sábado, 29 de agosto de 2020

RESUMO. INFORMATIVO 676 DO STJ.

 RESUMO. INFORMATIVO 676 DO STJ.

TERCEIRA TURMA

PROCESSO

HC 572.854-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 04/08/2020, DJe 07/08/2020

RAMO DO DIREITO

DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

TEMA

Casa de acolhimento. Covid-19. Risco de contaminação. Melhor interesse da criança. Manutenção com a família substituta. Possibilidade.

DESTAQUE

O risco de contaminação pela Covid-19 em casa de acolhimento pode justificar a manutenção da criança com a família substituta.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Inicialmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA -, ao preconizar a doutrina da proteção integral (art. 1º da Lei n. 8.069/1990), torna imperativa a observância do melhor interesse da criança.

No caso, não há nenhum perigo na permanência do menor com os impetrantes, que buscam regularizar a guarda provisória, já que existe a possibilidade de se investigar, em paralelo, eventual interesse de família natural extensa em acolher o menor ou até mesmo colocá-lo em outra família adotiva, ao menos até o trânsito final dos processos de guarda e acolhimento.

Esta Corte tem entendimento firmado no sentido de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do infante, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional ou o acolhimento familiar temporário.

Portanto, a criança deve ser protegida de abruptas alterações, sendo certo que no presente momento é preferível mantê-la em uma família que a deseja como membro do que em um abrigo, diante da pandemia da Covid-19 que acomete o mundo.


PROCESSO

REsp 1.869.964-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 16/06/2020, DJe 19/06/2020

RAMO DO DIREITO

DIREITO DO TRABALHO, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR

TEMA

Recuperação judicial. Habilitação de crédito. Sentença trabalhista. Danos morais sofridos pelo empregado. Classificação. Crédito trabalhista.

DESTAQUE

Na recuperação judicial, os créditos decorrentes de condenação por danos morais imposta à recuperanda na Justiça do Trabalho são classificados como trabalhistas.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

O propósito recursal é definir se os créditos decorrentes de condenação por danos morais, em razão de intoxicação alimentar, imposta às recuperandas na Justiça do Trabalho devem ser classificados como trabalhistas ou quirografários.

Verifica-se que a obrigação da recuperanda em reparar o dano causado ao empregado foi a consequência jurídica aplicada pela Justiça especializada em razão do reconhecimento da ilicitude do ato por ela praticado, na condição de empregadora, durante a vigência do contrato de trabalho.

Convém lembrar que há disposições específicas na legislação trabalhista que obrigam a empresa empregadora a garantir a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como a fornecer condições adequadas de higiene e conforto para o desempenho das atividades laborais.

Assim, para a inclusão do empregado no rol dos credores trabalhistas, não importa que a solução da lide que deu origem ao montante a que tem direito dependa do enfrentamento de questões de direito civil, mas sim que o dano tenha ocorrido no desempenho das atividades laborais, no curso da relação de emprego.

Importa consignar que a própria CLT é expressa – em seu art. 449, § 1º – ao dispor que "a totalidade dos salários devidos aos empregados e a totalidade das indenizações a que tiver direito" constituem créditos com o mesmo privilégio.

No particular, destarte, por se tratar de crédito constituído como decorrência direta da inobservância de um dever sanitário a que estava obrigada a recuperanda na condição de empregadora, afigura-se correta – diante da indissociabilidade entre o fato gerador da indenização e a relação trabalhista existente entre as partes – a classificação conforme o disposto no art. 41, I, da LFRE.


QUARTA TURMA

PROCESSO

REsp 1.409.199-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 10/03/2020, DJe 04/08/2020

RAMO DO DIREITO

DIREITO ADMINISTRATIVO, DIREITO PROCESSUAL CIVIL

TEMA

Fundações públicas de direito privado. Custas processuais e emolumentos. Isenção. Não incidência.

DESTAQUE

As fundações públicas de direito privado não fazem jus à isenção das custas processuais.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

No ordenamento jurídico brasileiro, existem três tipos de fundação, quais sejam: fundação de direito privado, instituída por particulares; fundações públicas de direito privado, instituídas pelo Poder Público; e fundações públicas de direito público, que possuem natureza jurídica de autarquia.

O art. 5º, IV, do Decreto-Lei n. 200/1967, com a redação conferida pela Lei n. 7.596/1987, define fundação pública como "entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de uma autorização legislativa, para desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes".

Contudo, o Supremo Tribunal Federal entende que "nem toda fundação instituída pelo Poder Público é fundação de direito privado. As fundações, instituídas pelo Poder Público, que assumem a gestão do serviço estatal e se submetem a regime administrativo previsto, nos Estados membros, por leis estaduais, são fundações de direito público. Tais fundações são espécie do gênero autarquia, aplicando-se a elas a vedação a que alude o § 2º do art. 99 da Constituição Federal".

Em idêntica compreensão acenam os julgados realizados por esta Corte, compreendendo a coexistência, no ordenamento jurídico, de fundações públicas de direito público e fundações públicas de direito privado.

Com efeito, a premissa é de que são pessoas jurídicas de direito público a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, as autarquias e as fundações públicas, leia-se, de direito público, "excluindo-se, portanto, as pessoas jurídicas de direito privado da Administração Pública Indireta: sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações" - estas, fundações públicas de direito privado.

As fundações públicas de direito público são criadas por lei específica, também chamadas de "fundações autárquicas". Em se tratando de fundações públicas de direito privado, uma lei específica deve ser editada autorizando que o Poder Público crie a fundação.

No que se refere às custas processuais, a isenção é devida tão somente às entidades com personalidade de direito público. Dessa forma, para as Fundações Públicas receberem tratamento semelhante ao conferido aos entes da Administração Direta é, necessária natureza jurídica de direito público, que se adquire no momento de sua criação, decorrente da própria lei.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A BOA-FÉ COMO EXCEÇÃO À PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL. COLUNA DO MIGALHAS DE AGOSTO DE 2020

A BOA-FÉ COMO EXCEÇÃO À PROTEÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA LEGAL

 Flávio Tartuce[1]

O instituto do Bem de Família Legal – tratado pela Lei n. 8.009/1990 – constitui um dos mais importantes não só no âmbito do Direito Civil, como também no campo processual, passando a sua análise pela abordagem de questões interdisciplinares, que envolvem ainda outras áreas jurídicas, como o Direito do Trabalho, o Direito Tributário e o Direito Constitucional; o último diante da proteção da moradia como direito fundamental, prevista no art. 6º da Constituição Federal de 1998.

O tratamento legislativo, como se sabe, tem origem nas lições doutrinárias de Álvaro Villaça Azevedo – que sempre merece as nossas homenagens –, ao abordar a categoria do homestead do Direito Norte-Americano em seus estudos e trazer tal instituto ao nosso País, colaborando para a elaboração da norma citada. Também nesse tema, além da união estável, Villaça deixou a sua "marca legislativa", que ficará para a posteridade e para as futuras gerações.

Assim, o art. 1º da Lei n. 8.009/1990 consagra a proteção automática, pela impenhorabilidade, do imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, não respondendo por qualquer dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas exceções previstas na própria lei.

No âmbito da jurisprudência, tem-se interpretado o comando extensivamente em alguns casos, justamente para a tutela da moradia. Por isso, considera-se que também é impenhorável o imóvel onde resida a pessoa solteira (Súmula n. 364 do STJ). Ainda, também é considerado bem de família o único imóvel locado para terceiros, cujo aluguel é utilizado para a locação de outro imóvel, este sim destinado à moradia (Súmula n. 486 do STJ). Na última situação, tem-se o que denomino como bem de família indireto.

A respeito dos bens que podem ser penhorados ou não, alguns acessórios do imóvel, tido como bem principal, são excluídos da proteção. Como consta do art. 2º da Lei n. 8.009/1990, "excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos". Lembro que, por força do art. 833, inc. II, do CPC/2015, são impenhoráveis os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida. Constata-se, portanto, que a lei especial escolheu alguns bens como excluídos do padrão médio de vida do devedor.

Quanto às exceções à impenhorabilidade do próprio imóvel, estão previstas no art. 3º da norma em estudo. Pontue-se que o seu inciso I, relativo ao empregado doméstico, foi expressamente revogado pela Lei Complementar n. 150/2015, restando apenas seis exceções, todas elas com polêmicas na devida análise prática, notadamente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (sobre o tema, ver: TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 1, p. 380-384).

 A primeira exceção diz respeito ao crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato. A segunda é relativa aos alimentos familiares, resguardados os direitos, sobre o bem imóvel, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida. A terceira exceção abrange a cobrança de impostos, predial ou territorial – caso do IPTU que recaia sobre o próprio imóvel –, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar, o que alcança as dívidas condominiais, assim como outras obrigações propter rem. A quarta possibilidade de quebra da impenhorabilidade é relativa à execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, nos seus interesses conjuntos. Também se admite a penhora no caso de o imóvel ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. Por fim, apesar de persistente o debate da sua inconstitucionalidade, admite-se que a proteção do bem de família seja afastada no caso de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação de imóvel urbano, regulado pela Lei n. 8.245/1991.

Sobre a última previsão, sabe-se que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2006, julgou pela sua constitucionalidade (RE 407.688/SP). Diante da insistência de alguns Tribunais Estaduais em aderirem ao entendimento da inconstitucionalidade – que havia sido adotado em decisão monocrática anterior, do Ministro Carlos Velloso (RE 352.940/SP) –, em outubro de 2015, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 549 da Corte, segundo a qual “é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”. De toda sorte, a demonstrar toda a divergência a respeito da exceção, no ano de 2018, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal voltou a aderir à tese da inconstitucionalidade, em se tratando de locação não residencial, em que a proteção da moradia do credor não está presente, mesmo que de forma indireta (STF, RE 605.709/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Red. p/ Ac. Min. Rosa Weber, j. 12.06.2018, Informativo n. 906 do STF). Toda essa variação diz respeito a uma norma que nunca foi de pacífica aceitação, a gerar instabilidade e insegurança.

Além desse rol de exceções, o Superior Tribunal de Justiça tem concluído que a boa-fé, notadamente a de natureza objetiva, deve ser levada em conta na análise da tutela do bem de família, o que representaria uma outra exceção à estudada impenhorabilidade.

De início, em julgado do ano de 2012, entendeu a Corte que a impenhorabilidade não prevalece nas hipóteses em que o devedor atua de má-fé, alienando todos os seus bens e fazendo restar apenas o imóvel de residência. Conforme voto da Ministra Nancy Andrighi, “não há, em nosso sistema jurídico, norma que possa ser interpretada de modo apartado aos cânones da boa-fé. Todas as disposições jurídicas, notadamente as que confiram excepcionais proteções, como ocorre com a Lei 8.009/1990, só têm sentido se efetivamente protegerem as pessoas que se encontram na condição prevista pelo legislador. Permitir que uma clara fraude seja perpetrada sob a sombra de uma disposição legal protetiva implica, ao mesmo tempo, promover uma injustiça na situação concreta e enfraquecer, de maneira global, todo o sistema especial de proteção objetivado pelo legislador” (STJ, REsp 1.299.580/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20.03.2012). A premissa tem sido confirmada em decisões posteriores, uma vez que “deve ser afastada a impenhorabilidade do único imóvel pertencente à família na hipótese em que os devedores, com o objetivo de proteger o seu patrimônio, doem em fraude à execução o bem a seu filho menor impúbere após serem intimados para o cumprimento espontâneo da sentença exequenda” (STJ, REsp 1.364.509/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.06.2014).

Ou, ainda mais recentemente: “a regra de impenhorabilidade do bem de família trazida pela Lei 8.009/90 deve ser examinada à luz do princípio da boa-fé objetiva, que, além de incidir em todas as relações jurídicas, constitui diretriz interpretativa para as normas do sistema jurídico pátrio. Nesse contexto, caracterizada fraude à execução na alienação do único imóvel dos executados, em evidente abuso de direito e má-fé, afasta-se a norma protetiva do bem de família, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação dos devedores em desconformidade com o cânone da boa-fé objetiva. Precedentes” (STJ, REsp 1.575.243/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.03.2018, DJe 02.04.2018).

Além dessa reiteração de julgamentos na Terceira Turma da Corte, na sua Quarta Turma, de 2020, destaco o acórdão que admitiu que o bem de família seja objeto de alienação fiduciária em garantia, hipótese em que não se admite a alegação da impenhorabilidade, novamente com base no argumento da quebra da boa-fé. Como consta dos seus termos, como regra geral, "a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada (Ag. Rg. nos EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 14.03.2011, DJe 18.03.2011)". Todavia, ainda nos termos do decisum, "à luz da jurisprudência dominante das Turmas de Direito Privado: (a) a proteção conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (b) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação do princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico. No caso dos autos, não há como afastar a validade do acordo de vontades firmado entre as partes, inexistindo lastro para excluir os efeitos do pacta sunt servanda sobre o contrato acessório de alienação fiduciária em garantia, afigurando-se impositiva, portanto, a manutenção do acórdão recorrido no ponto, ainda que por fundamento diverso" (STJ, REsp 1.595.832/SC, Quarta Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 29.10.2019, DJe 04.02.2020).

Como se observa, a Corte Superior, em suas duas Turmas de Direito Privado, tem entendido reiteradamente que a boa-fé objetiva deve ser levada em conta para a análise da impenhorabilidade ou não do bem de família legal. Como se pode observar, os acórdãos abrem mais uma exceção, além do rol previsto no art. 3º da Lei n. 8.009/1990, concebido como meramente exemplificativo ou numerus apertus.

As decisões trazem uma interessante análise, prestigiando a socialidade e a eticidade, dois dos princípios do Código Civil de 2002. Também efetivam a boa-fé objetiva, argumento que tem prevalecido em muitos debates existentes no âmbito do Direito Privado. De todo modo, encontram obstáculo na antiga máxima segundo a qual as normas de exceção não admitem interpretação extensiva; além de sacrificar a proteção da moradia, de índole constitucional. Eis, portanto, uma questão que envolve uma difícil escolha aos julgadores e juristas. De todo modo, fico com as segundas afirmações e com a tese de que o rol do art. 3º da Lei n. 8.009/1990 é taxativo ou numerus clausus.


[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

sábado, 15 de agosto de 2020

RESUMO. INFORMATIVO 675 DO STJ.

 RESUMO. INFORMATIVO 675 DO STJ.

SEGUNDA SEÇÃO

PROCESSO

EAREsp 226.991-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 10/06/2020, DJe 01/07/2020

RAMO DO DIREITO

DIREITO CIVIL

TEMA

Inventário. Partilha amigável. Inclusão de terceiro. Violação à ordem vocacional. Nulidade absoluta. Prescrição vintenária. Art 177 do CC/1916.

DESTAQUE

Sob a égide do Código de Civil de 1916, o prazo prescricional para propor ação de nulidade de partilha amigável em que se incluiu no inventário pessoa incapaz de suceder é de vinte anos.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

A questão controvertida, ainda sob a égide do Código Civil de 1916, consiste em definir o prazo prescricional para se propor ação de nulidade de partilha amigável homologada em juízo, na qual se incluiu como herdeiro terceiro incapaz de suceder por lhe faltar atributos para tanto, na forma da ordem de vocação hereditária.

A partilha, como todo ato jurídico, pode ser absolutamente nula ou meramente anulável (vício relativo e sanável por natureza). Não remanescem dúvidas de que quem não possui status de herdeiro, porém se beneficia da partilha como se o fosse, participa de ato jurídico nulo na forma prescrita no art. 145, inciso I, do Código Civil de 1916. A inclusão no inventário de pessoa que não é herdeira torna a partilha nula de pleno direito, porquanto contrária à ordem hereditária prevista na norma jurídica, a cujo respeito as partes não podem transigir ou renunciar.

É irrefutável que tal situação viola a ordem de vocação hereditária, que configura verdadeiro chamado dos legitimados para suceder os direitos do autor da herança, seja por ordem legal (sucessão legítima, cuja ordem preferencial tem caráter excludente, em que parentes mais próximos excluem os mais remotos, salvo o direito de representação), ou ainda por meio testamentário (em que disposições de última vontade do falecido são estabelecidas da parte disponível da massa).

Assim, a preterição ou a inclusão equivocada de herdeiro em formal de partilha merecem tratamento equânime por configurarem situações análogas que igualmente afrontam à ordem da vocação hereditária, submetendo-se à mesma regra prescricional prevista no art. 177 do Código Civil de 1916, qual seja, o prazo vintenário, desde que seja esse o vigente à época da abertura da sucessão.

TERCEIRA TURMA

PROCESSO

REsp 1.803.627-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por maioria, julgado em 23/06/2020, DJe 01/07/2020

RAMO DO DIREITO

DIREITO PREVIDENCIÁRIO, DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL

TEMA

Previdência complementar. Restituição de contribuições indevidas. Existência de causa jurídica para as contribuições. Prazo prescrional decenal. Art. 205, caput, do CC/2002.

DESTAQUE

O prazo prescricional aplicável à pretensão de restituição de contribuições descontadas indevidamente dos beneficiários de contrato de previdência complementar é de dez anos.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Cumpre salientar que, até recentemente, era possível afirmar que a jurisprudência de ambas as Turmas da Seção de Direito Privado do STJ havia se pacificado no sentido de que a pretensão de repetição de contribuições vertidas para plano de previdência complementar teria por fundamento o enriquecimento sem causa da entidade de previdência, sujeitando-se, portanto, ao prazo de prescricional específico do art. 206, § 3º, IV, do Código Civil de 2002.

No entanto, apesar da jurisprudência pacífica da Segunda Seção no sentido da prescrição trienal, a Corte Especial deste Tribunal Superior firmou entendimento pela prescrição vintenária, na forma estabelecida no art. 177 do Código Civil de 1916, na hipótese de restituição de cobrança indevida de serviço de telefonia (EREsp 1.523.744/RS).

No referido julgado, o fundamento para se afastar a prescrição trienal é a subsidiariedade da ação de enriquecimento sem causa, que somente seria cabível quando o indébito não tivesse "causa jurídica". Na hipótese de cobrança indevida por serviço de telefonia, o enriquecimento tem uma causa jurídica, que é a prévia relação contratual entre as partes.

O caso em análise, embora diga respeito à previdência complementar, guarda estreita semelhança com o referido precedente, pois, no curso de um plano de benefícios houve a cobrança indevida de contribuições, cuja restituição se pleiteia.

Desse modo, a conclusão que se impõe é também no sentido da incidência da prescrição decenal, de acordo com o previsto no art. 205 do Código Civil de 2002, pois o enriquecimento da entidade de previdência tinha uma causa jurídica, que era a prévia relação contratual com os participantes do plano de benefícios não sendo hipótese, portanto, de enriquecimento sem causa, que conduziria à prescrição trienal.


PROCESSO

REsp 1.803.250-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Rel. Acd. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por maioria, julgado em 23/06/2020, DJe 01/07/2020

RAMO DO DIREITO

DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR

TEMA

Execução. Dívida particular de sócio. Penhora. Quotas sociais. Sociedade em recuperação judicial. Possibilidade.

DESTAQUE

É possível a penhora de quotas sociais de sócio por dívida particular por ele contraída, ainda que de sociedade empresária em recuperação judicial.

INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR

Nos termos do artigo 789 do CPC/2015, o devedor responde com todos os seus bens, entre os quais se incluem as quotas que detiver em sociedade simples ou empresária, por suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei. Nesse contexto, somente é possível obstar a penhora e a alienação das quotas sociais se houver restrição legal.

Não há, a princípio, vedação para a penhora de quotas sociais de sociedade empresária em recuperação judicial, quando muito a proibição alcançaria a liquidação da quota, mas essa é apenas uma entre outras situações possíveis a partir da efetivação da penhora.

Conforme se verifica do artigo 861 do CPC/2015, uma vez penhorada a quota, ela deve ser oferecida aos demais sócios que, buscando evitar a liquidação ou o ingresso de terceiros no quadro social, podem adquiri-las.

Inexistindo interesse dos demais sócios, a possibilidade de aquisição passa para a sociedade, o que, no caso da recuperação judicial, não se mostra viável, já que, a princípio, não há saldo de lucros ou reservas disponíveis, nem é possível a alienação de bens do ativo permanente para cumprir a obrigação sem autorização judicial.

É de se considerar, porém, que o artigo 861, § 4º, inciso II, do CPC/2015 possibilita o alongamento do prazo para o pagamento do valor relativo à quota nas hipóteses em que houver risco à estabilidade da sociedade. Dessa forma, a depender da fase em que a recuperação judicial estiver, o juízo pode ampliar o prazo para o pagamento, aguardando o seu encerramento.

Assim, eventual interferência da penhora de quota social na recuperação judicial da empresa deve ser analisada com o decorrer da execução, não podendo ser vedada desde logo, podendo os juízes (da execução e da recuperação judicial) se valerem do instituto da cooperação de que trata do artigo 69 do CPC/2015.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Escritura Pública de Dispensa de Colação Pós-Doação. Artigo de Carlos Eduardo Elias de Oliveira.

 

Escritura Pública de Dispensa de Colação Pós-Doação. 


Carlos E. Elias de Oliveira

Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB –, na Fundação Escola Superior do MPDFT – FESMPDFT e em outras instituições em SP, GO e DF. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil (único aprovado no concurso de 2012). Advogado/Parecerista. Ex-Advogado da União. Ex-assessor de ministro STJ. Doutorando, mestre e bacharel em Direito pela UnB (1º lugar em Direito no vestibular 1º/2002 da UnB).

Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro

E-mail: carloseliasdeoliveira@yahoo.com.br)

Data: 10 de agosto de 2020

1. INTRODUÇÃO

Tabelião de notas pode ou não lavrar escritura pública dispensando um filho de colacionar uma doação de um imóvel ocorrida há muitos anos atrás? Essa escritura precisaria ser averbada na matrícula do imóvel?

A questão tem utilidade prática: vários pais, depois de doarem bens a filhos de anteriores relacionamentos com a crença de que eles não precisariam “devolver” essas liberalidades ao futuro espólio, descobrem a verdade e, assim, pretendem afastar esse dever de colação.

Objetivamos tratar dessas questões neste artigo por se tratar de questão comum no quotidiano dos cartórios.

2. PROTEÇÃO DA “LEGÍTIMA”

Quem tem ascendente, cônjuge ou descendente (herdeiros necessários) só pode dispor, por testamento, de metade do seus bens (parte disponível), pois a outra metade – que é chamada de “legítima” – pertence, de pleno direito, a esses herdeiros necessários (arts. 1.789 e 1.845, CC). Em poucas palavras, se tenho um filho, não posso deixar, por testamento, 100% dos meus bens a um amigo. Só posso deixar, no máximo, 50%.

Daí se indaga: posso “driblar” essa proibição fazendo, em vida, uma doação de 100% dos meus bens a um amigo?

A resposta é não! O nosso ordenamento censura essa tentava de “burla” à legítima, estabelecendo que essa doação será nula no que exceder 50% do meu patrimônio no momento da doação. Trata-se do art. 549 do CC, que considera nula a chamada “doação inoficiosa”. Não é dela, porém, que vamos tratar neste artigo. Nosso foco será a doação a descendentes.

De qualquer forma, é certo que a “legítima” dos herdeiros necessários é protegida diante de terceiros, seja por atos causa mortis (testamento), seja por atos inter vivos (doação).

A proteção da legítima não é apenas diante de terceiros, mas também perante outros herdeiros necessários.

Há pais que gostariam de, por diversos motivos, prestigiar patrimonialmente mais um filho do que outro. Pergunta-se: poderia um pai solteiro deixar, por testamento, 100% dos seus bens a esse filho predileto? A resposta é não, pois o testador só poderia dispor de 50% dos seus bens em respeito à legítima dos herdeiros necessários. No exemplo, o testador poderia deixar apenas 50% dos seus bens ao filho predileto, ao passo que a outra metade seria rateada entre todos os seus filhos, com inclusão do filho favorito. O filho favorito, além de receber metade do patrimônio do pai por sucessão testamentária, receberá ainda um quinhão da outra metade por sucessão hereditária legítima.

Insistente, talvez esse pai pense em tentar “burlar” essa proibição de testar sobre 100% dos seus bens por meio de uma doação. Indaga-se: o pai - que tenha uma renda mensal suficiente para sua sobrevivência[1] - poderia doar 100% dos bens a um filho favorito, de maneira que, com sua morte, nada sobraria a ser partilhado em favor dos outros filhos malquistos?

Essa pergunta nos leva ao coração deste artigo, que é a figura da antecipação de herança do art. 544 do CC e da colação (art. 2.002 e ss do CC).

3. DOAÇÃO COMO ANTECIPAÇÃO DE HERANÇA E COLAÇÃO

 

Em regra, presume-se que doação feita a descendente ou a cônjuge é apenas uma antecipação de herança. Por isso, como regra geral, nesses casos, há dever de o donatário colacionar a liberalidade recebida quando da morte do doador, para efeito de igualar o seu quinhão hereditário com o do viúvo ou com o dos demais descendentes - mesmo os nascidos posteriormente ou havidos de outros relacionamentos do de cujus (irmãos bilaterais ou unilaterais)[2] (arts. 544, 2.002 e 2.003, CC). A ideia é a de que, ao final da sucessão hereditária, todos os herdeiros tenham recebido patrimônio de valor igual, com inclusão das doações antecipadas em vida pelo de cujus[3].

Suponha, por exemplo, que João tem dois apartamentos de igual valor e dois filhos. Caso ele decida doar um apartamento a um dos filhos e, logo em seguida, faleça, o outro apartamento irá, por sucessão hereditária, apenas ao outro filho, visto que um apartamento já foi antecipado ao primeiro filho (que terá de trazer esse bem à colação para igualar sua porção da legítima à dos demais herdeiros necessários). Desse modo, cada um dos filhos ficará, ao final de tudo, com um apartamento.

O Professor Pablo Stolze, em uma das obras brasileiras mais importantes sobre doação, após olhar para a figura da colação em vários países (Itália, Argentina, Cabo Verde, Espanha e Portugal), afirma que colação pode ser definida como “o ato jurídico pelo qual o herdeiro/donatário leva ao inventário, em conferência, o valor do bem doado por ascendente seu, a fim de resguardar a legítima dos demais herdeiros necessários, mediante reposição do acervo”[4].

A regra geral acima comporta uma exceção: a existência de cláusula expressa dispensando o filho donatário de colacionar a liberalidade. Isso, porém, só será admitido se, no momento da liberalidade, o bem doado não ultrapassar 50% do patrimônio total (art. 2.005, caput, do CC). A dispensa de colação não pode ser presumida ou tácita, salvo no caso do parágrafo único do art. 2.005 do CC! Tem de ser expressa e por escrito[5]. Nas palavras do Professor Flávio Tartuce, “o ato de dispensa não pode ser presumido, devendo ser expresso e inequívoco”[6].

No exemplo acima, se João tivesse doado um dos apartamentos a um dos filhos com cláusula expressa de dispensa de colação, a situação seria diferente. Esse filho seria prestigiado: além de não ter de colacionar esse apartamento, ainda teria direito à metade do outro apartamento por sucessão causa mortis.

Há uma exceção em que a dispensa de colação é presumida (e, portanto, não depende de previsão expressa): a hipótese em que, no momento da liberalidade, o donatário não seria chamado a suceder (art. 2.005, parágrafo único, CC). É o caso, por exemplo, de uma doação feita a um neto quando os filhos estavam vivos. Nessa hipótese, presume-se a dispensa de colação, pois o neto não iria concorrer com os filhos na eventual sucessão causa mortis do doador. Outra exceção é a doação feita a cônjuge antes do CC/2002, pois, como ele não era herdeiro necessário à época do CC/1916, não havia dever de colação, tudo conforme já decidiu o STJ[7].

4. DISPENSA DE COLAÇÃO PÓS-DOAÇÃO

A dispensa de colação pode ser feita em ato posterior à doação? O tabelião de notas pode lavrar escritura pública para dispensar de um filho de colacionar um imóvel doado há muitos anos atrás?

Entendemos que sim, desde que respeitada a parte disponível no momento dessa dispensa posterior[8]. O STJ, analisando caso sob a ótica do CC/1916, já se manifestou nesse sentido[9], cenário que deve ser estendido ao ambiente do CC/2002 diante da similaridade do regime jurídico.

A dispensa de colação pode ser feita a qualquer momento após a data da doação, desde que, no momento dessa dispensa, o valor da coisa doada (no valor de mercado de então) não exceda a 50% do patrimônio líquido do doador. Calcular-se-á a parte disponível de acordo com o patrimônio do doador no momento do ato de dispensa, e não no da doação.

Basta que esse ato seja feito de acordo com a forma legal exigida para o contrato de doação: se a doação exigia escritura pública por ter envolvido imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, a dispensa pós-doação também deverá seguir essa forma pública. Não batizaríamos essa escritura de “re-ratificação da doação” - tal como se deu em caso analisado pelo STJ[10] -, pois não se está corrigindo (retificando) nada, mas apenas se abrindo mão de um direito que fora “retido” pelo doador em favor dos demais herdeiros necessários. Seja como for, nominar a escritura de “re-ratificação” não geraria nulidade, pois o que importa é o conteúdo do negócio, e não o seu envelope formal.

Há dois motivos a respaldar a dispensa de colação pós-doação.

O primeiro é o de que o art. 2.006 do CC, ao autorizar a dispensa de colação tanto em testamento (que só terá eficácia com a morte do testador) quanto no ato da liberalidade, deixou cronologicamente aberto ao doador a possibilidade de, em vida, dispensar a colação a qualquer momento. Afinal de contas, quem pode o mais pode o menos: se o doador pode dispensar a colação após a sua morte por meio de testamento, com muito mais razão ele o pode fazer em vida por meio de negócio jurídico específico.

O segundo é o princípio da disponibilidade, segundo o qual o titular de um direito pode dispor livremente dele. O doador, ao fazer uma doação sem dispensa de colação, reteve, para si (mas em favor dos demais herdeiros necessários), parte um direito cujo exercício será, como a sua morte, transmitido aos seus herdeiros necessários. Enquanto titular desse direito, o doador pode dispor dele.

A solução acima respeita a legítima e se concilia com o direito do doador de dispor dos seus bens em vida. Ela será útil para os casos de o doador ter esquecido de colocar a cláusula de dispensa ou de o doador, posteriormente à doação, ter enriquecido e ter passado a ter condições de respeitar a legítima (metade do seu patrimônio).

Uma cautela convém ser adotada na lavratura do instrumento de dispensa pós-doação: catalogar bens (com as devidas provas) e dívidas a ponto de demonstrar que o patrimônio líquido do doador é confortável para esse ato. Assim, por exemplo, se o apartamento doado se estimou em um milhão de reais, convém o doador demonstrar que, no mínimo, o seu patrimônio líquido atual é também de um milhão, de modo a que a dispensa da colação não está exorbitando a sua parte disponível.

Eventual empobrecimento posterior do doador é irrelevante, pois a validade e a eficácia da dispensa de colação não levam em conta a sua situação patrimonial futura. Sob essa ótica, no exemplo acima, se o doador vier a falecer em plena miséria, o filho que recebeu o apartamento de um milhão de reais com posterior dispensa de colação ficará em condição vantajosa ao seu irmão, que nada receberá a título de herança.

Alerta-se para o fato de que é fundamental que, no ato da dispensa da colação, sejam levadas em conta todas as doações feitas ao filho, estimando o valor total de todas elas ao tempo da dispensa. Entendimento contrário chancelaria uma burla ao regime da legítima por meio de doações sucessivas a um filho predileto.

Se, por exemplo, um pai doou, em momentos diferentes, dois imóveis de valores iguais a um filho preferido, caso esse pai queira dispensar a colação sobre esses dois imóveis, ele deverá ter, no mínimo, um patrimônio líquido correspondente a esses dois imóveis, tudo com vistas a proteger a legítima.

Se, no exemplo acima, o pai nada tiver de patrimônio, ele poderá dispensar a colação apenas em relação a um dos imóveis doados, pois o outro, como terá de ser colacionado, resguardará a legítima dos demais herdeiros necessários.

Em arremate, a dispensa de colação pós-doação depende de consentimento do donatário, pois ninguém é obrigado a receber liberalidades. A dispensa de colação pós-doação é uma liberalidade e, como tal, aperfeiçoa-se por um negócio jurídico bilateral, à semelhança do que se dá com outras liberalidades (como a doação e a remissão de dívidas[11]). Nesse sentido, a própria dispensa de colação por meio de testamento na forma do art. 2.006 do CC[12] dependerá de aceitação do sucessor testamentário.

O consentimento do donatário poderá se dar em instrumento diverso do utilizado pelo doador para a dispensa pós-doação, mas, nesse caso, o cálculo da legítima deverá levar em conta o momento em que se aperfeiçoou esse negócio jurídico complementar, ou seja, no momento da manifestação do consentimento do donatário.

5. CONCLUSÃO

É cabível a dispensa da colação pós-doação, desde que: (1) seja respeitada a legítima, que será calculada no momento dessa dispensa de colação, a qual se aperfeiçoa com a manifestação de vontade tanto do doador quanto do donatário; (2) seja formalizada pela forma exigida por lei para a doação; e (3) haja consentimento do donatário.

Convém que, no ato da dispensa pós-doação, seja demonstrado que o patrimônio líquido do doador é suficiente para evitar desconfortos probatórios no futuro.

Além disso, na hipótese de ter havido doações sucessivas, todas elas deverão ser avaliadas em conjunto de acordo com o seu valor ao tempo da dispensa de colação, tudo a fim de evitar burlas à proteção da legítima.


[1] Isso afastaria a vedação à doação universal anunciada no art. 548 do CC (“art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador”).

[2] STJ, REsp 1298864/SP, 3ª Turma, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 29/05/2015; REsp 730.483/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJ 20/06/2005.

[3] Temos que o fato de a regra geral ser a presunção de haver o dever de colação é um entre os vários exemplos do que chamamos de princípio da proteção simplificada do agraciado (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O princípio da proteção simplificada do luxo, o princípio da proteção simplificada do agraciado e a responsabilidade civil do generoso. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisa/CONLEG/Senado, Dezembro/2018. Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em. 4 de dezembro de 2018.

[4] GAGLIANO, Pablo Stolze. O Contrato de Doação: análise crítica do atual Sistema jurídico e os seus efeitos no Direito de Família e das Sucessões. São Paulo: Editora Saraiva, 2007, pp. 55-57

[5] STJ, REsp 730.483/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJ 20/06/2005.

[6] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 666.

[7] “A doação feita ao cônjuge antes da vigência do Código Civil de 2002 dispensa a colação do bem doado, uma vez que, na legislação revogada, o cônjuge não detinha a condição de herdeiro necessário.” (STJ, REsp 1346324/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, DJe 02/12/2014).

[8] Os sempre geniais Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves entendem diversamente, afirmando que a dispensa “do dever de colação tem de ser expressa e estar contida no próprio instrumento de doação, não podendo ser inserida posteriormente” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: contratos, teoria geral e contratos em espécie. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, p. 886). Os nobres juristas fazem citação ao REsp 730.483/MG, mas é preciso realçar que esse julgado não discutia o momento em que a dispensa de colação deve ser manifestada (se no ato da doação ou se posteriormente), mas apenas tratava da vedação de se reputar implícita essa cláusula de dispensa. Assim, na verdade, o que os preclaros civilistas não quiseram dizer que o STJ já tenha decidido pela vedação de dispensa de colação pós-doação, até porque, na verdade, há precedente contrário daquela Corte (STJ, REsp 440.128/AM, 3ª Turma, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 01/09/2003).

[9] “Colação. Escritura de ratificação. Possibilidade. Manifestação de vontade do autor da herança. Preservação. Artigos 82, 148, 149 e 1.789 do Código Civil.

1. Realizada a escritura de ratificação das doações, que não ultrapassaram o limite da parte disponível, dispensando a colação, tudo compatível com a realidade vivida entre doador e donatário, pai e filho, não deve ser maculada a vontade do autor da herança.

2. A ratificação retroage à data das doações, preenchido, assim, o requisito do art. 1.789 do Código Civil.

3. Recurso especial conhecido e provido.

(STJ, REsp 440.128/AM, 3ª Turma, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 01/09/2003).

[10] STJ, REsp 440.128/AM, 3ª Turma, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 01/09/2003.

[11] Art. 385 do CC: “A remissão da dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação, mas sem prejuízo de terceiro”.

[12] Art. 2.006 do CC: “A dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade”.