quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

O INÍCIO DO PRAZO PARA A AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA. POLÊMICA. COLUNA DO MIGALHAS DE JANEIRO DE 2020.

O INÍCIO DO PRAZO PARA A AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA. POLÊMICA
Flávio Tartuce[1]
Como inovação festejada, o Código Civil de 2002 passou a tratar da ação de petição de herança (petitio hereditatis) entre os seus arts. 1.824 a 1.828, que é a demanda que visa a incluir um herdeiro na herança, mesmo após a sua divisão. Na dicção do primeiro comando citado, o herdeiro pode, nesta ação, demandar o reconhecimento de seu direito sucessório, para obter a restituição da herança, ou de parte dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua.
Em complemento, nos termos do dispositivo seguinte, a ação de petição de herança, ainda que exercida por um só dos herdeiros, poderá compreender todos os bens hereditários, tendo caráter universal (art. 1.825 do CC/2002). A figura é admitida há tempos pela jurisprudência brasileira, tendo o Supremo Tribunal Federal editado, no ano de 1963, a Súmula 149, que envolve o tema central deste artigo.
Conforme explicam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, trata-se de uma ação real, eis que, por força do art. 80, inc. II, do CC/2002, o direito à sucessão aberta constitui um imóvel por determinação legal (Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005, p. 936). Na mesma linha, como se retira de importante julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, “a ação de petição de herança é uma ação de natureza real, para a qual só tem legitimidade ativa aquele que já é herdeiro desde antes do ajuizamento, e através da qual ele pode buscar ver reconhecido seu direito hereditário sobre bem específico que entende deveria integrar o espólio, mas que está em poder de outrem” (TJRS, Apelação Cível n. 36960-28.2012.8.21.7000, 8.ª Câmara Cível, Santa Rosa, Rel. Des. Rui Portanova, j. 18.10.2012, DJERS 25.10.2012).
Por ser uma ação real, e também universal, a petição de herança não se confunde com a ação reivindicatória, que visa a um bem específico. Aplicando tal forma de pensar, consta de aresto do Superior Tribunal de Justiça que “ocorre turbação à posse de bem imóvel quando coerdeiros reconhecidos em ação de petição de herança molestam a posse anterior de outros herdeiros que exerciam tal direito com base em formal de partilha. Isso porque a ação de petição de herança tem natureza universal, pela qual o autor pretende o reconhecimento de seu direito sucessório, o recebimento da fração correspondente da herança, e não a restituição de bens específicos. Isso é o que a diferencia de uma ação reivindicatória, de natureza singular, que tem por objeto bens particularmente considerados. Desse modo, é equivocado concluir que, por força da ação de petição de herança, foram transmitidos o domínio e a posse dos bens herdados, quando, em verdade, transferiu-se o direito à propriedade e a posse comum da universalidade e não dos bens singularmente considerados. Por força da procedência da ação de petição de herança, os herdeiros que exerciam a posse anterior ficam obrigados a devolver, no plano jurídico e não fático, os bens do acervo hereditário, que voltam a ser de todos em comunhão até que nova partilha se realize” (STJ, REsp 1244118/SC, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.10.2013, DJe 28.10.2013).
A respeito do prazo para a propositura dessa demanda, a citada e antiga Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal estabelece que “é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. O fundamento da prescrição é relacionado ao fato de a herança envolver direitos subjetivos de cunho patrimonial, que são submetidos a prazos prescricionais. Além disso, tem esteio na sempre alegada segurança jurídica, comumente associada à prescrição.
O entendimento sumulado é ainda considerado majoritário, para todos os fins, teóricos e práticos, inclusive na doutrina brasileira. Nesse contexto, na vigência do CC/1916, a ação de petição de herança estaria sujeita ao prazo geral de prescrição, que era de vinte anos, conforme o seu art. 177. Na vigência do Código Civil de 2002, deve ser aplicado o prazo geral de dez anos, previsto no seu art. 205. Exatamente nessa linha, do Superior Tribunal de Justiça extrai-se o seguinte: "Controvérsia doutrinária acerca da prescritibilidade da pretensão de petição de herança que restou superada na jurisprudência com a edição pelo STF da Súmula n. 149. (...). Ausência de previsão, tanto no Código Civil de 2002, como no Código Civil de 1916, de prazo prescricional específico para o ajuizamento da ação de petição de herança, sujeitando-se, portanto, ao prazo geral de prescrição previsto em cada codificação civil: vinte anos e dez anos, respectivamente, conforme previsto no art. 177 do CC/16 e no art. 205 do CC/2002" (STJ, REsp 1.368.677/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 05.12.2017, DJe 15.02.2018). Voltarei a esse acórdão mais à frente.
Em ambas as hipóteses, entende-se desde os tempos remotos que o prazo tem início da abertura da sucessão, como regra, que se dá pela morte daquele de quem se busca a herança (STF, RE 741.00/SE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eloy da Rocha, j. 03.10.1973, DJU 02.01.1974). Todavia, a questão não é pacífica, pois alguns acórdãos superiores mais recentes trazem o julgamento de que o prazo deve ter início do reconhecimento do vínculo parental em demanda própria, ou seja, do trânsito em julgado da sentença na ação de investigação de paternidade, tema principal deste texto. Como é notório, na grande maioria dos casos concretos, a petição de herança está cumulada com esse pedido relativo à filiação.
Nessa linha, em 2016, surgiu importante julgamento do Superior Tribunal de Justiça que representa uma quebra dessa primeira corrente, tida como clássica, concluindo que o prazo de prescrição da ação de petição de herança deve correr do trânsito em julgado da sentença da ação de reconhecimento de paternidade. Vejamos a sua publicação, constante do Informativo n. 583 do Tribunal da Cidadania:
“Na hipótese em que ação de investigação de paternidade post mortem tenha sido ajuizada após o trânsito em julgado da decisão de partilha de bens deixados pelo de cujus, o termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da decisão que reconheceu a paternidade, e não o trânsito em julgado da sentença que julgou a ação de inventário. A petição de herança, objeto dos arts. 1.824 a 1.828 do CC, é ação a ser proposta por herdeiro para o reconhecimento de direito sucessório ou a restituição da universalidade de bens ou de quota ideal da herança da qual não participou. Trata-se de ação fundamental para que um herdeiro preterido possa reivindicar a totalidade ou parte do acervo hereditário, sendo movida em desfavor do detentor da herança, de modo que seja promovida nova partilha dos bens. A teor do que dispõe o art. 189 do CC, a fluência do prazo prescricional, mais propriamente no tocante ao direito de ação, somente surge quando há violação do direito subjetivo alegado. Assim, conforme entendimento doutrinário, não há falar em petição de herança enquanto não se der a confirmação da paternidade. Dessa forma, conclui-se que o termo inicial para o ajuizamento da ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, quando, em síntese, confirma-se a condição de herdeiro” (STJ, REsp 1.475.759/DF, Terceira Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17.05.2016, DJe 20.05.2016).
Em 2018, essa mesma posição foi confirmada pela mesma Terceira Turma do Tribunal, no aresto há pouco mencionado e que cita a teoria da actio nata subjetiva, segundo a qual o prazo prescricional deve ter início do conhecimento da lesão ao direito subjetivo. Como consta do trecho final da sua ementa, "nas hipóteses de reconhecimento ‘post mortem’ da paternidade, o prazo para o herdeiro preterido buscar a nulidade da partilha e reivindicar a sua parte na herança só se inicia a partir do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, quando resta confirmada a sua condição de herdeiro. Precedentes específicos desta Terceira do STJ. Superação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado quando ainda detinha competência para o julgamento de matérias infraconstitucionais, no sentido de que o prazo prescricional da ação de petição de herança corria da abertura da sucessão do pretendido pai, seguindo a exegese do art. 1.572 do Código Civil de 1916. Aplicação da teoria da ‘actio nata’" (STJ, REsp 1.368.677/MG, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 05.12.2017, DJe 15.02.2018). Essa forma de julgar consubstancia uma visão que pode ser chamada de contemporânea.
No final de 2019, todavia, instaurou-se divergência na atual composição do Superior Tribunal de Justiça, pois surgiu outro acórdão, da sua Quarta Turma, voltando a aplicar a visão clássica, de que o prazo prescricional deve ter início da abertura da sucessão. O julgamento se deu nos autos do Agravo no Recurso Especial n. 479.648/MS, em dezembro de 2019. Conforme notícias retiradas do site do Tribunal, uma vez que a decisão ainda não foi publicada quando da elaboração deste texto, o relator, Ministro Raul Araújo, seguiu os fundamentos apresentados pela Ministra Isabel Gallotti, na linha de que o entendimento de que o trânsito em julgado da sentença de reconhecimento de paternidade marca o início do prazo prescricional para a petição de herança conduz, na prática, à imprescritibilidade desta ação, causando grave insegurança às relações sociais. De fato, trata-se de profundo debate que envolve a segurança e a certeza − de um lado −, e a efetividade da herança como direito fundamental, previsto no art. 5º, inc. XXX, da Constituição da República.
Entre uma e outra corrente, fico com a segunda, tida como contemporânea, justamente pelo argumento da necessidade de se efetivar o direito à herança. A propósito, apesar de não ter sido essa a opção expressa do nosso legislador − ao contrário do que ocorreu com o Código Civil Italiano, nos termo do seu art. 533, e com o Código Civil Peruano, art. 664 −, entendo que não há prazo para se demandar a petição de herança, especialmente no caso de estar cumulada com a investigação de paternidade. Na doutrina, a propósito, essa é a posição de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, para quem “a petição de herança não prescreve. A ação é imprescritível, podendo, por isso, ser intentada a qualquer tempo. Isso assim se passa porque a qualidade de herdeiro não se perde (semel heres semper heres), assim como o não exercício do direito de propriedade não lhe causa a extinção. A herança é transferida ao sucessor no momento mesmo da morte de seu autor, e, como se viu, isso assim se dá pela transmissão da propriedade do todo hereditário. Toda essa construção, coordenada, implica o reconhecimento da imprescritibilidade da ação, que pode ser intentada a todo tempo, como já se afirmou” (Comentários ao Código Civil. Volume 20. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 202). A propósito, na mesma esteira, pondera Luiz Paulo Vieira de Carvalho que, “em nosso sentir, as ações de petição de herança são imprescritíveis, podendo o réu alegar em sede de defesa apenas a exceção de usucapião (Súmula 237 do STF), que atualmente tem como prazo máximo 15 anos (na usucapião extraordinária sem posse social, art. 1.238, caput, do CC)” (Direito das Sucessões. São Paulo: Atlas, 2014, p. 282-283).
De toda sorte, apesar dessa imprescritibilidade, sigo a possibilidade, em outros sistemas jurídicos, de se alegar a usucapião a respeito de bens singularizados. Isso faz com que a situação de cada bem seja analisada especificamente, atribuindo a determinado herdeiro, se for o caso, a propriedade da coisa caso estejam preenchidos os requisitos da usucapião, em qualquer uma das suas modalidades.
Como palavras finais, não se pode negar que o tema é de difícil análise e que gera intensos debates, sendo fortes os argumentos das duas correntes. Portanto, o Superior Tribunal de Justiça encontra-se defronte a mais um desafio, que é pacificar a questão no âmbito da sua Segunda Seção. Aguardemos qual será a posição seguida pela Corte.

[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

DE MOISÉS PARA JESUS: DEZ MANDAMENTOS PARA EVITAR UM NOVO CASO PORTA DOS FUNDOS. ARTIGO DE ANDERSON SCHREIBER.

De Moisés para Jesus:
Dez Mandamentos para evitar um novo caso Porta dos Fundos
Anderson Schreiber
Professor Titular de Direito Civil da UERJ

A recente polêmica causada pela decisão judicial que ordenou a retirada do ar do Especial de Natal do Porta dos Fundos – revertida, em pouco mais de 24 horas, pelo STF – gerou uma quantidade imensa de comentários e postagens nas redes sociais, ora atacando a decisão, por violar frontalmente a liberdade de expressão, ora a defendendo com base na alegada violação à liberdade religiosa da “maioria cristã” (o termo foi, sintomaticamente, empregado tanto na decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro quanto na decisão do Supremo Tribunal Federal). O embate de opiniões é extremamente produtivo em uma sociedade democrática, mas, mais que a discussão de fundo, o episódio revela falta de atenção a algumas orientações que nossos tribunais já poderiam ter apreendido de outros casos judiciais que envolveram, na experiência recente, a colisão entre liberdade de expressão e outros direitos fundamentais e que poderiam trazer um pouco mais de segurança ao julgamento dessa espécie de conflitos. As referidas orientações podem ser sintetizadas em dez pontos para evitarmos um novo caso Porta dos Fundos.
1. Direitos x sentimentos. O deferimento de uma medida liminar (anterior, portanto, ao pleno desenvolvimento do contraditório) para suspender a veiculação de um programa televisivo é medida que deve assumir caráter excepcional na nossa ordem jurídica, não podendo ser concedida com base em meras impressões ou sentimentos, como a impressão de que a liminar é necessária para abrandar um suposto clamor público ou outras afirmações de caráter mais emotivo do que técnico. Isso não significa que a liberdade de expressão seja um direito absoluto ou que goze necessariamente de alguma preferência em caso de colisão com outros direitos fundamentais (como tem defendido parte do STF). Isso quer dizer apenas que medidas liminares devem ser concedidas de modo técnico e cuidadoso, em atenção aos requisitos legais para tanto, e que eventual decisão proferida nesse sentido precisa estar amparada em razões jurídicas que identifiquem o sacrifício concreto que está sendo imposto no caso específico que se analisa.
2. Concreto x abstrato. Com efeito, para conceder uma medida liminar desta natureza, tanto mais se monocrática, não basta que se esteja diante de uma alegação genérica e abstrata de violação a um direito fundamental. Impedir, liminarmente, o exercício concreto da liberdade de expressão exigiria a identificação de uma violação igualmente concreta a um outro direito fundamental. Não se pode, em outras palavras, suspender liminarmente a exibição de um programa televisivo com base na alegação genérica de que sua veiculação “é contra” a liberdade religiosa de todos os adeptos de uma certa religião. É preciso identificar concretamente o sacrifício que está sendo imposto ao exercício do direito fundamental lesado.
3. Individual x coletivo. A concretude a que se aludiu será tanto maior quanto mais individual for o sacrifício. Vale dizer: uma coisa é pleitear medida liminar para suspender a exibição de um programa televisivo que expõe a intimidade sexual de uma determinada pessoa (Fulano de tal) ou a entrevista coletiva em que o terapeuta contará publicamente o que um de seus clientes lhe confidenciou durante as sessões; outra coisa, bem diversa, é pleitear medida liminar para suspender a exibição de um programa sob a alegação de que o seu conteúdo ofende, genericamente, um direito fundamental de toda a sociedade ou da “maioria” dos brasileiros.
4. Minoria x maioria. A alegação de uma violação a um direito fundamental da maioria – no caso, a liberdade religiosa da “maioria cristã”, conforme mencionado, já se registrou, tanto pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro quanto pelo STF como razão de decidir – não é hierarquicamente inferior àquela que diga respeito a uma minoria vulnerável, mas o grau de urgência necessário a amparar uma medida liminar dessa espécie estará mais raramente presente no caso da maioria, pela simples razão de que a maioria dispõe de meios materiais de defesa mais intensos que aqueles de que dispõem as minorias vulneráveis. Enquanto a maioria tem condições de reagir no próprio espaço público – como se viu, no caso do Porta dos Fundos, pela imensidão de comentários críticos que o episódio despertou (não se inclui, aqui, a ilícita agressão dirigida à sede do programa) –, as minorias vulneráveis usualmente não dispõe de igual capacidade de se expressar além dos limites de seu próprio círculo de adeptos. O argumento da maioria aqui pesa, portanto, em desfavor da concessão de medida liminar, e não a favor dela.
5. Ficção x realidade. Uma medida liminar que paralise o exercício da liberdade de expressão já será, pelas razões expostas até aqui, excepcional na prática, mas deve ser ainda menos frequente em se tratando de obras de ficção. Uma reportagem que contenha informações objetivamente falsas sobre uma pessoa, ou que a retrate de modo gravemente ofensivo, tem maior aptidão de lesar seus direitos fundamentais que uma obra declaradamente ficcional. A ficção exprime, por definição, o distanciamento da realidade, distanciamento que é antevisto e até pressuposto por quem assiste à obra ficcional. Qualquer pessoa que viva em sociedade sabe que a ficção é “mais livre”, nesse sentido, do que a retratação da realidade que ocorre por meio de reportagens ou notícias jornalísticas. Por isso mesmo, o potencial lesivo da ficção é menor e menores são as chances de uma obra ficcional veicular lesão a direitos fundamentais suficientemente grave para justificar uma medida liminar. Foi este, aliás, o critério utilizado pelo juízo da 1ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para negar o pedido de suspensão do lançamento do filme Tropa de Elite: “recorde-se que se trata de peça de ficção, por mais que no início apareça referência de que a mesma estaria baseada em relatos verídicos. No entanto, os fatos, ao se traduzirem em palavras, recebem sempre uma versão. Será fidedigna? Será falaciosa? Será hiperbólica? Cada espectador que julgue por si. Certamente a prática profissional dos autores, se incongruente com o que o filme retrata, demonstrará que ele não passa de peça de (má) ficção. Caso contrário, estar-se-á presente a uma dramatização contundente da realidade.” (Processo 2007.001.146746-3).
6. Sátira x outras formas de ficção. Dentro do universo da ficção, é menor ainda o potencial lesivo das obras satíricas. A sátira e o humor em geral são práticas que se fundam justamente no exagero, no escárnio, na conversão do objeto em algo grotesco ou ridículo. Qualquer pessoa que viva em sociedade também sabe disso, o que reduz consideravelmente o grau efetivamente lesivo a direitos fundamentais do retratado. Esta ridicularização é, em larga medida, o próprio papel do humor nas sociedades democráticas, na medida em que promove, através do exagero frequentemente negativo, uma relevante crítica aos costumes sociais (castigat ridendo mores), incluindo – e por que não? – os costumes religiosos. A liberdade religiosa é o direito de cada um de exercer sua religião, e não o direito de que tal religião não seja criticada pelos demais. A história das religiões, e sua própria gênese, está frequentemente vinculada à crítica dirigida pelos seus adeptos a uma religião diversa, dominante em determinado tempo e espaço.
7. Sátira de personagens históricos x pessoas atuais. Ainda nessa mesma direção, parece evidente que a sátira que tem por objeto personagens históricos de origem milenar – fictícios ou reais – apresenta menor potencial lesivo a direitos fundamentais de quem quer que seja do que a sátira que se dirige contra pessoas atuais. Por maior importância que esses personagens possam assumir na crença de cada grupo religioso, não podem ser confundidos com pessoas atuais, que são, em última análise, os sujeitos protegidos pela ordem jurídica.
8. Veículo satírico x outros veículos. O potencial lesivo da sátira reduz-se ainda mais se o próprio veículo tem caráter satírico ou humorístico ou, ainda, se sua própria forma revela a intenção satírica (como acontece no caso das caricaturas e charges em jornais). Ao apreciar pedido de danos morais formulado pelos herdeiros do barão Smith de Vasconcellos, proprietário original do Castelo de Itaipava, em razão de “matéria” publicada pela revista humorística Bundas, que elegeu o Castelo de Itaipava como “Castelo de Bundas” – em nítida galhofa com a revista Caras, que se utilizava de um castelo para divulgação do estilo de vida dos famosos –, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, acertadamente, que “é preciso analisar não só a expressão apontada como injuriosa, e sim esta em conjunto com a integralidade do texto e com o estilo do periódico que o veiculou. Nesse aspecto, nota-se que o meio de comunicação é explicitamente satírico, o que se evidencia – se não por menos – pela proposta editorial calcada na possibilidade de fazer rir a partir da comparação com outra revista de grande circulação, cujo mote é publicizar a vida íntima daquilo que se convencionou chamar de celebridades” (REsp 736.015/RJ).
9. Sátira boa x sátira ruim. No mesmo caso do Castelo de Itaipava, o STJ decidiu expressamente, em boa passagem, que o “nível do humor praticado pelo periódico - apontado como ‘chulo’ - não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas envolvidos; a prestação jurisdicional deve se limitar a dizer se houve ou não ofensa a direitos morais das pessoas envolvidas pela publicação”. Vale dizer: pode-se gostar do humor veiculado ou não gostar (eu, por exemplo, não vi nenhuma graça no Especial de Natal em questão), pode-se, inclusive, criticá-lo, mas ninguém pode se arvorar – nem mesmo as mais elevadas cortes do país – no direito de eleger esta ou aquela forma de humor como a forma adequada à sociedade brasileira. Não se pode cercear – muito menos em sede de medida liminar – determinado exercício da liberdade de expressão, sob a alegação de que o humor veiculado foi “chulo” ou “grosseiro”. Cada um é livre para gostar do tipo de humor que preferir.
10. Estado laico x Estado religioso. O Estado brasileiro, como se sabe, é laico. Nesse contexto, a avaliação sobre se houve ou não ofensa à liberdade religiosa a partir da sátira televisa que tem por objeto personagens históricos de determinada religião não pode ser governada pelos valores próprios de cada grupo religioso, ou de qualquer de suas múltiplas vertentes, mas deve ter como único norte os valores constitucionais, que exprimem o compromisso unitário de toda sociedade brasileira sedimentado na Constituição da República. Daí porque atribuir satiricamente a Jesus a condição de homossexual – e outras galhofas semelhantes – não pode representar, nem mesmo em tese, uma violação à liberdade de religião, pois a liberdade sexual é plenamente acolhida pela ordem jurídica brasileira (STF, ADI 4.277/DF), tal como, de resto, toda espécie de diversidade, incluindo a própria diversidade religiosa.
Em suma, não é preciso peregrinar no deserto: todas as dez orientações acima indicadas já podem ser extraídas de precedentes judiciais brasileiros, sem falar na doutrina que vem se debruçando, já há alguns anos sobre o tema. Fariam bem os nossos tribunais se, ao analisar pedidos dessa espécie, seguissem esses mandamentos – com o perdão da brincadeira –, a fim de evitar a concessão de medidas liminares que despertam intensa polêmica e suscitam reviravoltas jurisprudenciais que contribuem para um clima de incerteza e insegurança quanto ao exercício dos direitos fundamentais no cenário brasileiro.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

ARTIGO SOBRE PROMESSA DE DOAÇÃO DO PROFESSOR PABLO STOLZE GAGLIANO

Promessa de Doação no Direito de Família: É mais comum do que você imagina!
Pablo Stolze[1]
1. Introdução
Você já ouviu falar em “promessa de doação”? Tem ideia da sua importância nas relações patrimoniais travadas entre cônjuges e companheiros?
O objetivo deste artigo[2] é compreendermos o alcance e a eficácia jurídica da promessa de doação, especialmente nos acordos judiciais firmados no âmbito do Direito de Família.
Para tanto, é fundamental que, antes, sejam feitas algumas considerações sobre a denominada promessa de contrato.
A promessa de contrato (pré-contrato ou contrato preliminar) é o negócio jurídico que tem por objeto a obrigação de fazer um contrato definitivo. O exemplo mais comum é o compromisso de venda, o qual, como se sabe, pode até mesmo gerar direito real[3].
Discorrendo sobre o tema, escreve INOCÊNCIO GALVÃO TELLES:
"Pode acontecer que, no decorrer de contactos estabelecidos com vista à celebração de certos contratos, as partes cheguem a acordo quanto ao seu conteúdo, mas, não podendo ou não querendo realizá-lo imediatamente, se obriguem contudo a realizá-lo no futuro. A isto se chama contrato-promessa. É um contrato preliminar, que antecede e prepara o contrato definitivo (aquele que finalmente se tem em vista); pelo primeiro os interessados obrigam-se a, mais cedo ou mais tarde, celebrar o segundo”.
E mais adiante, na mesma obra:
"Já sabemos que o contrato-promessa é um acordo preliminar que tem por objecto uma convenção futura, o contracto prometido. Mas em si é uma convenção completa, que se distingue do contrato subsequente. Reveste, em princípio, a natureza de contrato obrigacional, ainda que diversa seja a índole do contrato definitivo[4]”.
2. Promessa de Doação (Pactum de Donando)
No caso da doação, a situação afigura-se mais delicada, uma vez que, por ser um contrato geralmente gratuito (doação pura), posto sempre unilateral (quanto aos efeitos), o reconhecimento da validade e eficácia jurídica da promessa faria com que o donatário – simples beneficiário do ato – pudesse ingressar com a execução específica do contrato, forçando o doador a cumprir o ato de liberalidade a que se obrigara.
A sua admissibilidade é explícita no Código Civil alemão (BGB), consoante se pode ler:
“§ 518 (Forma da Promessa de Doação).
(1) Para a validade de um contrato pelo qual, como doação, é prometida uma prestação, é exigível a documentação judicial ou por tabelião da promessa. O mesmo se dá quando é outorgada, como doação, uma promessa de dívida ou um reconhecimento de dívida das espécies de promessa ou de declaração de reconhecimento assinaladas nos §§ 780 e 781.
(2) O vício de forma será sanado pela execução da prestação prometida”.
Como não há, em nosso Direito Positivo, regra semelhante, a doutrina controverte-se a respeito.
Nessa linha, escreve, com habitual precisão, FLÁVIO TARTUCE:
“Discute-se muito em sede doutrinária e jurisprudencial a viabilidade jurídica da promessa de doação, ou seja, a possibilidade de haver contrato preliminar unilateral que vise a uma liberalidade futura. Sintetizando, pela promessa de doação, uma das partes compromete-se a celebrar um contrato de doação futura, beneficiando o outro contraente”[5].
CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, por sua vez, observa:
"Tem a doutrina se debatido se a doação pode ser objeto de contrato preliminar, pactum de donando. E a solução doutrinária tem sido infeliz, por falta de uma distinção essencial entre doação pura e doação gravada de encargo. Partindo da primeira, especifica-se a pergunta: Pode alguém obrigar-se a realizar uma doação pura? Formalmente sim, porque, tendo o contrato preliminar por objeto um outro contrato, futuro e definitivo (...), este novo contrahere poderia ser a doação, como qualquer outra espécie. Atendendo a este aspecto apenas, não falta bom apoio à resposta afirmativa, quer dos Códigos, quer dos doutores. Acontece que não se pode deixar de encarar o problema sob o aspecto ontológico, e, assim considerado, a solução negativa impõe-se"[6].
De fato, a latere a doação gravada com encargo – figura jurídica perfeitamente compatível com a promessa pela sua onerosidade intrínseca –, a doação pura, por seu turno, se analisada inclusive em seu aspecto teleológico, não se compatibilizaria tão bem com a ideia de uma execução forçada, pelo simples fato de o promitente-donatário estar constrangendo a outra parte (promitente-doador) ao cumprimento de um ato de simples liberalidade, em face do qual inexistiu contrapartida pres­tacional.
Imagine, por exemplo, a hipótese de João prometer a Pedro doar-lhe o seu apartamento em 6 meses. No vencimento, por qualquer razão - por ex., o agravamento da situação econômica da família do promitente-doador -, João não efetiva o ato de liberalidade. Pedro poderia, coercitivamente, exigir a entrega do bem?
No dizer de L. DÍEZ-PICAZO e A. GULLON, citados por ANA PRATA, em monumental obra do Direito português, “a doação pode fazer-se por generosidade, por caridade, por vaidade, por simples pompa, por cultivar o que hoje se chama uma determinada imagem para o exterior ou por qualquer outra causa”[7].
Mas, ainda assim, prepondera o aspecto da beneficência (liberalidade) como causa do contrato.
Nesse diapasão, respeitando posições em contrário[8], concluímos pela inadmissibilidade da execução coativa da promessa de doação, muito embora não neguemos a possibilidade de o promitente-donatário, privado da legítima expectativa de concretização do contrato definitivo, e desde que demonstrado o seu prejuízo, poder responsabilizar o promitente-doador pela via ordinária das perdas e danos.
Esta é a conclusão de ANA PRATA:
“Eliminando do regime da promessa de doação a tutela obrigacional da execução específica, está-se afinal a caracterizar tal contrato-promessa como integrando aquela categoria de promessas precárias, cujo cumprimento se resolve forçosamente na indenização”[9].
Outro não é, aliás, na doutrina brasileira, o pensamento de SÍLVIO VENOSA:
"Caso se torne impossível a entrega da coisa, por culpa do promitente doador, o outorgado tem ação de indenização por inadimplemento. Destarte, admitida a teoria do pré-contrato no ordenamento para os pactos em geral, não existe, em tese, obstáculo para a promessa de doar.”[10].
Exigir, forçosamente, que o declarante entregue um bem que “prometera doar” não guarda proporcionalidade - se levarmos em conta que o donatário nenhuma contraprestação efetuou -, além de ir em rota de colisão com noção de liberalidade, imanente ao contrato de doação.
Ao encontro dessa linha de raciocínio, destacamos, no Superior Tribunal de Justiça, julgado relatado pelo eminente Min. LUIZ FELIPE SALOMÃO que adota, inclusive, posição mais extrema:
(…) 4. "Inviável juridicamente a promessa de doação [pura] ante a impossibilidade de se harmonizar a exigibilidade contratual e a espontaneidade, característica do animus donandi. Admitir a promessa de doação equivale a concluir pela possibilidade de uma doação coativa, incompatível, por definição, com um ato de liberalidade”.
(REsp 730.626/SP, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 04/12/2006, p. 322) 5. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1394870/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 20/09/2018, DJe 26/09/2018)
Com isso, temos que o descumprimento de uma promessa de doação poderá desembocar, no máximo, em uma solução indenizatória, e não emuma execução coativa.
Note-se, todavia, que para existir essa consequente obrigação de indenizar, deverão estar configurados os pressupostos gerais da responsabilidade civil, a saber: a conduta humana, o dano e o nexo de causalidade.
Em verdade, o fundamento jurídico dessa forma de responsabilidade, decorrente do descumprimento da promessa de doação, encontra-se,em nosso sentir, no próprio princípio da boa-fé objetiva, impo­sitivo dos deveres de lealdade e confiança entre as partes contratantes (Treu und Glauben).
Vale dizer, quando o promitente-doador descumpre a promessa feita, causando dano ao donatário, viola regra geral de cunho ético e exigibilidade jurídica, por não atender à legítima expectativa, nutrida pela outra parte, de celebrar o contrato definitivo.
Dispensa-se, ademais, nessa aferição, e segundo a melhor doutrina, a investigação do móvel subjetivo (dolo/culpa) que orientou o infrator.
Este é o pensamento de ANDRÉA PAULA DE MIRANDA:
"O princípio da boa-fé aparece frequentemente relacionado à culpa. É verdade que, quando da violação das regras de conduta estabelecidas pela boa-fé resultam danos, a culpa intervém em seu papel normal. As regras decorrentes da boa-fé, entretanto, têm aplicação mais ampla, uma vez que não exigem um pressuposto fático precisamente tipificado em que se insere a culpa[11]".
Nesse diapasão, também, o Enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil:
"Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa".
3. A Promessa de Doação e o Direito de Família
Cumpre-nos, agora, enfrentar a promessa de doação na separação judicial, no divórcio e nas ações de dissolução de união estável.
É comum, nos termos de acordo de divórcio ou de separação judicial, quanto aos bens, uma ou ambas as partes celebrarem promessa de doação entre si ou em favor dos filhos.
O mesmo pode se dar quando da dissolução judicial da união estável.
Tais contratos preliminares, pela peculiar conjuntura da sua pactuação, em nosso sentir, são juridicamente possíveis.
Nesse ponto, não interpretamos as manifestações dos cônjuges (e também dos companheiros, caso se trate de união estável) como simples “intenções” consubstanciadas no termo e sujeitas à homologação judicial, mas sim como declarações negociais de vontade, dotadas de uma exigibilidade perfeitamente justificada pela ambiência da pactuação.
Vale dizer, se o donatário aceita (e, no caso do absolutamente incapaz, desde que se trate de doação pura, dispensa-se aceitação expressa, nos termos do art. 543), a promessa se configura e é exigível, como decorrência do próprio princípio da solidariedade familiar[12].
Com efeito, embora parcela da doutrina rechace, conforme vimos, em caso de descumprimento, com boas razões, a execução específica das promessas de doação em geral, sob o argumento de se tratar de contrato animado pela simples liberalidade – razão por que somente abriria espaço para o pagamento de perdas e danos –, entendemos que, por razões superiores, no âmbito do Direito de Família, escapando desse sistema geral, a promessa deve comportar execução específica (forçada), na estrita forma da lei processual civil.
E assim pensamos porque, em geral, o beneficiário da promessa é o próprio consorte (ou companheiro), parte na separação ou no divórcio, ou os seus filhos, diretamente atingidos pelo descasamento dos pais.
Ora, no primeiro caso (entre cônjuges ou companheiros), a execução específica da promessa encontraria amparo no cunho eminentemente compensatório que esse tipo de promessa traduz pelo fim do enlace. Em outras palavras, a obrigação assumida, por ex., na promessa de doar um bem à esposa, é menos animada por simples altruísmo e mais pela necessidade de compensação que sente o doador pelo término (não simplesmente do afeto, pois ser humano algum pode ser responsabilizado por isso) da comunidade de existência.
Por razões análogas, a promessa feita no pacto antenupcial é dotada de exigibilidade[13].
Já no caso dos filhos, a fundamentação jurídica tendente ao reconhecimento da execução específica, para forçar o cumprimento da obrigação, é ainda de clareza maior. O interesse existencial deles anima os pais a celebrarem a promessa, que não poderá ser desfeita nem, muito menos, resolver-se simplesmente em perdas e danos em caso de descumprimento. O princípio da solidariedade familiar impõe a mantença da palavra dada, dispensando maiores considerações.
Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. EMBARGOS DE TERCEIRO. PENHORA. DOAÇÃO DO IMÓVEL. FILHOS BENEFICIADOS. SENTENÇA DE DIVÓRCIO ANTERIOR À EXECUÇÃO. PENHORA POSTERIOR. FRAUDE À EXECUÇÃO. INEXISTÊNCIA. BOA-FÉ. PRESUNÇÃO. SÚMULA Nº 7/STJ.
1. A promessa de doação de imóvel aos filhos comuns decorrente de acordo judicial celebrado por ocasião de divórcio é válida e possui idêntica eficácia da escritura pública.
2. Não há falar em fraude contra credores em virtude da falta de registro da sentença homologatória da futura doação realizada antes do ajuizamento da execução.
3. A penhora pode ser afastada por meio de embargos de terceiros, opostos por possuidores que se presumem de boa-fé.
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido.
(REsp 1634954/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 13/11/2017)
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. DIVÓRCIO CONSENSUAL. PARTILHA DE BENS. ACORDO. DOAÇÃO AOS FILHOS. HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL. SENTENÇA COM EFICÁCIA DE ESCRITURA PÚBLICA. FORMAL DE PARTILHA. REGISTRO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS. POSSIBILIDADE.
1. Não constitui ato de mera liberalidade a promessa de doação aos filhos como condição para a realização de acordo referente à partilha de bens em processo de separação ou divórcio dos pais, razão pela qual pode ser exigida pelos beneficiários do respectivo ato.
2. A sentença homologatória de acordo celebrado por ex-casal, com a doação de imóvel aos filhos comuns, possui idêntica eficácia da escritura pública.
3. Possibilidade de expedição de alvará judicial para o fim de se proceder ao registro do formal de partilha.
4. Recurso especial provido.
(REsp 1537287/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/2016, DJe 28/10/2016)
CIVIL. PROMESSA DE DOAÇÃO VINCULADA À PARTILHA. ATO DE LIBERALIDADE NÃO CONFIGURADO. EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO. LEGITIMIDADE ATIVA.
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ACORDO CELEBRADO EM SEPARAÇÃO CONSENSUAL. HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL. DOAÇÃO.
ÚNICA FILHA. AUSÊNCIA DE VÍCIOS DE VALIDADE. EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO. PRECEDENTES.
1. A jurisprudência desta eg. Corte já se manifestou no sentido de considerar que não se caracteriza como ato de mera liberalidade ou simples promessa de doação, passível de revogação posterior, a doação feita pelos genitores aos seus filhos estabelecida como condição para a obtenção de acordo em separação judicial.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 883.232/MT, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 19/02/2013, DJe 26/02/2013)
A promessa de doação feita aos filhos por seus genitores como condição para a obtenção de acordo quanto à partilha de bens havida com a separação ou divórcio não é ato de mera liberalidade e, por isso, pode ser exigida, inclusive pelos filhos, beneficiários desse ato. Precedentes.
Recurso Especial provido.
(REsp 742.048/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/04/2009, DJe 24/04/2009)
Note-se que, no REsp 1634954/SP e no REsp 1537287/SP , a Corte foi além, ao equiparar, no plano eficacial, a promessa homologada à própria escritura pública de doação, servindo, portanto, a sentença, de título hábil ao registro e consequente transferência da propriedade.
E, em caso de recusa, caberá, por certo, a execução forçada.
Não se dispensa, com isso, todavia, em se tratando de imóveis, o respeito ao princípio da continuidade do Registro Imobiliário - porquanto, aquele que doa deve ser, formalmente, o titular do bem - nem, tampouco, a necessidade de pagamento dos tributos e emolumentos devidos por conta da transferência dominial.
Em conclusão, temos que, no âmbito do Direito de Família, à luz do princípio da solidariedade familiar, a promessa de doação firmada em acordo judicial de separação, divórcio e dissolução de união estável, ou, ainda, em pacto antenupcial, tendo em vista a ambiência da sua pactuação, uma vez atendidos os pressupostos negociais de validade, tem plena exigibilidade jurídica, justificando, em caso de inadimplemento do promitente-doador, a sua execução forçada.

[1] Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia Brasileira de Direito Civil. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).
[2] Serviu de subsídio para a elaboração do presente texto, a nossa obra O Contrato de Doação, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2020.
[3] Sobre o contrato preliminar de promessa de compra e venda e o direito real do promitente-comprador, cf. GAGLIANO, Pablo Stolze. Código Civil comentado, Ed. Atlas, v. XIII, p. 224-236, e, também, GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Vol. 5, Direitos Reais. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 417 a 430.
[4] TELLES, Inocêncio Galvão. Manual dos contratos em geral. 4. ed. Coimbra: Coimbra Ed., 2002, p. 208-210.
[5] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, volume único. 7ª ed., São Paulo: Gen, 2017, p. 788.
[6] PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil, vol. III, 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001,, cit., v. III, p. 160-161.
[7] PRATA, Ana. O Contrato Promessa e o seu Regime Civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 307.
[8] Confira-se, por exemplo, PERCY JOSÉ CLEVE KUSTER: “O outorgado (promitente donatário) tem a pretensão ao cumprimento, através de ação condenatória ou de preceito cominatório. Analogamente à promessa de compra e venda, a promessa de doação é marcada pela irrevogabilidade, ou seja, após sua ultimação é defeso ao promitente doador exercer direito de arrependimento” (Considerações a respeito da promessa de doação. Dissertação apresentada no Curso de Pós-Graduação da PUCSP em 2000, p. 128, sob a orientação do Prof. Dr. Arruda Alvim). Em verdade, posto não desconheçamos a efetividade que se tem buscado no âmbito do Processo Civil, entendemos ser inviável, como sustentado supra, admitir a execução coativa como regra geral, em virtude da peculiar causa do contrato de doação, que especialmente o diferencia das demais modalidades de contrato passíveis de execução compulsória: a liberalidade.
[9] PRATA, Ana. O Contrato Promessa e o seu Regime Civil, cit., p. 315.
[10] VENOSA, Silvio. Direito Civil: Contratos em Espécie, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 132.
[11] MIRANDA, Andréa Paula Matos R. de. A Boa-Fé Objetiva nas Relações de Consumo. Dissertação apresentada no Curso de Mestrado em Direito da UFBa, em 2003, p. 162.
[12] Nesse contexto, confira-se o interessante Enunciado 549 da VI Jornada de Direito Civil: “Enunciado 549 – A promessa de doação no âmbito da transação constitui obrigação positiva e perde o caráter de liberalidade previsto no art. 538 do Código Civil”.
[13] STJ: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO COMINATÓRIA. PROMESSA DE DOAÇÃO CELEBRADA MEDIANTE PACTO ANTENUPCIAL.
1. Exigibilidade da obrigação reconhecida mediante fundamentação adequada e coerente, inexistindo quaisquer dos vícios previstos no art. 1.022 do CPC/2015.
2. Omissão verificada apenas quanto à análise da exorbitância dos honorários de sucumbência. Excesso constatado. Redução do valor da verba honorária.
3. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARCIALMENTE ACOLHIDOS.
(EDcl no REsp 1355007/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/12/2017, DJe 19/12/2017)