segunda-feira, 13 de outubro de 2014

DOCUMENTO DO VATICANOS DEFENDE MUDANÇAS DA IGREJA EM RELAÇÃO AOS GAYS.



Documento do Vaticano defende mudança da Igreja em relação aos gays

Fonte: Agência Reuters.

Philip Pullella
Na Cidade do Vaticano

sábado, 11 de outubro de 2014

STJ RECONHECE DANO MORAL A BEBÊ QUE NÃO TEVE CÉLULAS-TRONCO COLHIDAS NO PARTO.



Reconhecido dano moral a bebê que não teve células-tronco colhidas no parto

Dano ficou caracterizado pela frustração da chance de ter as células armazenadas.

Fonte: Migalhas.

A 3ª turma do STJ reconheceu, por maioria, o dano moral sofrido por um bebê em razão da não coleta de células-tronco de seu cordão umbilical. A empresa foi condenada a pagar R$ 60 mil de indenização à criança. De acordo com o colegiado, ficou caracterizado o dano extrapatrimonial para o bebê que teve frustrada a chance de ter suas células embrionárias colhidas e armazenadas para, se for preciso, no futuro, fazer uso em tratamento de saúde.

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator, destacou que jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de reconhecer ao nascituro o direito a dano moral, ainda que não tenha consciência do ato lesivo. "A criança foi a principal prejudicada pelo ato ilícito praticado pela empresa".

Para o ministro, ficou configurada na situação a responsabilidade civil pela perda de uma chance, o que dispensa a comprovação do dano final. "Na perda de uma chance, há também prejuízo certo, e não apenas hipotético". 
Segundo ele, "não se exige a prova da certeza do dano, mas a prova da certeza da chance perdida, ou seja, a certeza da probabilidade". Ele citou diversos precedentes que demonstram a aceitação da teoria na jurisprudência do STJ.
"É possível que o dano final nunca venha a se implementar, bastando que a pessoa recém-nascida seja plenamente saudável, nunca desenvolvendo qualquer doença tratável com a utilização de células-tronco retiradas do cordão umbilical. O certo, porém, é que perdeu definitivamente a chance de prevenir o tratamento dessas patologias, sendo essa chance perdida o objeto da indenização".

O caso aconteceu no Rio de Janeiro, em 2009. Os pais contrataram uma empresa especializada em serviços de criopreservação, para que fosse feita a coleta das células-tronco do filho no momento do parto. Apesar de previamente avisada da data da cesariana, a empresa deixou de enviar os técnicos responsáveis pela coleta do material, e o único momento possível para realização do procedimento foi perdido.

Foi ajuizada ação de indenização por danos morais em que constaram como autores o pai, a mãe e o próprio bebê. A empresa admitiu que sua funcionária não conseguiu chegar a tempo ao local da coleta e disse que por isso devolveu o valor adiantado pelo casal. Sustentou que o simples descumprimento contratual não dá margem à reparação de danos morais.

O juízo de primeiro grau, no entanto, considerou que o fato superou os meros dissabores de um descumprimento de contrato e reconheceu o dano moral (R$ 15 mil para o casal), porém julgou improcedente o pedido feito em nome da criança. Para a juíza, o dano em relação a ela seria apenas hipotético, e só se poderia falar em dano concreto se viesse a precisar das células-tronco embrionárias no futuro.

O TJ/RJ também limitou o cabimento de indenização por danos morais aos pais da criança, por entender que um bebê de poucas horas de vida não dispõe de consciência capaz de potencializar a ocorrência do dano. A decisão levou em consideração que, como a criança nasceu saudável e a utilização do material do cordão umbilical seria apenas uma possibilidade futura, não deveria ser aplicada a teoria da perda de uma chance. O TJ/RJ, entretanto, elevou o valor da condenação, fixando-a em R$ 15 mil para cada um dos genitores.

No STJ, a indenização a ser recebida pelos pais "ficou naturalmente mantida", uma vez que não foi objeto do recurso especial.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

RESUMO. INFORMATIVO 547 DO STJ.



RESUMO. INFORMATIVO 547 DO STJ.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. HIPÓTESE DE PENHORABILIDADE DE VALORES RECEBIDOS A TÍTULO DE INDENIZAÇÃO TRABALHISTA. A regra de impenhorabilidade prevista no inciso IV do art. 649 do CPC não alcança a quantia aplicada por longo período em fundo de investimento, a qual não foi utilizada para suprimento de necessidades básicas do devedor e sua família, ainda que originária de indenização trabalhista. Conferindo-se interpretação restritiva ao inciso IV do art. 649 do CPC, é cabível afirmar que a remuneração a que se refere esse inciso é a última percebida pelo devedor, perdendo a sobra respectiva, após o recebimento do salário ou vencimento seguinte, a natureza impenhorável. Dessa forma, as sobras, após o recebimento do salário do período seguinte, não mais desfrutam da natureza de impenhorabilidade decorrente do inciso IV, quer permaneçam na conta corrente destinada ao recebimento da remuneração, quer sejam investidas em caderneta de poupança ou outro tipo de aplicação financeira. Na hipótese, não se trata propriamente de sobras de salários não utilizadas no mês em que recebidas pelo empregado. De fato, as verbas rescisórias alcançadas após a solução de litígio perante a Justiça do Trabalho constituem poupança forçada de parcelas salariais das quais o empregado se viu privado em seu dia a dia por ato ilícito do empregador. Despesas necessárias, como as relacionadas à saúde, podem ter sido adiadas; arcadas por familiares ou pagas à custa de endividamento. Todavia, posta a quantia à disposição do empregado/reclamante, satisfeitas suas necessidades imediatas, e as dívidas contraídas para sua sobrevivência durante o período de litígio e privação, a quantia porventura restante, depositada em conta corrente, caderneta de poupança ou outro tipo de aplicação financeira, não está compreendida na hipótese de impenhorabilidade descrita no inciso IV do art. 649 do CPC. REsp 1.230.060-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 13/8/2014.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. IMPENHORABILIDADE DE QUANTIA DEPOSITADA EM FUNDO DE INVESTIMENTO ATÉ O LIMITE DE 40 SALÁRIOS MÍNIMOS. Sendo a única aplicação financeira do devedor e não havendo indícios de má-fé, abuso, fraude, ocultação de valores ou sinais exteriores de riqueza, é absolutamente impenhorável, até o limite de 40 salários mínimos, a quantia depositada em fundo de investimento. A regra de impenhorabilidade estatuída no inciso X do art. 649 do CPC merece interpretação extensiva para alcançar pequenas reservas de capital poupadas, e não apenas os depósitos em caderneta de poupança. Diante do texto legal em vigor, e considerado o seu escopo, não há sentido em restringir o alcance da regra apenas às cadernetas de poupança assim rotuladas, sobretudo no contexto atual em que diversas outras opções de aplicação financeira se abrem ao pequeno investidor, eventualmente mais lucrativas, e contando com facilidades como o resgate automático. O escopo do inciso X do art. 649 não é estimular a aquisição de reservas em caderneta de poupança em detrimento do pagamento de dívidas, mas proteger devedores de execuções que comprometam o mínimo necessário para a sua subsistência e de sua família, finalidade para qual não tem influência alguma que a reserva esteja acumulada em papel moeda, conta-corrente, caderneta de poupança propriamente dita ou outro tipo de aplicação financeira, com ou sem garantia do Fundo Garantidor de Créditos (FGC). REsp 1.230.060-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 13/8/2014.

DIREITO CIVIL. INTERPRETAÇÃO DO ART. 53 DA LEI DE LOCAÇÕES. Pode haver denúncia vazia de contrato de locação de imóvel não residencial ocupado por instituição de saúde apenas para o desempenho de atividades administrativas, como marcação de consultas e captação de clientes, não se aplicando o benefício legal previsto no art. 53 da Lei de Locações. O objetivo do legislador ao editar o referido artigo fora retirar do âmbito de discricionariedade do locador o despejo do locatário que preste efetivos serviços de saúde no local objeto do contrato de locação, estabelecendo determinadas situações especiais em que o contrato poderia vir a ser denunciado motivadamente. Buscou-se privilegiar o interesse social patente no desempenho das atividades fins ligadas à saúde, visto que não podem sofrer dissolução de continuidade ao mero alvedrio do locador. Posto isso, há de ressaltar que, conforme a jurisprudência do STJ, esse dispositivo merece exegese restritiva, não estendendo as suas normas, restritivas por natureza do direito do locador, à locação de espaço voltado ao trato administrativo de estabelecimento de saúde. REsp 1.310.960-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 4/9/2014.

DIREITO CIVIL. INDENIZAÇÃO REFERENTE AO SEGURO DPVAT EM DECORRÊNCIA DE MORTE DE NASCITURO. A beneficiária legal de seguro DPVAT que teve a sua gestação interrompida em razão de acidente de trânsito tem direito ao recebimento da indenização prevista no art. 3º, I, da Lei 6.194/1974, devida no caso de morte. O art. 2º do CC, ao afirmar que a “personalidade civil da pessoa começa com o nascimento”, logicamente abraça uma premissa insofismável: a de que “personalidade civil” e “pessoa” não caminham umbilicalmente juntas. Isso porque, pela construção legal, é apenas em um dado momento da existência da pessoa que se tem por iniciada sua personalidade jurídica, qual seja, o nascimento. Conclui-se, dessa maneira, que, antes disso, embora não se possa falar em personalidade jurídica – segundo o rigor da literalidade do preceito legal –, é possível, sim, falar-se em pessoa. Caso contrário, não se vislumbraria qualquer sentido lógico na fórmula “a personalidade civil da pessoa começa”, se ambas – pessoa e personalidade civil – tivessem como começo o mesmo acontecimento. Com efeito, quando a lei pretendeu estabelecer a “existência da pessoa”, o fez expressamente. É o caso do art. 6º do CC, o qual afirma que a “existência da pessoa natural termina com a morte”, e do art. 45, caput, da mesma lei, segundo o qual “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro”. Essa circunstância torna eloquente o silêncio da lei quanto à “existência da pessoa natural”. Se, por um lado, não há uma afirmação expressa sobre quando ela se inicia, por outro lado, não se pode considerá-la iniciada tão somente com o nascimento com vida. Ademais, do direito penal é que a condição de pessoa viva do nascituro – embora não nascida – é afirmada sem a menor cerimônia. É que o crime de aborto (arts. 124 a 127 do CP) sempre esteve alocado no título referente a “crimes contra a pessoa” e especificamente no capítulo “dos crimes contra a vida”. Assim, o ordenamento jurídico como um todo (e não apenas o CC) alinhou-se mais à teoria concepcionista – para a qual a personalidade jurídica se inicia com a concepção, muito embora alguns direitos só possam ser plenamente exercitáveis com o nascimento, haja vista que o nascituro é pessoa e, portanto, sujeito de direitos – para a construção da situação jurídica do nascituro, conclusão enfaticamente sufragada pela majoritária doutrina contemporânea. Além disso, apesar de existir concepção mais restritiva sobre os direitos do nascituro, amparada pelas teorias natalista e da personalidade condicional, atualmente há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante, uma vez que, garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais. Portanto, o aborto causado pelo acidente de trânsito subsume-se ao comando normativo do art. 3º da Lei 6.194/1974, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina. REsp 1.415.727-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/9/2014.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO CONSUMIDOR. TUTELA DE INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS, COLETIVOS E DIFUSOS POR UMA MESMA AÇÃO COLETIVA. Em uma mesma ação coletiva, podem ser discutidos os interesses dos consumidores que possam ter tido tratamento de saúde embaraçado com base em determinada cláusula de contrato de plano de saúde, a ilegalidade em abstrato dessa cláusula e a necessidade de sua alteração em consideração a futuros consumidores do plano de saúde. O CDC expõe as diversas categorias de direitos tuteláveis pela via coletiva. Com efeito, as tutelas pleiteadas em ações civis públicas não são necessariamente puras e estanques – ou seja, não é preciso que se peça, de cada vez, uma tutela referente a direito individual homogêneo, em outra ação, uma tutela de direitos coletivos em sentido estrito e, em outra, uma tutela de direitos difusos, notadamente em ação manejada pelo Ministério Público, que detém legitimidade ampla no processo coletivo. Sendo verdadeiro que um determinado direito não pertence, a um só tempo, a mais de uma categoria, isso não implica afirmar que, no mesmo cenário fático ou jurídico conflituoso, violações simultâneas de direitos de mais de uma espécie não possam ocorrer. Nesse sentido, tanto em relação aos direitos individuais homogêneos quanto aos coletivos, há – ou, no mínimo, pode haver – uma relação jurídica comum subjacente. Nos direitos coletivos, todavia, a violação do direito do grupo decorre diretamente dessa relação jurídica base, ao passo que nos individuais homogêneos a relação jurídica comum é somente o cenário remoto da violação a direitos, a qual resulta de uma situação fática apenas conexa com a relação jurídica base antes estabelecida. Assim, eventual negativa indevida do plano de saúde pode gerar danos individuais, concretamente identificáveis em posterior liquidação. Mas essa recusa é antecedida por uma relação jurídica comum a todos os contratantes, que podem ou não vir a sofrer danos pela prática abusiva. A mencionada relação jurídica base consiste exatamente no contrato de prestação de serviços de saúde firmado entre uma coletividade de consumidores e a administradora do plano, razão pela qual se pode vislumbrar o direito coletivo, e não exclusivamente um direito individual homogêneo. Vale dizer, portanto, que há uma obrigação nova de indenizar eventuais danos individuais resultantes da recusa indevida em custear tratamentos médicos (direitos individuais homogêneos), mas também há outra, de abstrata ilegalidade da cláusula contratual padrão, e que atinge o grupo de contratantes de forma idêntica e, portanto, indivisível (direitos coletivos em sentido estrito). Por outra ótica, eventual ajuste da cláusula ilegal refere-se a interesses de uma coletividade de pessoas indeterminadas e indetermináveis, traço apto a identificar a pretensão como uma tutela de interesses difusos. REsp 1.293.606-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 2/9/2014.

STJ. DANOS SOCIAIS. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO DE OFÍCIO.

Danos sociais devem ser reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas

Fonte: Migalhas.

2ª seção do STJ julgou procedente reclamação de instituição financeira.

Quinta-feira, 9 de outubro de 2014.

Em decisão unânime, a 2ª seção do STJ julgou procedente reclamação de instituição financeira contra acórdão de turma recursal que, ao majorar condenação por dano moral, reconheceu de ofício a ocorrência de dano social - isso em processo de autor que alegou ficar 53 minutos à espera de atendimento em fila do banco.
No caso, a Turma Recursal de Juizado Especial de GO fixou indenização de R$ 15 mil pelo dano social. Para a instituição financeira, além do julgamento extra petita, a ACP seria o meio processual adequado para defender direitos de coletividade.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator do processo, assentou que o acórdão “valeu-se de argumentos jamais suscitados pelas partes, nem debatidos na instância de origem, para impor ao réu, de ofício, condenação por dano social”. (grifos nossos)

Conforme o enunciado 456 da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, citou S. Exa., os danos sociais devem ser reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas.
Ainda que o autor da ação tivesse apresentado pedido de fixação de dano social, há ausência de legitimidade da parte para pleitear, em nome próprio, direito da coletividade.”

O colegiado de Direito Privado seguiu o voto conductore de Salomão em julgamento realizado nesta quarta-feira, 8, considerando nulo o acórdão e afastando a condenação de ofício por dano social, com a devolução dos autos para que a lide seja apreciada pela Turma Recursal nos limites em que foi proposta.
  • Processo relacionado : Rcl 13.200

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

TRANSEXUALIDADE OU "TRANSEXUALISMO"? ARTIGO DE FREDERICO OLIVEIRA.



Transexualidade ou “Transexualismo”?

A construção da cidadania trans

Fonte: Blog Direito e Diversidade Sexual.
Por Frederico Oliveira. Advogado e professor da Universidade Nove de Julho - UNINOVE, São Paulo-SP. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Especialista em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás e Bacharel em Direito pela mesma instituição. Membro da Comissão da Diversidade Sexual e Combate a Homofobia da OAB/SP e pesquisador do grupo de pesquisa "Novos direitos e proteção da cidadania: evolução normativa, doutrinária e jurisprudencial" (CNPQ/UPM), com aderência à linha de pesquisa "A cidadania modelando o Estado" e Direitos Humanos.
Esse artigo tem a finalidade de refletir com mais profundidade a posição do ilustre jurista Flávio Tartuce que, em apoio a uma ultrapassada compreensão da medicina, trata a transexualidade como doença em sua obra Direito Civil, vol. 5, o que foi alvo de questionamento da estudante de Direito e transexual Bianca Figueira, conforme artigo postado nesse blog semana passada.

Cumpre esclarecer que a missão do blog é provocar a reflexão e o debate, propondo esclarecimentos com base nos direitos humanos fundamentais sobre a forma mais adequada para se tratar os direitos e a realidade enfrentada pelas pessoas LGBT. Nessa missão, busca-se a promoção do respeito à diversidade sexual, como componente da natureza humana, mas que a sociedade menospreza, por obediência a padrões tradicionais, históricos e culturais consolidados na compreensão binária de gênero (macho e fêmea) e na heteronormatividade.

É essa visão limitada a respeito de sexualidade e gênero que vem alimentando a homofobia e a transfobia de hoje, consolidada no Brasil numa campanha difamatória  contra a minoria que escapa aos padrões da sexualidade. Atualmente, a questão dos direitos da diversidade sexual está no centro do debate político em todo o mundo, com contornos que variam conforme o sistema político que acolhe ou que rejeita esses indivíduos, a exemplo de países subdesenvolvidos com regimes autoritários que chegam ao cúmulo de criminalizar a homossexualidade com pena de morte, e, por outro lado, países socialmente mais desenvolvidos e democráticos que, ao se abrirem aos estudos de sexualidade e gênero, reconheceram direitos plenos às pessoas LGBT.

Como proposta para uma melhor compreensão da realidade da diversidade sexual, esse veículo busca denunciar e combater a homofobia e a transfobia, bem como todo o tratamento que empurra essas pessoas para a marginalidade, como as posições e opiniões que consideram a condição de qualquer uma das pessoas da sigla como anormalidade ou doença. No Brasil, a população LGBT vem sendo alvo de uma campanha de interesses obscuros e eleitoreiros para manipular as disputas políticas, por via de uma ideologia conspiratória com a disseminação do medo de uma degeneração social que, no curso da história, sempre se assentou no campo da sexualidade. Essa campanha tem como base sólida o ambiente heteronormativo e binário de gênero que reputa como errado, como anormal e imoral a sexualidade que não se adequa ao padrão socialmente consolidado por longos anos de dominação e opressão que, em pleno século XXI, ainda coloca como tabu a compreensão mais profunda das questões da sexualidade.

Também cumpre reforçar que a discussão não gravita exclusivamente pelo fato de Tartuce ter feito o uso do termo “transexualISMO” (o sufixo ISMO = doença), mas aclarar uma compreensão patologizante altamente prejudicial para o tratamento de pessoas que, em função de sua transexualidade, não estão de nenhuma forma incapacitadas ou inabilitadas, por essa razão, a exercer ou desempenhar atividades cotidianas e habituais da vida pública e privada.

Quando tive acesso ao desabafo de Bianca Figueira, que também faz parte do meu grupo de amigos no facebook,  sugeri que levássemos a questão para ser discutida publicamente em meu blog, porque uma das maiores lutas da militância LGBT é a despatologização da condição dessas pessoas, fato que vem sendo tratado nos mais renomados eventos acadêmicos no mundo afora, inclusive com uma vasta literatura a respeito da construção histórica, social e cultural de gênero (masculino e feminino).

O ilustre jurista em resposta a mim dirigida se coloca aberto ao debate, mas insiste em manter em seu livro a terminologia, ratificando a classificação dessa condição humana como doença capitulada dentre os transtornos mentais do Manual de Diagnósticos e Estatísticas (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria (APA) e da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS), arvorando-se, pois, na ultrapassada compreensão médica a respeito do assunto.

Em primeiro lugar, para que possamos compreender a realidade dessas pessoas socialmente vulneráveis,  precisamos dar voz às suas angústias e aos seus sofrimentos, para avaliarmos o modo mais adequado de fazer referência a essa temática que, necessariamente deve ser avaliada de forma cuidadosa em nossos discursos acadêmicos e jurídicos.

O emblemático caso de Bianca Figueira vem me chamando atenção desde o dia em que a vi dando depoimento em seminário realizado ano passado e organizado pela Comissão da Diversidade Sexual da OAB/SP que integro como membro efetivo.  

Bianca Figueira foi reformada pela Marinha do Brasil (MB), em 2008, sob a alegação “da incompatibilidade administrativa que se criou entre o novo estado psicofísico da militar e o exercício da profissão de Oficial da Armada” (cf. declaração da MB), tendo sido considerada inabilitada para o cargo em razão da sua nova identidade de gênero.

A reforma de Bianca se deu, não somente em razão de sua nova condição feminina decorrente do processo transexualizador, mas também em razão da classificação patológica dessa condição pelo manual de diagnóstico da medicina, o que também serviu de embasamento para o corpo médico da Marinha atestar sua incompatibilidade para o trabalho profissional.

1. A transexualidade: uma realidade a ser compreendida

A “transexualidade é uma experiência identitária, caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”. As transexuais são pessoas que “ousam reivindicar uma identidade de gênero em oposição àquela informada pela genitália e ao fazê-lo podem ser capturados pelas normas de gênero mediante a medicalização e patologização da experiência”[1][1]

Trata-se de uma realidade que deve ser observada muito mais no plano antropológico e psicológico do que no campo médico, vez que esse último serve apenas como mecanismo para possibilitar, por meio do processo transexualizador (hormonização e cirurgia de transgenitalização), a composição de uma identidade psicologicamente consolidada em um gênero diverso do sexo biológico constatado no momento do nascimento.

Orientação sexual (heterosexualidade, homossexualidade e bissexualidade) e identidade de gênero (cisgênero e transgênero) são coisas distintas, tanto é que existem muitos casos de travestis e transexuais lésbicas (no caso de trans mulheres que sentem desejo e atração sexual por mulheres) ou gays (no caso de trans homens que sentem desejo e atração sexual por homens).

A transexualidade não pode ser compreendida como uma mera adequação ao padrão biológico da compreensão da heteronormatividade. Desse modo, a experiência científica, por mais de décadas comprova suficientemente que o discurso biologizante e binário de gênero (macho e fêmea) é furado, pois não se aplica às pessoas LGBTs.

2. A medicina e o seu atraso na compreensão das questões de gênero e sexualidade

Ao lado da medicina, que integra as ciências biológicas, existem estudos específicos a respeito de sexualidade e gênero, tanto no campo das ciências sociais, a cargo da antropologia e da sociologia; bem como da psicologia, todas reconhecidas academicamente como ciências. Esses estudos não são, salvo em casos muito especiais, transversalizados nas ciências médicas com suas ortodoxas metodologias de investigação apropriadas ao campo fisiológico e anatômico dos órgãos sexuais e demais composições biológicas e genéticas que possibilitam o exercício da sexualidade.

A abertura da medicina para a compreensão da problemática da violência contra a mulher e LGBT ainda é pouco explorada para se combater determinadas doenças, a exemplo das vulnerabilidades para a contaminação de DST/Aids e, também, da endometriose que, em muitos casos, é diagnosticada tardiamente, em razão de uma visão sexista ainda presente na medicina, que naturaliza as dores do período menstrual e inviabiliza um diagnóstico precoce.

É importante considerar que no Brasil vivem inúmeras transexuais que se livraram desses protocolos médicos, submetendo-se à cirurgia de transgenitalização na Tailândia ou em outros países, como foi o caso de Bianca e do recém noticiado caso da Delegada de Polícia de Goiânia, Laura de Castro Teixeira. Há também, inúmeros casos em que a transexual não quer se submeter à cirurgia por medo da radical mudança ou pelo receio de que perderá a sensibilidade para a prática sexual.

No curso do tempo, o discurso médico aliado às forças conservadoras e religiosas serviu de obstáculo para a emancipação das mulheres e dos direitos dos homossexuais. Esse discurso justificou por muito anos o cenário da “dominação masculina”[2][2] reforçado pelas forças religiosas, impondo às mulheres a limitação do seu espaço no campo doméstico, atrelando a sexualidade feminina para fins procriativos, aprisionando as mulheres em seu próprio corpo, sob o contestável império do instinto materno (nem todas as mulheres querem ter filhos).

Do mesmo modo, a constatação médica serviu por longos anos de justificativa para que os homossexuais (gays e lésbicas) e bissexuais fossem percebidos pela sociedade como pessoas que padeciam de um transtorno que poderia ser revertido, limitando também a sexualidade à uma finalidade procriativa justificando aí a funcionalidade dos órgão sexuais. Afinal de contas, a Medicina considerou a homossexualidade como doença, utilizando a terminologia "homossexual-ISMO" no CID até 17/05/1990. Essa conquista fez com que a data fosse marcada em comemoração ao Dia Internacional de combate à homofobia. 

Também, por muito tempo o prazer sexual foi patologizado pela medicina, como eram as diretrizes da Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923 pelo psiquiatra Gustavo Riedel, servindo-se de política de domesticação dos instintos sexuais para o combate de doenças sexualmente transmissíveis e as falsas constataçoes de uma teoria da hereditariedade em que se acreditava, por exemplo, que a miscigenação racial colocaria a sociedade em risco de degeneração.[3][3]

Esse discurso médico do passado, com relação à condição da mulher e dos homossexuais tem nos dias de hoje consequências altamente danosas para a realidade dessas pessoas. Especialmente no Brasil, existe uma grande resistência conservadora que povoa o debate politico no sentido de se obstaculizar a legalização da interrupção da gravidez até a 12 semana de gestação, devolvendo à mulher o seu corpo e a liberdade reprodutiva; além da necessária aprovação de lei que, de forma expressa, reconheça o casamento igualitário; bem como das políticas públicas adequadas no campo da educação, saúde e segurança pública para a promoção da igualdade de gênero e de uma cultura de respeito à diversidade sexual que são sempre rechaçadas pelos segmentos mais conservadores da sociedade.

Inclusive, a própria medicina vem sofrendo prejuízos com seu discurso do passado, pois, encontra grandes dificuldades para estabelecer políticas preventivas de sucesso no campo da saúde sexual e de métodos contraceptivos, diante das dificuldades de assimilação da população, fruto de uma visão sexista que anteriormente informava as ciências médicas. A saúde pública enfrenta, assim, problemas para o combate de certas doenças, a exemplo do cancer de prostata diagnosticado peloexame de “toque retal” e das recentes resistências de certos grupos à vacinação de adolescentes contra o HPV como política de prevenção de cancer de cólo de útero.

Essa explanação não significa, por óbvio, um menosprezo às ciências médicas, mas serve de alerta para confirmar que não se pode observar ou considerar a condição humana apenas sob os aspectos biológicos.

É preciso, pois, ir além da medicina que hoje, por falta de transversalidade com outras ciências, infelizmente não traz respostas adequadas para a realidade vivida pelas pessoas transexuais.

Precisamos antes de qualquer coisa devolver humanidade para essas pessoas e para isso é INADMISSÍVEL considera-las como anormais ou doentes.

DOENÇA significa “1. Falta ou perturbação da saúde. 2. Vício; defeito.” o que demonstra ser inadequado para a tratativa do tema.

O desejo de adequação do corpo não pode ser considerado como transtorno mental que tenha como destino a trangenitalização, especialmente porque se o Estado garantisse a ideal dignidade e bem estar às pessoas transexuais, devolveria a elas a plenitude de vida para se auto-determinar.


3. A luta pelo reconhecimento das pessoas trans: as outras ciências e as questões de gênero e sexualidade

A luta pelo reconhecimento das travestis e transexuais traz muitas respostas a respeito da questão identitária que são muito mais profundas do que os aspectos anatômicos e fisiológicos dos órgãos sexuais. As travestis, por exemplo, se identificam de maneira oposta aos padrões convencionados para o seu sexo biológico, conformando-se com sua genitália. As transexuais, por outro lado, precisam dessa identidade, adequando-se o sexo biológico, inclusive o aparelho sexual que gera, em muitos casos, a necessidade de trangenitalização.

O mais interessante é que muitos discursos que defendem a manutenção do registro civil de acordo com o sexo biológico do nascimento, não são avaliados em observância às necessidades das pessoas travestis e transexuais, mas muito mais em razão do tal receio ao “erro essencial sobre a pessoa” o que me parece um contrasenso absurdo, sobretudo porque as pessoas se relacionam não com um órgão sexual, mas se relacionam antes de tudo com o ser humano. Ou seja, o que importa nesse raciocínio é o risco ou o medo de que terceira pessoa possa ser confundida quanto ao órgão sexual que o indivíduo carrega em seu corpo, do que propriamente o intuito de se proteger a condição das pessoas trans que, tendo ou não respaldo na medicina, irão utilizar de meios outros para alcançar seus objetivos, vide os inúmeros casos de siliconização, hormonização clandestina e de automutilação muito comuns na realidade das transexuais por falta de políticas de saúde adequadas a essa condição humana.

As transexuais estão, pois, aprisionadas em um corpo tendo que se submeter ao controle da sociedade, do Estado, da medicina e da Igreja, não lhes sendo dado o direito à autonomia da vontade para deliberarem a respeito das modificações que necessitam ser feitas, mesmo sendo elas irreversíveis e radicais.

As questões de gênero vem sendo enfrentadas desde os tempos dos movimentos liberacionistas feministas, influenciados pela filósofa francesa  Simone de Beaurvoir, cujos estudos tomaram força na década de 70, como forma de buscar soluções para a problemática da desigualdade de gênero. Referidos estudos culminaram com a Teoria Queer estabelecida “para a compreensão da forma como a sexualidade estrutura a ordem social contemporânea”, ganhando “notoriedade como contraponto crítico aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e à política identitária dos movimentos sociais”.[4][4]  Esses estudos foram protagonizados por Steven Seidman, Steven Epstein, Joshua Gamson, Judith Butler e Roderick Ferguson, impulsionando a discussão a respeito da despatologização da condição das minorias sexuais, promovendo a desvinculação/dissociação entre “GÊNERO”, referente a construção das identidades masculina e feminina; “SEXO”, no aspecto biológico/genético; e  “SEXUALIDADE”, como o modo como o indivíduo interage com o seu corpo para o seu uso contextualizado no prazer e/ou no afeto.

No Brasil os estudos da Teoria Queer tiveram como pioneira a Prof. Guacira Lopes Louro, da UFRS, articulando a questão para o campo da educação, além de importantes pesquisadoras como Larissa Pelúcio e Berenice Bento. Essa teoria vem desde a década de 80 pesquisando a respeito das identidades que escampam dos padrões sociais, tal como é o caso da homossexualidade que foge da heteronormatividade; e da transexualidade que foge do binarismo de gênero (masculino e feminino) que impõe papéis, expressões e comportamentos atrelados ao sexo biológico do indivíduo.  


3.1. A transexualidade para a Psicologia

A Psicologia em apoio a Campanha Internacional Stop Trans Pathologization-2012,  firmou o entendimento no Brasil no sentido de que a identidade das pessoas trans (travestis, transexuais) não devem ser percebidas como transtorno mental. A Resolução n. 14 de 20 de junho de 2011 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) garantiu o direito identitário aos psicólogos travestis e transexuais que poderão fazer o uso do nome social em sua carteira profissional, independente de retificação do registro civil.

O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [5], corroborando o entendimento do CFP, posicionou-se no sentido de que: 

As sexualidades, os gêneros e os corpos que não se encaixam no binarismo convencional (masculino/feminino, macho/fêmea) não podem servir de base para uma classificação psicopatológica. A normatividade do binarismo de sexo e de gênero só permite aos deslocamentos, como a transexualidade, a travestilidade, o crossdressing, as drag queens, serem vistos como maneiras de existir desviantes, criando-se categorias linguísticas e psiquiátricas que conferem inteligibilidade à vivência
destas pessoas. Portanto, numa concepção que desnaturalize o gênero, a pluralidade das identidades de gênero refere possibilidades de existência, manifestações da diversidade humana, e não transtornos mentais.

Ser considerad@ um@ "doente mental" só traz sofrimento à vida de quem possui uma identidade de gênero trans. (negritei) Apesar de considerar que vivências como a transexualidade e a travestilidade podem e, em geral, geram muito sofrimento, entendemos que isto tem mais a ver com a discriminação do que com a experiência em si. A patologização das identidades trans fortalece estigmas, fomenta posturas discriminatórias e contribui para a marginalização das pessoas. A "doença" trans é social: é a ausência de reconhecimento destas pessoas como cidadãs, é a ausência de reconhecimento de seu direito de existir, de amar, de desejar e de ser feliz.”

3.2. A transexualidade para as Ciências Sociais

A socióloga Berenice Bento (vide o vídeo), seguida por uma série de estudiosos, representa hoje uma das pesquisadoras brasileiras mais engajadas nos estudos da transexualidade, ao mergulhar por três anos em pesquisa de campo no Brasil e na Espanha, investigando a realidade vivida pelas transexuais que chegavam aos hospitais para se submeterem à cirurgia de transgenitalização.

Em pesquisa de campo em nível de doutorado, na Universidade de Brasília (UNB), Berenice investigou com profundida a realidade vivida e sentida por essas pessoas que tinham os ambulatórios dos hospitais como um perverso ritual de passagem. As transexuais no Brasil para se submeterem ao processo transexualizador necessitam passar por um estágio de 2 a 3 anos, submetendo-se à avaliação de uma equipe muldisciplinar para autorizar a cirurgia.

Berenice Bento contesta o discurso médico patologizante e constata que os protocolos construídos nessa equivocada ambiência binária que normatiza gênero, não são capazes de investigar de forma segura a real necessidade da pessoa para se submeter à cirurgia de transgenitalização. Na realidade as transexuais se vêem obrigadas a assimilarem o discurso médico patologizante, como a única forma de conquistarem a plenitude de sua identidade que será avaliada por questionários e testes psicológicos, desenhados de acordo com as normas de gênero socialmente produzidas ao longo de anos de influência da dominação masculina.

É óbvio que a cirurgia de transgenitalização determina uma mudança radical que, não sendo adequada a determinado indivíduo, poderá trazer riscos comprometedores da saúde psicológica dessa pessoa.  No entanto, isso também acontece com outras cirurgias, a exemplo de cirurgias plásticas e  bariátrica que, em alguns casos poderá demandar acompanhamento psicológico, não para autorizar, mas apenas para dar o suporte necessário para que o indivíduo possa fazer sua escolha em um nível seguro de auto-conhecimento.

Mas veja bem! A necessidade de adequações anatômicas do órgão sexual são muitas vezes provocadas pelo ambiente social transfóbico que empurra muitas transexuais a se adequarem aos rígidos padrões de gênero estabelecidos socialmente numa relação de poder, fruto da histórica tradiçao que delegou ao universo feminino papéis restritos ao mundo privado. Esse é, pois, o ambiente de onde a medicina está inserida, que tenta a fórceps fazer o enquadramento entre composição biológica à identidade de gênero, insistindo em dizer que, aquele que não se conforma com o seu corpo, padece de uma anomalia que precisa ser corrigida por um processo cirúrgico, quando na realidade essa necessidade deveria ser proveniente de uma manifestação de vontade livre dessa imposição social altamente violenta e opressora.

A identidade, no que concerne a personalidade do indivíduo, nada tem a ver com a biologia e muito menos com a medicina, o que por essa razão, se faz necessária uma incursão mais profunda naquilo que realmente informa a personalidade para determinar a identidade de gênero de uma pessoa.

Feito isso e para avaliar a completude do ser humano, faço algumas perguntas como sugestão de reflexao apropriada ao debate. Os seres humanos podem ser lidos como animais meramente reprodutores? É o órgão/aparelho sexual que importa para a identificação do indivíduo como homem ou como mulher?

Para essas respostas se faz necessário desapegar-se dos fatores que compõem o sexo biológico para avaliar qual é a importância disso tudo para se considerar um indivíduo como homem ou como mulher.

Não é a capacidade procriativa, muito menos o pênis ou a vagina que determinam, respectivamente, a masculinidade e a feminilidade. Aliado a isso, observe que há casos, por exemplo, de homens que perderam seu órgão sexual e nem por isso perderam a sua identidade masculina, da mesma forma que existem inúmeras mulheres que tiveram que retirar o útero, tendo que se submeter a reposição da carga hormonal por meios não naturais e que, mesmo assim, continuam sendo mulheres.  

Sei que a avaliação é complexa e o assunto palpitante, afinal de contas trata-se de uma minoria sexual. Além disso, a marginalidade enfrentada por essa minoria empurra seus integrantes para a invisibilidade, destinando a essas pessoas restritos espaços à margem da sociedade que, por consequencia levam o senso comum a equivocadamente confirmar a hipótese da anormalidade/transtorno classificada pela medicina.

4. O Direito e a construção da cidadania das pessoas trans: a constitucionalização e o respeito às normas internacionais de direitos humanos

No campo do DIREITO, sem discutir qual corrente é majoritária, mesmo porque não é esse o ponto da minha discussão, a questão é controvertida. Primeiramente porque não há lei que retire os obstáculos do senso comum e da compreensão ultrapassada da medicina, obstáculos que entendo ser altamente prejudiciais por negarem o direito natural à identidade de gênero. A Lei de Registro Públicos, por exemplo, instituída numa visao limitada de imutabilidade do prenome, é quase uma norma de proibição de retificação do registro civil.

A afirmação de direitos especifícos às minorias, não significa dar ou conceder privilégios, mas reconhecê-las em sua plenitude para que possam ser retirados da condição de rebaixamento, fruto de uma moral acrítica e de uma tradição histórica divorciada da realidade, fundada na ideia de dominação. Para que as minorias possam ser reconhecidas, é preciso ser fomentada a conciliação da distribuição de direitos com o reconhecimento da identidade cultural ou social dos indivíduos que a elas integram. [5][6]

A falta de reconhecimento promove a depreciação das identidades que ficam vulneráveis à manipulação das opiniões públicas e vitimadas pela opressão da maioria integrante do padrão socialmente imposto. Desse modo, para se colmatar uma justa distribuição de direitos é indispensável a promoção do reconhecimento dessas identidades para que essas minorias possam também exercer uma cidadania plena, livres do rebaixamento e da opressão dos padrões sociais que não se encaixam na realidade desses indivíduos. Isso ocorre, pois a válvula motora da condição de rebaixamento desses grupos foi construída com a propagação de uma cultura não reflexiva a respeito da pluralidade de identidades sociais e culturais que circunda a essência humana.
Numa concepção de cidadania, não se admite a inferiorização de alguns em detrimento de outros, muito menos a falta de acesso a direitos tão essenciais ao exercício de uma ideal cidadania, calcada na fruição de direitos fundamentais.

O sentido de uma democracia como regime político, deve ser fundado na cidadania para todos, como base para o exercício dos poderes constituídos pelo Estado, conciliando-se os princípios da liberdade, da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Um regime assim estabelecido impõe um olhar especial que possa corrigir as vulnerabilidades de certas pessoas que, por sua condição - aqui no caso de identidade de gênero - não tem garantida uma justa participação na distribuição dos direitos fundamentais.   

O reconhecimento e a apropriação da concepção de cidadania é de suma importância para uma justiça pautada na distribuição equitativa dos benefícios. As pessoas travestis e transexuais são estigmatizadas pela sociedade e tais estigmas são frutos da sedimentação de um padrão institucional e histórico.

As pessoas trans sofrem pela “usurpação negativa de um bem imaterial”, pois não há aceitação e respeito à sua condição diferente dos padrões convencionais estabelecidos pela sociedade. Por essa razão, cabe ao Direito equilibrar as distorções a fim de se promover o reconhecimento pleno da identidade de gênero dessas pessoas.[6][7]

Elas “precisam se saber reconhecid[a]os também em suas capacidades e propriedades particulares para estar em condições de autorrealização, el[a]es necessitam de uma estima social que só pode se dar na base de finalidades partilhadas em comum.[7][8]

No plano internacional de Direitos Humanos a compreensão a respeito da cidadania das pessoas LGBT é orientada pelos Princípios de Yogyakarta que reputa a identidade de gênero como essencial para “a dignidade e humanidade de cada pessoa”.  

O referido documento integrante dos tratados internacionais em que o Brasil é signatário, estabelece como identidade de gênero “a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.”

A orientação sexual e identidade de gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade.” (destaquei)

Além dessa interpretação, os Princípios de Yogyakarta determinam que os Estados-partes, como é o caso do Brasil deverão:

“a) Garantir que todas as pessoas tenham capacidade jurídica em assuntos cíveis, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, assim como a oportunidade de exercer esta capacidade, inclusive direitos iguais para celebrar contratos, administrar, ter a posse, adquirir (inclusive por meio de herança), gerenciar, desfrutar e dispor de propriedade; b) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para respeitar plenamente e reconhecer legalmente a identidade de gênero autodefinida por cada pessoa; c) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para que existam procedimentos pelos quais todos os documentos de identidade emitidos pelo Estado que indiquem o sexo/gênero da pessoa – incluindo certificados de nascimento, passaportes, registros eleitorais e outros documentos – reflitam a profunda identidade de gênero autodefinida por cada pessoa; d) Assegurar que esses procedimentos sejam eficientes, justos e não-discriminatórios e que respeitem a dignidade e privacidade das pessoas; e) Garantir que mudanças em documentos de identidade sejam reconhecidas em todas as situações em que a identificação ou desagregação das pessoas por gênero seja exigida por lei ou por políticas públicas;” (destaquei)

Recentemente, no dia 26/09, o Conselho de Direitos Humanos (29a Sessão) do sistema global (ONU), com participação efetiva do Estado Brasileiro, editou uma resolução expressando uma grave preocupação com os atos de violência e discriminação contra as pessoas LGBT, determinando ao Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH) o monitoramento dessa violência para orientar boas práticas para a sua superação.

A nossa ordem constitucional recepciona os tratados internacionais ratificados pelo Brasil no seu ambito doméstico (art. 5º, § 3º) - tal como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais - que nas questões de orientação sexual e identidade de gênero, devem serem interpretados à luz dos Princípios de Yogyakarta. As normas internacionais de direitos humanos, são reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com hierarquia supra-legal, atendendo e ampliando os direitos fundamentais consignados na Constituição Brasileira.

Dentre esses princípios temos, em primeiro lugar, a LIBERDADE, considerada pela auto-determinação do indivíduo e pela autonomia da vontade para dirigir a sua vida privada; a IGUALDADE e a DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA que consistem necessariamente “na eliminação de qualquer vestígio de discriminação até a extensão e ampliação dos direitos sociais previstos na Constituição” [9] 

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendimento firmado no sentido de que:
“Para o [a] transexual, ter uma vida digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade”, donde “afirmar a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa humana como valor absoluto” (STJ, REsp n.o 1.008.398/SP, DJe de 18.11.2009)

Não bastasse isso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao tentar transversalizar o conhecimento a respeito de gênero e sexualidade, na I Jornada de Direito à Saúde, editou os seguintes enunciados:

Enunciado 42. Quando comprovado o desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, resultando numa incongruência entre a identidade determinada pela anatomia de nascimento e a identidade sentida, a cirurgia de transgenitalização é dispensável para a retificação de nome no registro civil.
Enunciado 43. É possível a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização."

O direito à identidade integra os direitos da personalidade, tratando-se de direitos subjetivos inatos e absolutos aos quais não cabe a ninguém, muito menos ao Estado restringir. Esse direito independe, inclusive, de autorização, cabendo o reconhecimento da sociedade e ao Estado propiciar os meios para que as pessoas possam se apresentar da forma que melhor se identificam.

Muitos estados e municípios, mesmo diante de suas limitaçoes, (pois cabe à União legislar sobre direito civil), já garantem o reconhecimento à identidade das pessoas trans pelo denominado NOME SOCIAL que aproxima os documentos dessas pessoas à sua realidade de vida em sociedade. Esse reconhecimento também vem sendo estendido às escolas e universidades públicas.

Infelizmente quando o Judiciário nega direitos das pessoas trans, ele o faz na grande maioria das vezes sob a justificativa da MEDICINA ou de lacuna da lei e em todas essas hipóteses o faz contrariando a nossa ordem constituicional que garante cidadania plena para todos indistintamente.

É preciso, pois promover a devida constituicionalização do direito em observância à nossa ordem convencional (dos tratados internacionais de direitos humanos) e de direitos fundamentais, garantindo-se, pois, a ideal força normativa dos princípios constitucionais de eficácia plena e de aplicação imediata (art. 5º, § 1º) que, obrigatoriamente devem preencher a lacuna legislativa para a concretização da dignidade das pessoas transexuais.

Cabe nesse sentido, romper com as metologias interpretativas dogmáticas que se colocam como obstáculo para a fruição plena dos direitos fundamentais. Para isso, é necessária a utilização de uma metodologia apta a concretizar os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade para devolver humanidade às pessoas travestis e transexuais.

O Direito no Brasil não vem fazendo o esforço para a transversalização dos estudos mais recentes da psicologia e das ciências sociais que, pelas razões acima avaliadas são muito mais relevantes e adequados, do que a medicina para determinar o conhecimento doutrinário.

A questão identitária das pessoas trans encontra-se próxima de ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em ação direta de inconstitucionalidade ADI 4275, de autoria da Procuradoria Geral da República, tendo ingressado como amici curiae o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual (GADvS) e a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Trangêneros (ABGLT), além da repercussao geral reconhecida pela suprema corte no RE 670.422.

Agora proponho a seguinte reflexão: se mesmo diante todos esses sólidos estudos em torno da compreensão da identidade de gênero, o juiz insiste em um laudo psicológico para atestar a condição da transexualidade ou atrela a retificação do registro civil à cirurgia de transgenitalização, ele demonstra, no mínimo, preguiça de avaliar a realidade identitária vivida por aquela que demanda a retificação de registro, o que pode ser facilmente constatado por prova documental e testemunhal. Além disso, demonstra um total menosprezo com o sofrimento vivido por uma pessoa que passa a ter sua identidade civil depondo contra a sua realidade social aumentando a situação de marginalidade e discriminação enfrentada por essas pessoas.

Para o jurista Flávio Tartuce transmito a mensagem do constitucionalista Paulo Bonavides: “O Direito ou liberta ou não é Direito. Não lhe reconhecemos outra função, outra filosofia, outro escopo, outra validez. Não importa discutir-lhe a origem, mas o fim; o fim da concretude social contemporânea, sobretudo quando se atenta que aí já baixam sombras espessas sobre o futuro da liberdade e o destino dos povos. Aquele fim é a vocação das Constituições. Não podem elas, (…) apartar-se, por conseguinte, do constitucionalismo dirigente, vinculante, pragmatico. Fazê-lo seria condená-las à ineficácia, à obsolescência, à fatalidade, desatando-as de seus laços com o Estado social.” [10]

A leitura isolada do artigo 13 do Código Civil, distante da compreensão das questões reais enfrentadas pelas transexuais não pode servir de obstáculo para aprisiona-las em seu próprio corpo. A funcionalidade da sexualidade não se limita a um órgão sexual, não podendo a cirurgia de transgenitalização ser percebida como “diminuição permanente da integridade física”, sobretudo quando a própria medicina apresenta técnicas reconhecidas com sucesso para se manter a funcionalidade do órgão sexual redesignado de pênis para a “neovagina”, não se tratando mais de procedimento experimental (a transgenitalização de transexuais masculinos, por outro lado, referente a neofaloplastia ainda é considerada pelo CFM como cirurgia experimental) - cf. Parecer CFM 20/10

É preciso promover a constitucionalização do Direito que, sob a ótica da dignidade humana, deve garantir a liberdade dessas pessoas promoverem as mudanças necessárias para o alcance da felicidade na sua conformação identitária. As regras não podem ser interpretadas como obstáculo para a concretização dos princípios que visem a plenitude de vida do ser humano, sob pena de se fazer o uso do Direito como instrumento de dominação e de opressão.

[8][1] BENTO, Berenice. O que é transexualidade. SP: Brasiliense, 2008.
[9][2] termo utilizado pelo antropólogo e sociólogo francês Pierre Bordieu que em sua teoria “A dominação masculina” denuncia os mecanismos utilizados pela família, igreja, escola e Estado para neutralizar a violência que determina a construção social dos corpos para a limitação de espaços destinados às mulheres e àqueles que não se adequam aos padrões definidos com base nesse sistema de dominação. (BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 12 ed. RJ: Bertrand Brasil, 2014).
[10][3] cf. artigo FACCINETTI, Cristiana. A doença do prazer” in Revista de História da Biblioteca Nacional. Sexo e poder no Brasil: como usamos e abusamos de contradições. Ano 8. n. 93. Junho 2013. p. 32/33
[11][4] MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização in Sociologias. Porto Alegre. Ano 11. n. 21, 2009, p. 150-182.
[12][5] cf. petição de ingresso da GADvs e ABGLT, patrocinada pelo advogado Paulo Iotti Vecchiatti.
[6] FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética? Revista Lua Nova, São Paulo 70: 101-138, 2007, p. 106.  
[13][7] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito ao reconhecimento para gays e lésbicas. Sur, Revista Internacional de Direitos Humanos. SP. v. 2. n. 2, 2005. 
[14][8] apesar de tratar de pessoas o sociólogo alemão enfrenta a luta pelo reconhecimento das minorias in HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Tradução Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 277.
[9] APPIO, Eduardo. Direito das minorias. SP: RT, p. 197
[10] BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa. SP: Malheiros, 2001.