título de conservação da coisa, e de juros remuneratórios, a título de frutos e acréscimos. Mas não fica, normalmente, responsável pelo pagamento de juros moratórios, uma vez que não há atraso no cumprimento de obrigação, tampouco ato ilícito.

PROCESSO
REsp 1.326.592-GO, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por maioria, julgado em 07/05/2019, DJe 06/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Investimento de risco incompatível com o perfil do investidor. Ausência de autorização expressa. Dever qualificado do fornecedor de prestar informação. Consentimento tácito previsto no Código Civil. Inaplicabilidade.
DESTAQUE
É ilícita a conduta da casa bancária que transfere, sem autorização expressa, recursos do correntista para modalidade de investimento incompatível com o perfil do investidor.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O Código de Defesa do Consumidor conferiu relevância significativa aos princípios da confiança, da boa-fé, da transparência e da equidade nas relações consumeristas, salvaguardando, assim, os direitos básicos de informação adequada e de livre escolha da parte vulnerável. Sob tal ótica, a cautela deve nortear qualquer interpretação mitigadora do dever qualificado de informar atribuído, de forma intransferível, ao fornecedor de produtos ou de serviços, porquanto certo que uma "informação deficiente" – falha, incompleta, omissa quanto a um dado relevante – equivale à "ausência de informação", na medida em que não atenuada a desigualdade técnica e informacional entre as partes integrantes do mercado de consumo. Nessa ordem de ideias, a jurisprudência desta Corte reconhece a responsabilidade das entidades bancárias por prejuízos advindos de investimentos malsucedidos quando houver defeito na prestação do serviço de conscientização dos riscos envolvidos na operação. Com esse nítido escopo protetivo, o artigo 39 do CDC traz rol exemplificativo das condutas dos fornecedores consideradas abusivas, tais como o fornecimento ou a execução de qualquer serviço sem "solicitação prévia" ou "autorização expressa" do consumidor (incisos III e VI), requisitos legais que ostentam relação direta com o direito à informação clara e adequada, viabilizadora do exercício de uma opção desprovida de vício de consentimento da parte cujo déficit informacional é evidente. Nessa perspectiva, em se tratando de práticas abusivas vedadas pelo código consumerista, não pode ser atribuído ao silêncio do consumidor (em um dado decurso de tempo) o mesmo efeito jurídico previsto no artigo 111 do Código Civil (anuência/aceitação tácita), tendo em vista a exigência legal de declaração de vontade expressa para a prestação de serviços ou aquisição de produtos no mercado de consumo, ressalvada tão somente a hipótese de "prática habitual" entre as partes. Ademais, é certo que o código consumerista tem aplicação prioritária nas relações entre consumidor e fornecedor, não se afigurando cabida a mitigação de suas normas, mediante a incidência de princípios do Código Civil que pressupõem a equidade (o equilíbrio) entre as partes. Se o correntista tem hábito de autorizar investimentos sem nenhum risco de perda (como é o caso do CDB – título de renda fixa com baixo grau de risco) e o banco, por iniciativa própria e sem respaldo em autorização expressa do consumidor, realiza aplicação em fundo de risco incompatível com o perfil conservador de seu cliente, a ocorrência de eventuais prejuízos deve, sim, ser suportada, exclusivamente, pela instituição financeira, que, notadamente, não se desincumbiu do seu dever de esclarecer de forma adequada e clara sobre os riscos da operação. A manutenção da relação bancária entre a data da aplicação e a manifestação da insurgência do correntista não supre seu déficit informacional sobre os riscos da operação financeira realizada a sua revelia. Ainda que indignado com a utilização indevida do seu patrimônio, o consumidor (mal informado) poderia confiar, durante anos, na expertise dos prepostos responsáveis pela administração de seus recursos, crendo que, assim como ocorria com o CDB, não teria nada a perder ou, até mesmo, que só teria a ganhar. Por fim, a aparente resignação do correntista com o investimento financeiro realizado a sua revelia não pode, assim, ser interpretada como ciência em relação aos riscos da operação.

PROCESSO
REsp 1.327.643-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 21/05/2019, DJe 06/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO EMPRESARIAL
TEMA
Sistema Privado de Financiamento do Setor Agrícola. Cédula de Produto Rural - CPR. Lei n. 8.929/1994. Impenhorabilidade legal absoluta. Prevalência sobre garantia de crédito trabalhista. Prelação justificada pelo interesse público.
DESTAQUE
A impenhorabilidade dos bens vinculados à Cédula de Produto Rural (CPR) é absoluta, não podendo ser afastada para satisfação de crédito trabalhista.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio identifica-se pelo patrocínio privado da agricultura comercial profissionalizada e da agroindústria, assim como por uma política pública de renegociação das dívidas dos agropecuaristas e pela criação de bancos especializados e de títulos de crédito do agronegócio. A Cédula de Produto Rural - CPR (Lei n. 8.929/1994) é instrumento-base do financiamento do agronegócio, facilitadora da captação de recursos. É título de crédito, líquido e certo, de emissão exclusiva dos produtores rurais, suas associações e cooperativas, traduzindo-se na operação de entrega de numerário ou de mercadorias, com baixo custo operacional para as partes. Tendo em vista sua função social e visando garantir eficiência e eficácia à CPR, o art. 18 da Lei n. 8.929/1994 prevê que os bens vinculados à CPR não serão penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou do terceiro prestador da garantia real, cabendo a estes comunicar tal vinculação a quem de direito. A impenhorabilidade criada por lei é absoluta em oposição à impenhorabilidade por simples vontade individual. A impenhorabilidade absoluta é aquela que se constitui por interesse público, e não por interesse particular, sendo possível o afastamento apenas desta última hipótese. É importante salientar que não se sustenta a afirmação de que a impenhorabilidade dos bens dados em garantia cedular seria voluntária, e não legal, por envolver ato pessoal de constituição do ônus por parte do garante ao oferecer os bens ao credor. A parte voluntária do ato é a constituição da garantia real, que, por si só, não tem o condão de gerar a impenhorabilidade. Em se tratando de crédito trabalhista, os bens que garantem a Cédula de Produto Rural tampouco responderão por tais dívidas, tendo como fundamento o art. 648 do CPC/1973 combinado com o art. 769 da CLT. O direito de prelação em favor do credor cedular se concretiza no pagamento prioritário com o produto da venda judicial do bem objeto da garantia excutida, não significando, entretanto, tratamento legal discriminatório e anti-isonômico, já que é justificado pela existência da garantia real que reveste o crédito privilegiado. Assim, os bens vinculados à CPR são impenhoráveis em virtude de lei, mais propriamente do interesse público de estimular o crédito agrícola, devendo prevalecer mesmo diante de penhora realizada para garantia de créditos trabalhistas.

PROCESSO
AgRg no REsp 1.265.548-SC, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Rel. Acd. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por maioria, julgado em 25/06/2019, DJe 05/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO FALIMENTAR
TEMA
Decretação de falência. Personalidade jurídica da sociedade. Extinção imediata. Não ocorrência. Capacidade processual. Manutenção. Decreto-Lei n. 7.661/1945.
DESTAQUE
A decretação da falência com base no Decreto-Lei n. 7.661/1945 não importa, por si, na extinção da personalidade jurídica da sociedade.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
No procedimento regrado pelo Decreto-Lei n. 7.661/1945 a decretação da falência não importa na extinção da pessoa jurídica, mas tão só impõe ao falido a perda do direito de administrar seus bens e deles dispor (art. 40), conferindo ao síndico a representação da massa (CPC/1973, art. 12, III; no art. 75, III, do CPC/2015, agora adequado ao atual sistema de recuperação, atribui-se ao "administrador judicial" a representação da massa falida). Dá-se, na espécie, a repartição da personalidade jurídica, apartando-se o patrimônio – que forma a massa, ente despersonalizado todavia com capacidade para estar em Juízo – da sociedade falida. A mera existência da massa falida, portanto, não é motivo para concluir pela automática, muito menos necessária, extinção da pessoa jurídica. De fato, a sociedade falida não se extingue ou perde a capacidade processual (CPC/1973, art. 7º; CPC/2015, art. 70), tanto que autorizada a figurar como assistente nas ações em que a massa seja parte ou interessada, inclusive interpondo recursos e, durante o trâmite do processo de falência, pode até mesmo requerer providências conservatórias dos bens arrecadados nos termos do art. 36 do Decreto-Lei n. 7.661/1945. Ao término do processo falimentar, concluídas as fases de arrecadação, verificação e classificação dos créditos, realização do ativo e pagamento do passivo, se eventualmente sobejar patrimônio da massa – ou até mesmo antes desse momento, se porventura ocorrerem quaisquer das hipóteses previstas no art. 135 do Decreto-Lei n. 7.661/1945 –, a lei faculta ao falido requerer a declaração de extinção de todas as suas obrigações (art. 136), pedido cujo acolhimento o autoriza voltar ao exercício do comércio, "salvo se tiver sido condenado ou estiver respondendo a processo por crime falimentar" (art. 138). Portanto, a decretação da falência, que enseja a dissolução, é o primeiro ato do procedimento e não importa, por si, na extinção da personalidade jurídica da sociedade. A extinção, precedida das fases de liquidação do patrimônio social e da partilha do saldo, dá-se somente ao fim do processo de liquidação, que todavia pode ser antes interrompido, se acaso revertidas as razões que ensejaram a dissolução, como na hipótese em que requerida e declarada a extinção das obrigações na forma do art. 136 do Decreto-Lei n. 7.661/1945.

PROCESSO
REsp 1.484.422-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 28/05/2019, DJe 05/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Ação indenizatória. Alegação de ofensas a candidato. Diretório Nacional de Partido Político. Legitimidade ativa. Defesa em nome próprio de direito próprio.
DESTAQUE
O Diretório Nacional de Partido Político tem legitimidade ativa para ajuizamento de demanda indenizatória por alegada ofensa lançada contra candidato a cargo político.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
No caso, houve o ajuizamento de ação indenizatória por partido político presentado por órgão de direção nacional com designação estatutária para tanto, não havendo falar-se em irregularidade processual ou ilegitimidade de parte. Os Diretórios, em direito eleitoral, são órgãos de administração de determinado partido político, escolhido entre as pessoas filiadas ao respectivo partido para compor sua diretoria, comumente havendo representantes de todas as facções existentes naquele partido, podendo ser nacional, estadual ou municipal, de acordo com a abrangência definida por seus integrantes. O diretório nacional corresponde à direção geral do partido. Corroborando com a regularidade da atuação em juízo, cumpre salientar a advertência feita pela Suprema Corte, em inúmeras oportunidades, a propósito da legitimidade ativa ad causam dos Diretórios Nacionais e, em contrapartida, da ilegitimidade de Diretório Regional de Partido Político para o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. De fato, em todos os julgamentos sobre a questão, desde a ADI n. 38-DF consolidou-se a lição consistente em serem os Diretórios os legítimos representantes dos partidos no ajuizamento de ações, nos termos da legislação federal de regência. Assim, o ente jurídico, dotado de capacidade civil, pode praticar atos jurídicos, sempre por meio de seus diretores ou administradores, havendo, nesses casos, apenas uma vontade, a da sociedade. Não se trata de defesa em nome próprio de direito alheio. Sejam quais forem os órgãos internos, eles constituem a própria pessoa jurídica sob a forma de uma fração, fazendo-a presente, regularmente, em juízo ou fora dele (art. 12 do CPC). A representação partidária nas ações judiciais constitui prerrogativa jurídico-processual do Diretório Nacional do Partido Político, que é - ressalvada disposição em contrário dos estatutos partidários - o órgão de direção e de ação dessas entidades no plano nacional. Uma vez encampada certa candidatura, ofensas lançadas ao pretendente do cargo repercutem a ponto de alcançar o próprio partido ou coligação que indicou, evidenciando verdadeira legitimidade concorrente, a indicar possibilidade de atuação do ofendido direto ou do partido ou coligação que procedeu à indicação do candidato ou ao registro pelo qual concorre.

PROCESSO
REsp 1.548.783-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 11/06/2019, DJe 05/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Ato atentatório praticado por magistrado. Multa do parágrafo único do art. 14 do CPC/1973. Inaplicabilidade.
DESTAQUE
A multa prevista no parágrafo único do art. 14 do CPC/1973 não se aplica aos juízes, devendo os atos atentatórios por eles praticados ser investigados nos termos da Lei Orgânica da Magistratura.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A fim de garantir posturas essencialmente éticas e pautadas na boa-fé, além de assegurar a dignidade e a autoridade do Poder Judiciário, o diploma processual previu multa pecuniária como forma de repreensão aos atos atentatórios ao exercício da jurisdição, configurados pela desobediência e pelo embaraço no cumprimento dos provimentos judiciais, amoldando-se, dessa forma, aos conceitos anglo-americanos do contempt of court. O dever de probidade e de lealdade tem como destinatário todos aqueles que atuam no processo, direta ou indiretamente: partes, advogados, auxiliares da Justiça, a Fazenda Pública, o Ministério Público, assim como o juiz da causa, como não poderia deixar de ser. Todavia, nem todos os que praticarem atos atentatórios serão, necessariamente, repreendidos nos moldes do parágrafo único do art. 14 do CPC/1973. Há atores do processo que, agindo de maneira desleal e improba, serão responsabilizados nos termos do estatuto de regência da categoria a que pertencer, caso dos advogados, dos membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos Magistrados.

PROCESSO
REsp 1.675.741-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 11/06/2019, DJe 05/08/2019
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Desistência da execução. Ausência de bens penhoráveis. Honorários advocatícios. Não cabimento.
DESTAQUE
Na vigência do novo CPC, a desistência da execução por falta de bens penhoráveis não enseja a condenação do exequente em honorários advocatícios.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
No que toca especificamente à desistência, que se opera no plano exclusivamente processual, podendo dar azo, inclusive, à repropositura da execução, o novo CPC, repetindo os ditames do Código anterior, previu que "o exequente tem o direito de desistir de toda ou de apenas alguma medida executiva" (art. 775). O codex acolhe o princípio da disponibilidade do credor, pois o processo se volta ao seu interesse, na satisfação de seu crédito, podendo dele dispor total ou parcialmente, até mesmo em relação a alguns devedores. Quantos aos honorários advocatícios, a jurisprudência do STJ, ainda sob os ditames do diploma anterior (CPC/73, art. 569), alinhava-se no sentido de que, "em obediência ao princípio da causalidade, os honorários advocatícios são devidos quando o credor desiste da ação de execução após o executado constituir advogado e indicar bens à penhora, independentemente da oposição ou não de embargos do devedor à execução" (AgRg no REsp 460.209/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/04/2003, DJ 19/05/2003). Resta saber, agora, sob a vigência do novo diploma, se a desistência motivada pela ausência de bens passíveis de penhora também pode ensejar a condenação do exequente aos honorários de sucumbência. Como sabido, no processo civil, para se aferir qual das partes litigantes arcará com a verba honorária, não se deve ater à respectiva sucumbência, mas atentar-se principalmente ao princípio da causalidade, segundo o qual a parte que deu causa à instauração do processo é que deverá suportar as despesas dele decorrentes. Nessa ordem de ideias, a desistência da execução motivada pela ausência de bens do devedor passíveis de penhora, em razão dos ditames da causalidade, não pode implicar a condenação do exequente aos honorários advocatícios. Isso porque a desistência motivada por causa superveniente não é imputável ao credor. Deveras, a pretensão executória acabou se tornando frustrada após a confirmação da inexistência de bens passíveis de penhora do devedor, deixando de haver qualquer interesse no prosseguimento da lide, pela evidente inutilidade do processo. Dessa forma, parece bem razoável que a interpretação do art. 90 do CPC/2015 leve em conta a incidência do § 10 do art. 85, segundo o qual, "nos casos de perda do objeto, os honorários serão devidos por quem deu causa ao processo".

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

O PROVIMENTO 83 DO CNJ E O NOVO TRATAMENTO DO RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA. COLUNA DO MIGALHAS DE AGOSTO DE 2019

O PROVIMENTO 83/2019 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA E O NOVO TRATAMENTO DO RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA[1]
Flávio Tartuce[2]
No último dia 14 de agosto de 2019, a Corregedoria Geral de Justiça do CNJ editou o Provimento n. 83/2019, que altera o anterior Provimento n. 63/2017, em especial quanto ao tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. A modificação se deu diante dos pedidos de providências 0006194-84.2016.2.00.0000 e 0001711.40.2018.2.00.0000, um deles instaurado de ofício pelo próprio Ministro Corregedor, Humberto Martins, e outro a pedido do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).
Os "considerandos" da nova norma destacam, entre outras questões e justificativas para a alteração do preceito administrativo anterior: a) o poder de fiscalização e de normatização do Poder Judiciário dos atos praticados por seus órgãos; b) a competência do Poder Judiciário para fiscalizar os serviços notariais e de registro; c) a ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial da paternidade e maternidade socioafetiva, contemplando os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da filiação civil; d) a possibilidade de o parentesco resultar de outra origem que não a consanguinidade proibida toda designação discriminatória relativa à filiação: a possibilidade de reconhecimento voluntário da paternidade perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais; e) a necessidade de averbação, em registro público, dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; f) o fato de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios, como decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n. 898.060/SC, em repercussão geral; g) a plena aplicação do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva para aqueles que possuem dezoito anos ou mais; h) a possibilidade de aplicação desse instituto aos menores, com doze anos ou mais, desde que seja realizada por intermédio de seus pais, nos termos do art. 1.634, inc. VII do Código Civil, ou seja, por representação; e i) ser recomendável que o Ministério Público seja sempre ouvido nos casos de reconhecimento extrajudicial de parentalidade socioafetiva de menores de 18 anos.
O primeiro dispositivo alterado é o art. 10 do Provimento n. 63, que passou a ter a seguinte redação: "o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais". Eis aqui uma das principais modificações a ser destacada, pois a regra anterior não limitava o reconhecimento extrajudicial quanto ao critério etário, atingindo agora apenas os adolescentes, assim definidos pelo art. 1º da Lei n. 8.069/1990 como as pessoas com idade entre 12 e 18 anos, e adultos.
Seguiu-se, assim, parcialmente o critério etário da adoção, que, como a parentalidade socioafetiva, constitui forma de parentesco civil. Diz-se parcialmente pois, pelo art. 45, § 2º, do mesmo Estatuto da Criança e do Adolescente, há necessidade apenas de ouvir a pessoa adotada que tenha essa idade ou mais, mas não há essa limitação de idade para a adoção, restrição que agora atinge a parentalidade socioafetiva extrajudicial.
Como escreve Ricardo Calderón, que participou dos debates prévios que permearam a elaboração da nova norma representando o IBDFAM, quanto à ausência de limitação anterior, "esta amplitude passou a sofrer alguns questionamentos, principalmente para se evitar que crianças muito pequenas (com meses de vida até cerca de 5 anos de idade) tivessem sua filiação alterada sem a chancela da via judicial. Para parte dos atores envolvidos com infância e juventude, os registros de filiações de crianças ainda na primeira infância (até 6 anos) deveriam remanescer com o Poder Judiciário. Uma das principais preocupações era que, como crianças de tenra idade podem vir a atrair o interesse de pessoas que pretendessem realizar 'adoções à brasileira' ou então 'furar a fila adoção', melhor seria deixar tal temática apenas para a via jurisdicional". Ainda segundo ele, em palavras às quais me filio, "a observação parece ter algum fundamento, visto que o intuito do CNJ é justamente deixar com as Serventias de Registros de Pessoas Naturais apenas os casos consensuais e incontroversos, sob os quais não pairem quaisquer dúvidas. Quanto aos casos litigiosos, complexos ou que possam ser objeto de alguma outra intenção dissimulada a ideia é que fiquem mesmo com o Poder Judiciário, que tem maiores condições de tratar destes casos" (CALDERÓN, Ricardo. Primeiras Impressões sobre o Provimento 83 do CNJ. Disponível em: http://ibdfam.org.br. Acesso em: 23 ago. 2019).
Além dessa alteração no caput, o art. 10 recebeu uma alínea a, outra novidade, passando a estabelecer critérios para a configuração da parentalidade socioafetiva, que deve ser estável e exteriorizada socialmente. Conforme o seu § 1º, recomenda-se na norma que o registrador ateste a existência do vínculo socioafetivo mediante apuração objetiva, por intermédio da verificação de elementos concretos, a fim de demonstrar os três critérios da posse de estado de filhos citados no julgamento do STF: o tratamento (tractatio), a reputação (reputatio) e o nome (nominatio).
O mesmo comando ainda estabelece que o ônus da prova da afetividade cabe àquele que requer o registro extrajudicial, admitindo-se todos os meios em Direito admitidos, especialmente por documentos, tais como elencados em rol meramente exemplificativo ou numerus apertusa) apontamento escolar como responsável ou representante do aluno em qualquer nível de ensino; b) inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência privada; c) registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; d)vínculo de conjugalidade, por casamento ou união estável, com o ascendente biológico da pessoa que está sendo reconhecida; e) inscrição como dependente do requerente em entidades associativas, caso de clubes recreativos ou de futebol; f) fotografias em celebrações relevantes; e g) declaração de testemunhas com firma reconhecida (art. 10-A, § 2º, do Provimento n. 83 do CNJ). Além desses documentos, cite-se a possibilidade de prova por escritura pública de reconhecimento da parentalidade socioafetiva, que chegou a ser lavrada em alguns poucos Tabelionatos de Notas do País, de forma corajosa, e que confirma que a relação descrita no dispositivo não é taxativa ou numerus clausus.
A ausência desses documentos não impede o registro do vínculo socioafetivo, desde que justificada a impossibilidade. No entanto, o registrador deverá atestar como apurou o vínculo socioafetivo (novo art. 10-A, § 3º, do Provimento n. 83 do CNJ). Percebe-se, desse modo, a existência de uma construção probatória extrajudicial e certo poder decisório atribuído ao Oficial de Registro Civil, o que representam passos avançados e importantes em prol da extrajudicialização, que contam com o meu total apoio. Todos esses documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão ser arquivados pelo registrador – em originais ou cópias –, juntamente com o requerimento (art. 10-A, § 4º do Provimento n. 83 do CNJ).
Feitas essas anotações, o art. 11 do Provimento n. 63 também recebeu alterações, para se adequar a regulamentações anteriores. O dispositivo trata do processamento do reconhecimento extrajudicial, enunciando o seu caputque será feito perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, ainda que diverso daquele em que foi lavrado o assento, mediante a exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem constar do traslado menção à origem da filiação. Na dicção do novo § 4º desse art. 11, se o filho for menor de 18 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento. A previsão anterior do § 4º era de que "se o filho for maior de doze anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá seu consentimento". Como se percebe, o novo texto está de acordo com a vedação de reconhecimento extrajudicial do menor de doze anos de idade.
Também foi incluído o § 9º nesse art. 11 do Provimento n. 63, agora com menção expressa à atuação do Ministério Público, conforme justo pleito formulado pelas suas instituições representativas. Conforme o novo comando, atendidos os requisitos para o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, o registrador encaminhará o expediente ao representante local do Ministério Público para que elabore um parecer jurídico. O registro da paternidade ou maternidade socioafetiva será realizado pelo registrador somente após o parecer favorável do Ministério Público. Eventualmente, se o parecer for desfavorável, o registrador civil não procederá ao registro da paternidade ou maternidade socioafetiva e comunicará o ocorrido ao requerente, arquivando o expediente. Por fim, está expresso nesse artigo que eventual dúvida referente ao registro deverá ser remetida ao juízo competente para dirimi-la, ou seja, não sendo viável o caminho da extrajudicialização, a solução está no Poder Judiciário.
A previsão da necessária atuação extrajudicial do Ministério Público tem, mais uma vez, meu total apoio. Tanto isso é verdade que fiz sugestões de alterações legislativas para a Comissão Mista de Desburocratização, para que sejam viáveis juridicamente a alteração do regime de bens, o inventário e o divórcio extrajudiciais perante o Tabelionato de Notas – os dois últimos mesmo havendo herdeiros ou filhos menores ou incapazes –, sempre com a intervenção do MP. Os projetos de lei que tratam dessas possibilidades estão em trâmite no Congresso Nacional.
Para encerrar, como tema mais polêmico, o art. 14 do antigo Provimento n. 63 recebeu novos parágrafos, a fim de tratar da multiparentalidade extrajudicial, na linha do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da repercussão geral sobre o tema, aqui antes citado e citado expressamente nos "considerandos" dos dois provimentos. Conforme a tese fixada pelo STF, que merece sempre ser transcrita, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (Informativo n. 840 da Corte, de setembro de 2016).
Foi mantido o caput do art. 14, in verbis: "o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento". A previsão vinha gerando muitas dúvidas e incertezas a respeito da possibilidade ou não de reconhecimento extrajudicial da multiparentalidade e talvez poderia ser até aperfeiçoada, com mais clareza. Com o texto atual, acrescido dos dois novos parágrafos, a minha resposta continua sendo positiva quanto a essa polêmica, apesar de o caputnão ter sido modificado.
Na dicção do novo § 1º do art. 14 do Provimento n. 63 do CNJ, "somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno". Além disso, se o caso envolver a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo, deverá tramitar pela via judicial (§ 2º). Penso que evidenciado e se confirma, portanto, o registro da multiparentalidade no cartório. Porém, tal reconhecimento fica limitado a apenas um pai ou mãe que tenha a posse de estado de filho.
Se o caso for de inclusão de mais um ascendente, um segundo genitor baseado na afetividade, será necessário ingressar com ação específica de reconhecimento perante o Poder Judiciário. Nota-se, assim, a preocupação de evitar vínculos sucessivos, que, aliás, são difíceis de se concretizar na prática, pois geralmente a posse de estado de filhos demanda certo tempo de convivência.
De toda forma, pela redação mantida no caput, não é possível que alguém tenha mais de dois pais ou duas mães no registro, ou seja, três pais e duas mães ou até mais do que isso. Esclareceu-se o real sentido do termo "unilateral" que consta do caput e que era objeto dos citados calorosos debates. Exatamente como opina mais uma vez Ricardo Calderón, "a redação destes novos parágrafos deixa mais claro o sentido do termo unilateral utilizado na redação originária do respectivo artigo 14. Como se percebe, o que se quer limitar é apenas a inclusão de mais um ascendente socioafetivo, pela via extrajudicial. Esta opção parece pretender acolher as situações mais comuns e singelas que se apresentam na realidade concreta, que geralmente correspondem a existência de apenas mais um ascendente socioafetivo. Os casos com a presença de um pai e uma mãe socioafetivos, por exemplo, são mais raros e podem pretender mascarar 'adoções à brasileira' – o que não se quer admitir. Daí a opção do CNJ em limitar este expediente extrajudicial a apenas mais um ascendente socioafetivo. Dessa forma, eventual segundo ascendente socioafetivo terá que se socorrer da via jurisdicional. Em consequência, restou esclarecida com estes novos parágrafos a manutenção da admissão da multiparentalidade unilateral: ou seja, a inclusão de um ascendente socioafetivo ao lado de um outro biológico que já preexista, mesmo que da mesma linha (dois pais, por exemplo)" (CALDERÓN, Ricardo. Primeiras Impressões sobre o Provimento 83 do CNJ. Disponível em: http://ibdfam.org.br. Acesso em 23 de agosto de 2019). Assim como ele, também elogio o aperfeiçoamento do texto, que deve trazer mais certeza a respeito do tema.
Em suma, tentando atender a vários pleitos e pedidos que foram formulados por entidades distintas, o novo Provimento n. 83 do CNJ aperfeiçoa o anterior, firmando o caminho sem volta da redução de burocracias e da extrajudicialização. Em um momento de argumentos e teses radicais, parece trazer o bom senso e o consenso em seu conteúdo, ou seja, a afirmação de que muitas vezes a solução está no meio do caminho.

[1] Coluna do Migalhas de agosto de 2019.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP. Professor Titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensuda EPD. Professor do G7 Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.