Reforma Trabalhista. Dano extrapatrimonial:
dano moral, estético e existencial? Parte II
Fonte: Carta Forense.
José Fernando Simão. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito
Civil pela Faculdade de Direito da USP, onde é Professor Associado. Coordenador
pedagógico e professor do CPJUR. Advogado e consultor jurídico.
Em nossa última coluna da Carta Forense iniciamos a
análise do novo artigo Art. 223-E da CLT:
“São responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos
os que tenham colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na
proporção da ação ou da omissão”.
As reflexões se deram em torno da locução dano
extrapatrimonial, das quais concluímos que o gênero dano extrapatrimonial tem
duas espécies: dano moral e dano estético. Haveria uma terceira espécie
denominada dano existencial?
Como as presentes linhas são voltadas ao debate da
Reforma Trabalhista, buscamos na própria Justiça do Trabalho o conceito dessa
“nova categoria”:
“O dano existencial consiste
em espécie de dano extrapatrimonial cuja principal característica é a
frustração do projeto de vida pessoal do trabalhador, impedindo a sua efetiva
integração à sociedade, limitando a vida do trabalhador fora do ambiente de
trabalho e o seu pleno desenvolvimento como ser humano, em decorrência da
conduta ilícita do empregador”. (TST – Recurso de Revista (RR) 10347420145150002
- Publicado em 13/11/2015)
A categoria foi importada do Direito italiano e é a
partir dele que devem se iniciar nossas ponderações. A doutrina explica a razão
de ser da categoria:
“Aqui, no entanto, faz-se necessária uma
observação: no direito italiano o dano moral somente é passível de indenização
nos exíguos casos previstos pela lei, ou se originado de um crime, de uma
conduta típica penal (art. 2.059 do Código Civil italiano, combinado com o art.
185 do Código Penal italiano). Assim, fora dos casos decorrentes de ato
criminoso, somente há previsão da responsabilidade pela indenização por dano
imaterial decorrente de ilícito civil nas escassas hipóteses de: a) danos
processuais, como emprego expressões ofensivas em escritos judiciários – art.
89 CPC italiano; b) responsabilidade dos magistrados (na Itália, membros do
Poder Judiciário e do MP) por dolo ou culpa grave no exercício da função (Lei
117/88); c) de injusta detenção (art. 314, CPP italiano); d) violação das
normas de tratamento de dados pessoais (Lei 675 de 31.12.1996).[1]
A categoria foi criada como verdadeira solução à
limitação das hipóteses de dano moral previstas no Codice Civil e italiano.
É apenas um verdadeiro bypass que a doutrina italiana dá ao
sistema de 1942, que tipificava as hipóteses de danos morais indenizáveis.
A figura significa apenas o alargamento das
hipóteses de danos morais indenizáveis e nada mais. Aliás, foi o que fez muitos
séculos antes a Lex Aquilia de Damno quando rompeu com o
sistema tipificado do ius civile para ampliar as hipóteses de
dano indenizáveis que eram pouquíssimas[2]. O Direito Romano passa
a admitir o damnum iniuria datum (dano contra o direito). É
verdade que não se chegou a uma ampliação dos danos indenizáveis tão grande
como a atual, mas houve um aumento sensível das hipóteses.
Em suma, a importação da figura denota o servilismo
de parte da doutrina brasileira que não consegue fazer uma verdadeira
comparação de sistemas. Basta se verificar que, em um sistema aberto, a criação
de um “novo dano” carece de base teórica suficiente para a autonomia da
categoria.
Passamos a responder, então, duas perguntas
importantes quando da importação de figuras estrangeiras. 1. Há
peculiaridades no sistema italiano que exigem a figura do dano existencial?
Sim, a restrição às hipóteses de dano mora indenizável. 2. Essas
peculiaridades se verificam no Brasil? Não, porque as hipóteses de direito da
personalidade que existem no Código Civil são exemplificativas e não taxativas,
e todas as hipóteses de dor e sofrimento permitem a indenização por dano moral
no Brasil
A resposta à pergunta formulada no início do
presente escrito é, portanto, negativa. Trata-se de um gênero e não de uma
espécie autônoma. A Justiça do Trabalho, de maneira pouco técnica e
simplesmente injustificada, buscou no Direito italiano tal categoria que, para
um civilista, denota “política judiciária” e vazio axiológico.
A “frustração do projeto de vida”, sabe-se lá
o que isso significa, se gerar sofrimento ou dor, é causa para indenização por
dano moral, ou seja, algo que impeça a efetiva integração de um indivíduo à
sociedade, quer seja em relações pessoais, quer seja em relações profissionais,
gera tão somente dano moral ou material.
Agora, a limitação do “pleno desenvolvimento como
ser humano” é conceito retórico. Tão vazio quanto a esvaziada dignidade da
pessoa humana que tem sido utilizada para justificar até cobrança de
condomínio. O que é “pleno desenvolvimento”? Quem garante tal desenvolvimento
pleno além dos preceitos filosóficos vazios incorporados retoricamente ao texto
constitucional?
Há orientação do TST no sentido de que a
sobrejornada, por si só, não configura dano existencial e que, ademais, o dano
existencial não se presume, devendo ser provado pelo empregado.
“Na hipótese dos autos, embora conste que o
Autor se submetia frequentemente a uma jornada de mais de 15 horas diárias, não
ficou demonstrado que o Autor tenha deixado de realizar atividades em seu meio
social ou tenha sido afastado do seu convívio familiar para estar à disposição
do Empregador, de modo a caracterizar a ofensa aos seus direitos fundamentais.
Diferentemente do entendimento do Regional, a ofensa não pode ser presumida,
pois o danoexistencial, ao contrário do dano moral, não é ‘in re
ipsa’, de forma a se dispensar o Autor do ônus probatório da ofensa
sofrida” (TST, Recurso de Revista (RR) 14439420125150010 , publicado em
17/04/2015)
O fundamento invocado pela Justiça do
Trabalho é inacreditável:
“O reclamante não fez prova de qualquer ato
praticado pela reclamada que o tenha impossibilitado de se relacionar ou
conviver familiar ou socialmente, afetando suas atividades recreativas,
afetivas, culturais, esportivas, espirituais e de descanso ou que o tenha
impedido de realizar seus projetos de vida” (TRT-2 - Recurso Ordinário (RO)
00012857620135020071 SP A28 publicado em 06/02/2015).
Pensemos nos empregados de grandes centros
urbanos que, em regra, passam duas a três horas no transporte coletivo para
chegar ao emprego e depois retornar à sua casa. Como ganha um salário mínimo,
passa, ainda, os fins-de-semana em trabalhos esporádicos para complementar a
renda.
O “dano existencial” é decorrência da pobreza
e da falta de políticas públicas para esse empregado. A falta de tempo para seu
“pleno desenvolvimento” decorre de um sistema cruel e socialmente injusto e é
regra para grande parte da população brasileira. Transformar isso em categoria
jurídica, em uma país como o Brasil, seria triste, se não fosse trágico.
Nossa próxima coluna cuidará de saber quem
responde pelo dano extrapatrimonial e em que proporção em razão da nova redação
do artigo 223- E da CLT.
[1] Amaro Alves de
Almeida Neto, Dano existencial - A tutela da dignidade da pessoa humana, www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_consumidor, consulta
em setembro de 2017.
[2] Eram hipóteses de
danos indenizáveis o corte da árvore alheia (de arboribus succisis)
e o gado pastar no pasto alheio (de pastu pecoris) .
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