Constituição, Processo e Prisão Civil do Devedor de Alimentos: diálogos entre o pretérito, o presente e o porvir
Luiz
Edson Fachin
Fonte: Migalhas.
Aqui segue, à luz
da regra processual projetada na ambiência do processo civil, reflexão sobre o
núcleo desse mote.
Vencido foi, pela
hermenêutica sistemática mais refinada e sustentada numa sólida racionalidade
jurídica, simultaneamente interna e exógena, quanto à questão no âmbito da
alienação fiduciária e ali do depositário infiel. No que diz respeito à prisão
civil do inadimplente de alimentos, tem-se que não existem maiores discussões
acerca de sua constitucionalidade, em face da exceção prevista em múltiplos
textos constitucionais nacionais e internacionais acerca do tema, como é o caso
de diversos tratados ratificados pelo Brasil.
O próprio Pacto de
São José da Costa Rica admite esta exceção em seu artigo 7, dispondo que
“ninguém deve ser detido por dívidas”, mas que “este princípio não limita os
mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de
inadimplemento de obrigação alimentar”.
Esta previsão da
prisão do devedor de alimentos ocorre como medida extrema e excepcional, tendo
em vista que é direito personalíssimo e igualmente fundamental o acesso do
credor a seus alimentos, de modo a concretizar a assistência familiar e o
princípio do melhor interesse do menor. Mediante a prisão, que pode ser
decretada quantas vezes forem necessárias até o pagamento da verba alimentícia,
busca o Estado, por meio de prestações positivas, instar o inadimplente a
respeitar os direitos de outrem solidariamente.
Considerado todo o
contexto constitucional envolvendo o instituto da prisão civil do devedor de
alimentos, nos parece que o projeto do novo Código de Processo Civil fez bem ao evitar
amenizações para essa medida excepcional. A mudança então almejada no curso dos
debates quedou-se com a manutenção do quadro posto nessa tendência.
As discussões em
torno do novo projeto se voltavam para a dilatação do prazo de justificativa do
devedor, após a intimação, que passaria de 3 dias para 10 dias, ao mesmo tempo
em que também se discutia a substituição do regime fechado para o regime
semi-aberto. Tais modificações, em verdade, mitigariam a efetividade da prisão
civil. Note-se que, como bem salientam Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo
Talamini, a prisão civil do devedor de alimentos não trata realmente de uma
pena e nem mesmo de um meio executório propriamente dito; é, na verdade, um
meio coercitivo (de feitio excepcional) para compelir o devedor a adimplir. A
iminência de prisão, portanto, teria o condão de instar o devedor ao pagamento,
de modo a evitar ou suspender o cumprimento da prisão3.
Ao fim das
discussões e redação final do projeto, decidiu-se, com acerto, entre o regime
presente e a proposta então em pauta, conservar o método atual da prisão civil
do devedor de alimentos, mantendo-se o prazo de três dias para justificação e a
prisão em regime fechado. As tentativas de amenização do instituto, portanto,
foram rejeitadas.
Conforme visto
acima, diferentemente da prisão civil do depositário infiel, que encontra justo
rechaço na doutrina internacional de direitos humanos, a prisão civil do
devedor de alimentos encontra assento não só na Constituição Federal, mas
também em importantes documentos internacionais, como o Pacto de San José da
Costa Rica. De fato, a prisão civil nesse caso tem um importante objetivo de assegurar
a dignidade do alimentando.
Cumpre, nada
obstante, não aceitar pacificamente, no estágio da sociedade plural e complexa
do século XXI, soluções pretéritas cujo contexto vem se modificando
substancialmente. Nesta senda, importante diferenciar alimentos compensatórios
daqueles alimentos necessários à manutenção da dignidade do credor alimentício.
Por certo que os primeiros não podem ensejar a prisão civil, contudo, os
segundos, reputando como verdadeira a idéia de que a ameaça de prisão civil
gera o adimplemento, se configuram como justo motivo para a decretação da
prisão do devedor.
Ainda mais: o
pretenso caráter garantidor da prisão civil, não se pode, igualmente, deixar de
considerar toda a crítica justa e necessária ao uso da prisão para a resolução
de conflitos interprivados. Em verdade, em qualquer hipótese a pena preventiva
de liberdade, sobretudo no contexto sócio-político brasileiro, é deveras
questionável.
Muito embora no
campo teórico a prisão civil não se encaixe na definição penal, no campo
prático, sobre o devedor de alimentos recairá, tal qual recai sobre o condenado
penal, o mesmo peso de um sistema carcerário inquestionavelmente falido e
violento. Como bem aponta Juarez Cirino dos Santos, “a prisão produz e reproduz
os fenômenos que, segundo o discurso ideológico, objetiva controlar e reduzir.”5
Ademais, note-se que a prisão em si não garante o cumprimento da execução e, ao
considerar aquele que não tem condições de adimplir, a prisão civil apenas
agrava a situação, vez que, estando preso, não poderá levantar fundos para o
pagamento da dívida, e fora da cadeia sofrerá todo o estigma que recai sobre
ex-prisioneiros. De fato, a prisão civil parece reforçar o argumento
criminológico da existência de uma seletividade punitiva intrínseca.
Não se duvida que
a pretensão coercitiva gere os efeitos esperados sobre aquele que não paga
mesmo quando tem condições, e nesse sentido, é certo que a prisão civil cumpre
o papel garantidor de dignidade. No entanto, sobre aquele que não tem
possibilidades financeiras de adimplir com os alimentos, a prisão civil parece
pouco ajudar. Paulo Lôbo é certeiro ao afirmar que a prisão civil é instrumento
a ser usado com prudência e parcimônia, não devendo se prestar a veiculação de
vingança privada ou de agravamento das condições de rendimentos do devedor.
“Preferentemente, deve ser utilizada em caso de reiteração sucessiva de
inadimplemento injustificado.”5
Algumas
experiências do direito comparado apresentam soluções mais efetivas para o
pagamento da dívida de alimentos. Em Portugal, por exemplo, existe um fundo
público de garantia que assegura os alimentandos quando há impossibilidade
momentânea do devedor de alimentos adimplir com sua obrigação. Trata-se de
medida mais efetiva, na medida em que garante o cumprimento da obrigação e
assegura a dignidade do credor alimentício, além de não impor ao devedor de
alimento sanção deveras gravosa.
Em suma, não se
pode negar que o instituto da prisão civil, em seu caráter coercitivo, de
ameaça, é inegavelmente útil e, no mais das vezes, leva o devedor ao
cumprimento da obrigação, sendo que, nesta toada, o projeto de novo CPC acertou
em manter o exíguo prazo de justificação e a ameaça de regime fechado, com o
fito de constranger o devedor ao adimplemento. Para além disso, no entanto, a
crítica à prisão é muito apropriada e o instituto da prisão civil além disso é
inadequado para a situação daquele que, realmente, não pode pagar sua dívida.
Para esses casos, urge construir uma medida mais efetiva, que não só evite
prisões injustas, como, de fato, garanta a execução dos alimentos.
Esse objetivo
arrosta não apenas a regra como também ao senso mínimo de justiça. Eis um olhar
ainda a reclamar a atenção dos juristas comprometidos com o conceito da vida e
não apenas com a vida dos conceitos.
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1 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio
Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2ª edição.
São Paulo: Saraiva, 2008, p. 678.
2 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; SARLET,
Ingo Wolfgang. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 478.
3 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso
avançado de Processo Civil, vol. 2: execução. 11. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 564.
4 SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 3.
ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008, p. 83.
5 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Direito civil: famílias. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 395.
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*Luiz
Edson Fachin é advogado do escritório Fachin Advogados
Associados. Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná
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