sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O MAIS RECENTE ARTIGO DO NOVO PROFESSOR DA USP.

CONTRATO ADMINISTRATIVO E BOA-FÉ OBJETIVA.
José Fernando Simão

Não são poucas as vezes que, quando lecionamos os princípios contratuais, seja em curso de graduação, pós-graduação, ou preparatório para concursos públicos, que surge uma questão por parte dos alunos: os princípios contratuais previstos no Código Civil se aplicam aos contratos administrativos? Em caso afirmativo, como fica a supremacia do interesse público?

Ressaltamos que a idéia de escrever o presente artigo decorre de julgado enviado pelo Professor Flávio Tartuce ao grupo de estudos Professora Giselda Hironaka e que será analisado a seguir.

I – Os princípios

Primeiramente, cabe explicar quais são os princípios contratuais tradicionais e aqueles ditos sociais e que constam do Código Civil de 2002.

Classicamente, a doutrina arrola como princípios dos contratos a autonomia privada, sua força obrigatória, o consensualismo e a relatividade dos seus efeitos.

Por autonomia privada entende-se o poder que as partes têm de contratar e suscitar, mediante a declaração de vontades, efeitos reconhecidos pela lei. É correto afirmar que o contrato reflete a vontade das partes e seu poder de auto-regulamentação ao qual a lei empresta sua força coercitiva.

Já a idéia de consensualismo significa que basta o simples consentimento, como regra, para que o contrato se forme. Trata-se da superação do formalismo reinante em momentos históricos anteriores, épocas em que o contrato só adquiria a sua força obrigatória se cumprida a solenidade.

Afirma-se, também, que o contrato somente vincula aqueles que dele participaram, sendo, portanto, res inter allios, não obrigando ou prejudicando terceiros estranhos à relação jurídica. Como é sabido, o contrato somente poderá beneficiar terceiros, razão pela qual o Código Civil trata da estipulação em favor de terceiros. Estamos diante da relatividade do contrato.

Sobre os princípios tradicionais recomendamos a leitura de nossa obra Série Leituras Jurídicas, Editora Atlas, v. 5 – CONTRATOS.

O Código Civil de 2002 cuida também de dois novos princípios: a boa-fé objetiva e a função social do contrato.

A função social do contrato está prevista no art. 421 do CC que assim dispõe:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Flávio Tartuce conceitua função social do contrato como um regramento contratual de ordem pública, (art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil), pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, analisado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade, e explica que não se pode afastar o fundamento constitucional deste preceito, pois está intimamente ligado à dignidade da pessoa humana (A função social dos contratos, 2007, p. 248).

Dois são os desdobramentos da função social: na relação entre as partes contratantes e na relação dos contratantes com terceiros. É de se salientar, que nem toda a doutrina aceita esse dúplice desdobramento do tema. Enquanto Antonio Jeová dos Santos, Fernando Noronha e Sílvio de Salvo Venosa só admitem a eficácia interna, Teresa Negreiros e Humberto Theodoro Júnior só admitem a eficácia externa. Por outro lado, admitem ambas eficácias Maria Helena Diniz, Paulo Luiz Netto Lobo, Paulo Nalin, Nelson Nery Jr, Judith Martins-Costa (TARTUCE,2007:246,247). Para aprofundamento do tema recomendamos o livro de Flávio Tartuce, A função social dos Contratos do CDC ao novo CC, Editora Método, 2ª edição, 2007.

A boa-fé objetiva vem prevista no art. 422 do CC:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Explica Sílvio de Salvo Venosa (Direito civil, 2003, v. 2, p. 378) que, para a análise da boa-fé objetiva, o intérprete parte de um padrão de conduta comum, do homem médio, no caso concreto. É um dever de agir de acordo com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.

As noções de agir corretamente com o próximo, ou seja, de honrar a palavra dada, de não causar prejuízos desnecessários a outrem, de cooperação para com o outro contratante, refletem o conceito de norma ética de conduta, segundo os padrões do homem médio. Trata-se de uma norma impositiva de conduta leal, geradora de um dever de correção que domina o tráfego negocial (Judith MARTINS-COSTA, Comentários ao novo CC, v. 5, 2003, p. 46).

II – O julgado

O Superior Tribunal de Justiça julgava mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade militar que aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em licitação devido ao atraso no cumprimento da prestação de fornecer os produtos contratados (REsp 914.087/RJ, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04.10.2007, DJ 29.10.2007 p. 190).

A penalidade administrativa de suspensão temporária em participação em licitações decorreu do fato de a empresa impetrante ter um contrato firmado com a Administração Pública para o fornecimento de 48.000 fogareiros, no valor de R$ 46.080,00 com entrega prevista em 30 dias. Entretanto, o cumprimento integral do contrato não ocorreu no prazo avençado, mas sim de forma parcelada em 60 e 150 dias, com informação prévia à Administração Pública das dificuldades enfrentadas em face de problemas de mercado.

Em razão desse inadimplemento relativo, que em termos de direito civil é classificado como mora, pois os fogareiros, apesar de entregues extemporaneamente ainda era úteis à Administração, gerou a sanção de suspensão temporária em licitações.

Interessantes as razões invocadas pelo Ministro Relator, José Delgado, para conceder a segurança pleiteada e afastar a suspensão imposta.

Diz o Ministro que “ademais, como ficou patenteado nos autos, houve mero atraso no cumprimento das prestações pela impetrante, sendo certo que a própria Administração militar recebeu parte dos produtos fornecidos sem qualquer ressalva, o que pressupõe algum tipo de moratória concedida para o adimplemento total da obrigação”.

Note-se que, de início afasta a possibilidade de um comportamento contraditório (venire contra factum proprium) da Administração Pública. Se aceitou os fogareiros, ainda que fora do prazo contratual, sem qualquer ressalva (primeiro comportamento) seria comportamento contraditório aplicar alguma penalidade à empresa na seqüência (segundo comportamento).

Sobre o tema explica MENEZES CORDEIRO que venire contra factum proprium significa o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente (Da boa-fé no direito civil, 2001, p. 742). Tem como requisito a existência de dois comportamentos lícitos de uma mesma pessoa, separados por determinado lapso temporal, sendo que o segundo comportamento contraria o primeiro. A vinculação entre o instituto do venire e a boa-fé objetiva foi objeto do seguinte enunciado da IV Jornada de Direito Civil:

“Enunciado 362 - Art. 422. A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil”

Ainda, aplicada a boa-fé objetiva para vedar um comportamento contraditório da Administração, prossegue o Ministro José Delgado:

“Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87, da Lei nº 8.666⁄93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade, adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade.” (sublinhamos).

Dessa forma, resta claro que o Superior Tribunal de Justiça acolhe, também para o contrato administrativo os princípios sociais do Código Civil de 2002. Antes de ser administrativo ou civil, estamos diante de um contrato. E se nos perguntarem como fica o princípio da supremacia do interesse público, a resposta é uma só: cabe ao aplicador do direito valer-se da ponderação de princípios caso aja choque entre eles.

Um comentário:

Alberto Hidd disse...

Prof. Flávio, o princípio do "venire contra factum proprium" pode ser aplicado em favor da administração em casos de execução de contrato administrativo? Ex: a administração sempre pagou o contratado com alguns dias de atraso. Entretanto, este sempre recebeu os valores sem impor qualquer óbice. Posteriormente, o particular ajuiza ação de cobrança pleiteando correção monetária dos valores pagos em atraso.
Abraços.