quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

CONSIDERAÇÕES SOBRE A RECENTE LEI DE MULTIPROPRIEDADE. ARTIGO DE CARLOS EDUARDO ELIAS DE OLIVEIRA.

Considerações sobre a recente Lei da Multipropriedade ou da Time Sharing (Lei nº 13.777/2018): principais aspectos de Direito Civil, de Processo Civil e de Registros Públicos
Carlos Eduardo Elias de Oliveira
(Doutorando, mestre e bacharel em Direito na Universidade de Brasília, Professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro, Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ)
Data: 23 de dezembro de 2018
RESUMO

O texto trata da recentíssima disciplina da Time Sharing (multipropriedade) pela Lei nº 13.777/2018, que mudou o Código Civil e a Lei de Registros Públicos. Expõe as questões mais problemáticas de Direito Civil, Processo Civil e de Registros Públicos. Define a Time Sharing valendo-se de uma metáfora: o parcelamento temporal do imóvel. Expõe as consequências práticas de o instituto gerar direito real sobre coisa própria, como a responsabilidade pelas dívidas propter rem (como IPTU). Trata da responsabilidade por coisas caídas e pela ruína do prédio. Trata de questões processuais, como as de penhora de unidades periódicas e da capacidade para ser parte em processo judicial. Cuida da figura nova que chamamos de “anticrese legal”. Indica interpretações conformes à Constituição Federal de alguns dispositivos para evitar a inconstitucionalidade. Trata da figura da renúncia translativa e abdicativa de unidades periódicas, a qual foi trazida pela nova Lei.
1. APRESENTAÇÃO

Em um momento em que o país está em férias, com diversos cidadãos viajando para locais turísticos onde provavelmente serão convidados para comprar um “imóvel em multipropriedade” com o objetivo de desfrutar dele em um período certo de cada ano, nasce finalmente a primeira lei brasileira sobre a multipropriedade, também chamada de time sharing.
Trata-se da Lei nº 13.777, de 20 de dezembro de 2018, que foi publicada no Diário Oficial em 21 de dezembro de 2018 e que entrará em vigor 45 dias depois.
Essa nova lei muda o Código Civil e a Lei de Registros Públicos para disciplinar o instituto da time sharing.
Objetivamos expor apenas alguns aspectos importantes desse novo diploma, sem pretensão de esgotar o assunto.
Olhares mais aprofundados no instituto podem ser colhidos em trabalhos de referência, como os escritos de autoridades do porte do Professor da UnB Frederico Henrique Viegas de Lima[1] e do Professor Gustavo Tepedino[2] e como notáveis trabalhos acadêmicos, como o cunhado em dissertação de mestrado pelo genial Professor Paulo Emílio Dantas[3].
Vários juristas, vêm estudando e palestrando sobre a matéria há tempos, como o Professor Rodrigo Toscano de Brito, com quem tivemos a honra de ombrear no 37º Encontro Regional dos Oficiais de Registro de Imóveis ocorrido em junho de 2018 para tratar de multipropriedade e de condomínios[4].
Reportamo-nos também ao referencial texto do doutíssimo registrador Marcelo Augusto Santana de Melo[5].
Seremos o mais objetivo e direto possível para expor aspectos estruturais do instituto.
2. DEFINIÇÃO: multipropriedade como um parcelamento temporal do bem

Para aumentar o número de pessoas que usufruem dos benefícios dos imóveis (que são recursos escassos)[6], o Direito precisa se valer de novas ferramentas jurídicas. A multipropriedade é uma delas e consiste em um condomínio compostos por unidades periódicas vinculadas a um mesmo bem.
Uma metáfora pode ajudar na compreensão. Há tempos, já temos, no direito brasileiro, o parcelamento do solo, que envolve o loteamento e o desmembramento e que consiste no fatiamento de uma gleba de terra (como um vasto terreno) em várias porções de terra (que são os lotes). Trata-se de um parcelamento real, pois implica a fragmentação horizontal de uma coisa física em outras menores.
O legislador, então, pensou em potencializar o aproveitamento do solo por mais pessoas criando formas ficcionais de parcelamento. Uma delas foi o direito real de laje, que é o fatiamento vertical do solo, criando unidades autônomas aéreas ou subterrâneas alinhados verticalmente a uma porção de terra. Cada laje, por ser uma unidade autônoma, merecerá uma matrícula própria no cartório. A laje passou a ocupar o art. 1.510-A do CC com tentáculos na LRP[7] e na Lei 6.766/76.
Agora, o legislador está a prever um novo tipo de parcelamento não apenas do solo, mas também de outros imóveis por acessão (como os apartamentos em condomínios edilícios). Trata-se de um parcelamento temporal do imóvel, fragmentando-o em várias unidades autônomas vinculadas a um período certo de tempo do ano. Um apartamento é, por ficção jurídica, pulverizado em várias porções temporais autônomas, que são as unidades periódicas. Como o tempo mínimo da unidade periódica é de 7 dias à luz do novo art. 1.358-E do CC, isso significa que um imóvel pode ser parcelado em, no máximo, 52 unidades periódicas, o que significa que um imóvel, em tese, pode ser anualmente aproveitado por 52 pessoas diferentes. O tempo de ócio do bem será muito reduzido.
Portanto, a multipropriedade pode ser definida como um parcelamento temporal do bem em unidades autônomas periódicas. É pulverizar um bem físico no tempo por meio de uma ficção jurídica. Enxergar a multipropriedade como um condomínio fruto de um parcelamento temporal - e ficto! - do bem elucida bem o instituto.
3. ATECNIAS NA REDAÇÃO DA NOVA LEI
Há algumas atecnias na redação da nova lei, como: (1) a referência a suposta “alienação de frações de tempo”, quando, na verdade, o que se está tratando de alienação do direito real de propriedade do multiproprietário sobre sua unidade; (2) a citação da Lei 4.591/64 como fonte subsidiária, na verdade, abrange a necessidade de aplicar todas as regras de condomínio edilício de modo subsidiário, como os arts. 1.331 e seguintes do CC, tudo diante da similaridade das duas espécies de condomínio; (3) o emprego, no art. 1.358-T do CC, da expressão “renúncia translativa” em matéria de direitos reais foi atécnico, pois ela é doutrinariamente utilizada em matéria de direito sucessório e ela representa, na verdade, uma hipótese de transmissão da propriedade em proveito de uma determinada pessoa, e não uma renúncia propriamente dita; (4) há alguns preceitos que merecem interpretação conforme à Constituição para livrar-se da pecha da inconstitucionalidade.
A aplicação prática do instituto, todavia, não será comprometida por essas atecnias legislativas, conforme apoio a ser dado pela doutrina e pela jurisprudência.
4. NOMENCLATURA

Multiproprietário é o titular da unidade periódica.
A unidade periódica é a coisa física considerada apenas em uma fração de tempo do ano.
O direito real de propriedade periódico é o vínculo jurídico entre o multiproprietário e a unidade periódica. Enfim, é o direito de propriedade sobre uma unidade periódica.
Condomínio multiproprietário é o condomínio em multipropriedade ou simplesmente a multipropriedade, que é a situação jurídico-real de uma coisa estar vinculado a unidades periódicas.


5. RESTRIÇÃO DA LEI A IMÓVEIS
A lei trata apenas do condomínio multiproprietário em imóveis. Não abrangeu a time sharing em móveis, como em barcos, aeronaves etc., tarefa que ficará para eventual lei futura.
O mobiliário que guarnece o imóvel, diante de sua natureza acessória, segue o mesmo regime jurídico-real do imóvel e, portanto, também é objeto da multipropriedade do imóvel.

6. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
A disciplina da multipropriedade pelo CC sujeita-se subsidiariamente à legislação que trata de condomínio edilício, como os arts. 1.331 e ss do CC e a Lei 4.591/64.
A aplicação do CDC ocorrerá apenas se houver relação de consumo envolvendo, de um lado, os multiproprietários e, de outro lado, o administrador do condomínio multiproprietário, a empresa operadora do regime de pool (art. 1.358-S, II, CC) ou a empresa operadora do regime de intercâmbio (art. 1.358-P, VI, CC). E, para haver relação de consumo, é preciso observar os requisitos do CDC. Essa deve ser a leitura do novo art. 1.358-B do CC. Assim, se a multipropriedade tiver sido instituída em um ambiente de amigos e parentes, não há relação de consumo e, portanto, é descabida a incidência do CDC.
7. OBJETO DA MULTIPROPRIEDADE

Qualquer imóvel poderá ser “parcelado temporalmente”. Trocando em miúdos, é cabível a instituição do condomínio multiproprietário sobre qualquer imóvel. Não importa se o imóvel é rural ou urbano: não cabe ao intérprete fazer restrições não feitas pelo legislador nesse aspecto.
Se o imóvel for um terreno com ou sem construção, bastará ser feita a instituição do condomínio multiproprietário pelo titular do bem.
Se, porém, o imóvel for uma unidade em condomínio edilício (ex.: um apartamento em um prédio com 48 apartamentos), não basta a vontade individual do proprietário dessa unidade, pois, como a multipropriedade implica um parcelamento temporal do bem, haverá uma alteração na estrutura de direito real da unidade com reflexos no próprio condomínio edilício. Um exemplo desse efeito é que o condomínio edilício passará a cobrar a contribuição condominial de cada multiproprietário a partir da instituição da multipropriedade e, no caso de inadimplência, só poderá executar esse devedor e eventualmente adjudicar apenas a unidade periódica, conforme dicção do art. 1.358-S do CC. É de imaginar o absurdo de, por vontade exclusiva de um condômino, uma unidade do condomínio edilício ser pulverizada em 52 unidades periódicas, com o dever de o condomínio edilício ter de, doravante, cobrar a contribuição de cada um dos 52 multiproprietários.
Por isso, para haver a instituição da multipropriedade em unidades de condomínios edilícios, há necessidade de previsão expressa no ato de instituição do próprio condomínio edilício, a qual, apenas nesse ponto, poderá ser alterada mediante deliberação maioria absoluta dos condôminos por força do art. 1.358-O do CC.
8. FORMA DO INSTRUMENTO DE INSTITUIÇÃO DO CONDOMÍNIO E ASPECTOS REGISTRAIS: o problema do testamento e da escritura pública
Quanto à forma do instrumento de instituição do condomínio multiproprietário, deve-se observar, no que couber, a mesma regra vigorante para a forma da instituição do condomínio edilício, admitido, porém, o uso de testamento (art. 1.358-F, CC).
Se for empregado um testamento, ele, em regra, deverá ter todos os requisitos formais para a instituição do condomínio na forma do art. 1.358-F ao art. 1.358-G e dos arts. 1.358-P e 1.358-Q do CC. Entendemos, porém, que poderá o testador limitar-se a indicar as unidades periódicas que caberão aos sucessores em relação a um imóvel e delegar a eles o dever de, por maioria, deliberar sobre as demais questões formais do ato de instituição e, assim, elaborarem um ato complementar de instituição do condomínio multiproprietário. Por exemplo, o testamento poderá limitar-se a dizer:
“deixo o imóvel X aos sucessores A e B sob a forma de condomínio multiproprietário em que A será titular de uma unidade periódica envolvendo a fração de tempo de janeiro a agosto de cada ano e em que B titularizará a fração de tempo remanescente (de setembro a dezembro). Caberá a eles, elaborar os atos de instituição com os demais requisitos formais, prevalecendo, no caso de divergência, a vontade daquele com maior fração de tempo.”
Em nome do princípio da conservação do negócio jurídico, eventual silêncio do testamento acerca de como deve ser definida essas demais questões formais do ato de instituição deve ser interpretado como uma delegação dada pelo testador aos sucessores testamentários para, por maioria censitária, promover essas definições.
No Registro de Imóveis, deve ser admitido, como título inscritível para a instituição do condomínio multiproprietário, o formal de partilha com menção a todos os requisitos formais ou com expressa autorização para que os sucessores testamentários elaborem documento complementando as informações faltantes (caso em que o título a ser inscrito na tábua predial será o formal de partilha em conjunto com esse documento complementar).
Quando o instrumento for um ato entre vivos, à semelhança do que sucede com o condomínio edilício, certamente haverá controvérsias acerca da aplicação ou não do art. 108 do CC. Entendemos que o art. 108 do CC é aplicável por envolver mutação jurídico-real de imóvel, de modo que deve ser exigida a escritura pública se o imóvel for de valor superior a 30 salários-mínimos.
Do ponto de vista registral, haverá uma matrícula-mãe, na qual será registrada a instituição do condomínio multiproprietário com a criação de novas matrículas-filhas para as unidades periódicas. É semelhante ao que acontece com o condomínio edilício: a matrícula-mãe recebe o registro da instituição do condomínio edilício e, assim, gera matrículas autônomas para cada unidade autônoma.

9. MULTIPROPRIEDADE COMO CRIADORA DE DIREITO REAL SOBRE COISA PRÓPRIA E ALGUNS ASPECTOS DE REGISTROS PÚBLICOS
Há necessidade de abertura de matrícula para cada unidade periódica. Isso significa que cada unidade imobiliária é um imóvel autônomo, como sucede com as unidades no condomínio edifício. É o que reza o princípio da unitariedade matricial, segundo o qual cada imóvel tem de corresponder a uma matrícula. Também dá conta disso o fato de que uma mesma pessoa pode ser titular de todas as unidades periódicas relativas a um mesmo imóvel sem extinção do condomínio multiproprietário (art. 1.358-C, parágrafo único, CC).
Portanto, a multipropriedade cria um direito de propriedade periódico a cada multiproprietário. Em outras palavras, o multiproprietário é titular de um direito real sobre coisa própria, porque titula um direito de propriedade com dimensão espaço-temporal.
Desse modo, no atual direito brasileiro, os direitos reais sobre coisa própria envolvem: (1) o direito real de propriedade sobre imóveis por natureza, que é solo, com as respectivas acessões; (2) o direito real de propriedade sobre unidades autônomas em condomínios edilícios, de lotes, urbano simples e em multipropriedade; e (3) o direito real de laje (para este último, há divergência doutrinária, mas preferimos a que o considera um direito real sobre coisa própria).
Por curiosidade, destaque-se que Portugal não disciplinou a multiproprietário como um condomínio, mas como um direito real de habitação periódico. Preferiu, pois, disciplinar o instituto como um direito real sobre coisa alheia.
Há várias repercussões práticas em reconhecer que o multiproprietário é titular de direito real sobre coisa própria, como as relativas à ausência de dever de um multiproprietário arcar com tributos propter rem dos demais (IPTU) e a possibilidade de uma unidade periódica ser objeto de direitos reais de garantia oferecidos pelo multiproprietário a seus credores pessoais. Se a multipropriedade fosse direito real sobre coisa alheia, como em Portugal, o resultado prático seria diferente para esses exemplos.
10. IPTU E AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS DEMAIS MULTIPROPRIETÁRIOS

 Como consequências de o direito de propriedade sobre a unidade periódica ser direito real sobre coisa própria, o IPTU só recai sobre a unidade periódica. Logo, os demais multiproprietários não podem ser responsabilizados pela dívida de IPTU da unidade. O fato gerador do IPTU é o direito real de propriedade do imóvel periódico, e esse conceito é dado pelo Direito Civil, que tem de ser observado pelo Fisco à luz do art. 110 do CTN, que estatui, in verbis:
Art. 110, CTN: A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
O Direito Civil trata a unidade periódica como imóvel autônomo e, portanto, um multiproprietário não pode ser compelido a responder pelo IPTU relativo à unidade periódica dos demais. Em confirmação disso, o art: 176, § 11, da LRP[8], permite que cada imóvel tenha uma inscrição imobiliária individualizada à luz da lei tributária municipal.
Não há, pois, a solidariedade tributária de que trata o inciso I do art. 124 do CTN, ao contrário do insinuado na mensagem de veto parcial da nova lei[9]. De fato, não há interesse algum de um multiproprietário em que os demais saldem o IPTU das suas unidades periódicas. No caso de inadimplemento, o Fisco poderá excutir a unidade periódica do devedor para quitação da dívida tributária, sem que isso prejudique os demais multiproprietários.

11. OBJETO DE HIPOTECA OU DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA
A unidade periódica pode, sozinha, ser objeto de hipoteca ou de alienação fiduciária, pois representa um direito real de propriedade (periódico) e, portanto, é um direito real sobre coisa própria.

12. RESPONSABILIDADE POR COISAS CAÍDAS (actio de effusis et dejectis)
À falta de previsão legal diversa, em condomínios multiproprietários, a responsabilidade por coisas caídas seguirá a mesma regra que, no que couber, vigora para os condomínios edilícios à luz do art. 938 do CC. Em suma, apenas os efetivos ou os potenciais causadores da queda respondem. Isso significa que, no caso de coisa caída em um determinado momento, somente o multiproprietário titular da unidade periódica desse período pode vir a ser responsabilizado pela coisa caída se não for identificado o efetivo causador da coisa (“queda anônima”). Em outras palavras, se, em janeiro, uma pedra cai do prédio em cima de um carro, caso não seja identificada a unidade de onde partiu a pedra, só o multiproprietário titular da unidade em janeiro poderá vir a ser responsabilizado civilmente em conjunto com os outros condôminos do mesmo período.
Dessa forma, quem adquirir unidade periódicas não poderá ser responsabilizado por coisas caídas fora do seu período.
13. RESPONSABILIDADE POR RUÍNA DO PRÉDIO
No caso de ruína do prédio, todos os proprietários respondem solidariamente, mesmo os condôminos multiproprietários de período diverso (art. 937, CC). Fica, porém, assegurado o direito de regresso contra o causador da ruína.
14. PERECIMENTO OU DETERIORAÇÃO DO IMÓVEL E DO MOBILIÁRIO
O mobiliário que guarnece o imóvel também se sujeita à multipropriedade. Logo, cada multiproprietário é dono dele no respectivo período de tempo. Nesse contexto, todos são donos.
Nesse sentido, o art. 1.358-J, II, do CC, ao fixar a responsabilidade do multiproprietário pelos danos caudados ao imóvel e ao mobiliário durante seu período, precisa ser interpretado com as regras gerais do “res perit domino” (art. 233 e ss, CC) e da responsabilidade subjetiva (art. 927, CC).
Assim, o art. 1.358-J, II, do CC só se aplica quando houver culpa do multiproprietário ou dos autorizados por ele a estar no bem. É a regra da responsabilidade objetiva. Se, porém, o dano decorrer de um desgaste natural da coisa, não há dever de indenizar, pois o prejuízo é de todos os donos, ou seja, de todos os multiproprietários. Trata-se do “res perit domino”. De fato, o art. 1358-J, II, do CC não se aplica para esses casos de perecimento ou deterioração sem culpa.
Essa nos parece a melhor leitura do referido dispositivo, que se vale de termos como “responder” e “dano”, os quais pressupõem essas ideias expostas. Desse modo, se a torneira de uma pia, pelo seu desgate natural, parar de funcionar após o uso de um multiproprietário, o conserto deverá ser custeado por todos. Admite-se, no entanto, pacto em sentido contrário mediante previsão na convenção (art. 1.358-G, V, CC).

15. CAPACIDADE DE SER PARTE DE PROCESSOS JUDICIAIS
  A multipropriedade é um condomínio e atrai subsidiariamente as regras de condomínio edilício. Daí decorre que, com sua instituição, nasce um sujeito despersonalizado, o condomínio multipropriedade, o qual tem capacidade de ser parte em processos judiciais para exercer seus direitos e cumprir seus deveres.
Esse sujeito despersonalizado será representado pelo administrador, que equivale, mutatis mutandi, à figura do síndico no condomínio edilício. O CC optou por designar o síndico do condomínio multiproprietário de administrador (arts. 1.358-J, III, e 1.358-M do CC).
O nome da parte será formado pela expressão “condomínio em multipropriedade da” acompanhada da identificação do imóvel, salvo se, no ato de instituição, for dado um nome diverso. Exemplos (com endereços fictícios): (1) condomínio em multipropriedade do imóvel da Rua Presidente Vargas n. 1000, Vila Nova, São Paulo/SP; (2) condomínio em multipropriedade do apartamento 304 do Edifício Vila Nova. Entendemos que o nome do condomínio deverá estar previsto no ato de instituição, apesar do silêncio legal. Isso, porque o condomínio multiproprietário é sujeito de direito.
Se se tratar de um condomínio edilício com unidades total ou parcialmente em regime de multipropriedade, haverá, como entes despersonalizados, o condomínio edilício e os condomínios em multipropriedade relativos às unidades que se sujeitaram ao regime multiproprietário. Nada impede que o síndico do condomínio edilício seja o administrador de cada um dos condomínios multiproprietários: o que não é proibido no Direito Privado é permitido.

16.  PENHORABILIDADE DA UNIDADE PERIÓDICA POR DÍVIDA PESSOAL DO RESPECTIVO MULTIPROPRIETÁRIO

  Credores pessoais de um multiproprietário podem penhorar a sua respectiva unidade periódica, mas jamais poderão penhorar apenas os móveis que guarnecem o imóvel em regime de condomínio multiproprietário. Isso, porque o devedor não é titular do mobiliário isoladamente, mas sim de um direito real de propriedade periódico, que, de forma indivisível (art. 1.358-D, I, CC), alcança o imóvel e os respectivos mobiliários na respectiva fração de tempo.

17. ANTICRESE LEGAL PARA TIME SHARING EM CONDOMÍNIO EDILÍCIO EM REGIME DE POOL: PROBLEMAS DE CONSTITUCIONALIDADE

No caso de o condomínio multiproprietário estar inadimplente e de o imóvel estar em prédio sujeito a um regime de pool, ele pode ser proibido de usar sua unidade periódica para que sua unidade seja explorada em regime de pool a fim de que o lucro líquido obtido seja utilizado para o pagamento da dívida (art. 1.358-S, parágrafo único, CC).
O dispositivo prevê o que chamaremos de “anticrese legal” da unidade periódica para o pagamento das contribuições condominiais.
Há algumas cautelas a serem tomadas para evitar inconstitucionalidade do dispositivo.
Antes de tudo, a correta interpretação é a de que as três medidas previstas nos incisos do parágrafo único do art. 1.358-S do CC devem ser aplicadas em conjunto. Logo, não se pode simplesmente proibir o multiproprietário de usar a unidade periódica, sem que ela passe a ser utilizada no regime de pool para pagamento da dívida. A mera proibição, por si só, nos parece inconstitucional por ser uma medida pura de coerção indireta sem intervenção jurisdicional e por violar o direito de propriedade.
A segunda cautela é que a efetivação dessa anticrese legal necessariamente deve ser precedida de um procedimento em que envolva notificação prévia do multiproprietário inadimplente para: (1) purgar a mora por aplicação analógica do art. 404 do CC ou (2) apresentar defesa com direito a recurso por aplicação analógica do art. 56 do CC. Sem isso, haverá inconstitucionalidade por ofensa aos princípios constitucionais do contraditório. Trata-se do que chamamos de princípio do direito ao aviso prévio a uma sanção, sobre o qual falaremos em outro texto.
A terceira cautela é a de que essa anticrese legal só pode ser aplicada se a submissão do prédio (rectius, do condomínio edilício) a um regime de poolocorreu no ato da instituição do condomínio multiproprietário ou por meio de deliberação posterior que tenha contado com votação favorável do titular da unidade periódica (o atual ou os anteriores). É que a anticrese legal implica uma restrição especificamente aos multiproprietários quanto ao exercício do seu direito de propriedade exclusiva da unidade periódica e, portanto, depende de ato de vontade prévia dele ou dos anteriores titulares.
A quarta cautela é que, apesar da omissão legal, a submissão do condomínio edilício com unidades em multipropriedade ao regime de pool na forma do parágrafo único do art. 1.358-S do CC precisa ser averbada em todas as matrículas-filhas, ou seja, em todas as matrículas das unidades periódicas, pois, ao restringir os poderes inerentes ao direito real de propriedade periódico, está a modificar o registro de propriedade a atrair a obrigatoriedade de averbação por força do art. 246 da LRP. Sem essa averbação, não há eficácia erga omnes do multipropriedade ao regime de pool nem à correlata anticrese legal. Se alguém comprar uma unidade periódica sem que, em sua matrícula, esteja averbado o regime de pool, ele não poderá ser constrangido ao que estamos a chamar de “anticrese legal”.

18. INCONSTITUCIONALIDADE DE MECANISMOS COERÇÃO INDIRETA PARA COBRANÇA DE DÍVIDAS: a questão da renúncia translativa condicionada à situação de adimplência do multiproprietário

Quando a multipropriedade recair sobre unidades de um condomínio edilício, o multiproprietário pode renunciar à titularidade de sua unidade periódica ao condomínio edilício, salvo se estiver inadimplente com obrigações propter rem (art. 1.358-T, CC).
Em primeiro lugar, entendemos que esse dispositivo não impede uma renúncia abdicativa do imóvel na forma do art. 1.275, II, do CC. Nesse caso, basta que o multiproprietário, por meio de escritura pública – se seu bem periódico for de valor a 30 salários mínimos (art. 108, CC) –, manifestar sua renúncia e inscrever a escritura na matrícula do imóvel. Nesse caso, a unidade periódica se tornará um bem vago e será revertido em favor do município, como sucede no caso de vacância dos bens. Nesse caso, não há o fato gerador do ITCD, pois a renúncia abdicativa não envolve transmissão de bem.
De fato, pela leitura do art. 1.358-T do CC, fica criada uma figura chamada de “renúncia translativa”, que - assim como sucede a renúncia translativa de herança - é, na verdade, uma transmissão gratuita da coisa para um terceiro. E, como tal, será fato gerador do ITCD. Todavia, por força do advérbio “somente” no texto do referido dispositivo, essa renúncia translativa só pode ser feita em favor do condomínio edilício cujas unidades estejam em regime de multipropriedade. Nesse caso, o condomínio edilício só poderá recusar receber a propriedade da unidade periódica se o multiproprietário estiver inadimplente com suas obrigações propter rem.
Não faz sentido adotar outra interpretação, sob pena de inconstitucionalidade.
 Entender que ficou vedada a renúncia abdicativa do art. 1.275, II, do CC, além de contrariar o texto do próprio caput do art. 1.358-T do CC, acarretaria inconstitucionalidade por ofensa ao direito de propriedade por três motivos.
A primeira razão é a de que é imanente ao direito de propriedade a faculdade de dispor da coisa (ius abutendi), de modo que o proprietário pode transferir a terceiros ou simplesmente torná-la vaga (destruí-la juridicamente).
O segundo fundamento é que o condomínio edilício com unidades em regime multiproprietário não pode enriquecer-se com a suposta obrigatoriedade de o multiproprietário só pode renunciar a propriedade em favor dele. Isso seria um enriquecimento sem causa fruto de uma restrição indevida ao direito de propriedade.
O terceiro motivo é que impedir que o multiproprietário inadimplente de “se livrar” da unidade periódica que mensalmente gera novos encargos propter rem (especialmente a título de IPTU e de contribuição condominial) frustraria a faculdade de dispor da coisa, a qual é inerente ao direito de propriedade. Condicionar a renúncia da propriedade ao pagamento das dívidas propter rem vencidas seria obrigar que o multiproprietário continue sujeito ao agravamento de sua situação com a superveniência de novos fatos geradores das obrigações propter rem.
De fato, o multiproprietário tem de poder estancar essa fonte de dívidas propter rem por meio da renúncia à propriedade. É evidente que, até a data da renúncia, o multiproprietário terá de responder pelas dívidas vencidas, indenizando o credor por meio do pagamento dos respectivos encargos moratórios (multas, juros moratórias, correção monetária e indenização complementar, na forma dos arts. 389 e seguintes do CC). O credor não sofrerá prejuízo algum com a renúncia, pois, além de a demora no pagamento já ser compensada com os encargos moratórios, ele poderá promover a excussão da coisa mesmo após a renúncia diante da natureza propter rem de seu crédito. Aprisionar o multiproprietário a essa condição jurídico-real “ad seculorum” para ter de arcar com novos fatos geradores de dívidas propter rem seria absolutamente desproporcional, engrossando o coro da inconstitucionalidade com a ofensa ao princípio da proporcionalidade.
Portanto, entendemos que a interpretação adequada do art. 1.358-T do CC é a de ele não impede a renúncia abdicativa do art. 1.275, II, do CC e a de que ele se restringe ao caso da renúncia translativa em favor do condomínio edilício, o qual só poderá recusar assumir a propriedade da coisa renunciada na hipótese do parágrafo único do art. 1.358-T do CC, ou seja, na hipótese de pendência de dívidas propter rem. Em suma, a renúncia translativa é um direito subjetivo do multiproprietário adimplente em transferir a coisa para o condomínio edilício.
Caso, porém, alguém venha a entender que o dispositivo proíbe a renúncia abdicativa e só admite a renúncia translativa para o condomínio edilicio, inevitavelmente o parágrafo único do art. 1.358-T do CC terá de ser declarado inconstitucional por ofensa: (1) ao direito de propriedade, por esvaziar o “ius abutendi”; (2) ao princípio da proporcionalidade, pois esse dispositivo impediria o multiproprietário de estancar a sangria de novas dívidas propter rem que viriam a surgir com a permanência forçada de sua condição de multiproprietário; (3) à livre iniciativa, pois esse preceito impede a liberdade do multiproprietário em desvencilhar-se da condição jurídico-real e inflige-lhe uma verdadeira “sanção política” como meio de coerção indireta de cobrança de dívida.
19. OBRIGATORIEDADE DE AVERBAÇÃO DO REGIME DE POOLOU DE INTERCÂMBIO NA MATRÍCULA DAS UNIDADES PERIÓDICAS
Apesar do silêncio legal, é necessário que a submissão da unidade periódica ao regime de pool ou de intercâmbio seja averbada na matrícula da unidade periódica para ter eficácia contra terceiros, pois esses regimes modificam o registro da propriedade periódica e, por isso, tem de ser necessariamente averbado à luz do art. 246, LRP.
Sem essa averbação, caso o multiproprietário aliene seu bem a um terceiro, este não terá de respeitar o vínculo de pool ou de intercâmbio firmado pelo anterior multiproprietário, pois, diante da falta de inscrição no álbum imobiliário, esse vínculo era meramente obrigacional sem eficácia real (ou seja, sem eficácia contra terceiros).

20. LIMITES DE ATUAÇÃO DO ADMINISTRADOR PARA PAGAMENTO DO IPTU
O administrador é mandatário legal apenas para atos de mera gestão ordinária da multipropriedade, assim entendida a gestão das questões comuns (art. 1.358-M, CC).
Logo, seu mandato não inclui a possibilidade de o administrador pagar o IPTU, salvo autorização expressa do condomínio ou previsão no estatuto social. Havendo essa autorização, o administrador terá um mandato convencional (e não legal) e, nessa condição, ele apenas poderá pagar o IPTU com o dinheiro repassado pelo próprio multiproprietário.
Não pode o administrador usar o dinheiro pago por outros multiproprietários para pagar o IPTU de uma unidade periódica cujo titular está inadimplente.
Esse raciocínio vale para também para o caso de administrador profissional, que é exigido para o caso de multipropriedade em unidades de condomínios edilícios na forma do art. 1.358-R do CC.

21. OBRIGATORIEDADE DE ADMINISTRADOR PROFISSIONAL NO CASO DE MULTIPROPRIEDADE EM UNIDADE DE CONDOMÍNIO EDILÍCIO: problemas de constitucionalidade

No caso de multipropriedade instituída em unidade de condomínio edilício, obrigatoriamente terá de haver a contratação de um administrador profissional, o qual passará a ser administrador não apenas do condomínio edilício, mas também de todas os condomínios multiproprietários.
Não necessariamente esse administrador profissional terá de ser o síndico do condomínio edilício e dos condomínios multiproprietários. Todavia, se o administrador profissional for pessoa diversa, os síndicos ficarão com função gestora limitada a intermediar o diálogo dos condôminos com esse administrador profissional, convocando assembleias, assinando, em nome do condomínio, o contrato de prestação de serviço com esse administrador profissional e repassando informações para os condôminos. Caberá ao administrador profissional as funções gestoras dos condomínios edilícios e multiproprietários, como a gestão da conta bancária do condomínio, a contratação de funcionários, a realização de obras etc.
De qualquer forma, entendemos pela inconstitucionalidade do dispositivo ao exigir um administrador profissional por ofensa à liberdade profissional e à livre iniciativa. Não há motivos para essa reserva de mercado a quem seja inscrito no conselho profissional dos administradores. Outras pessoas, ainda que não sejam profissionais, poderiam exercer essa função. O próprio síndico, nomeado livremente pelos condomínios, poderiam desempenhar a função. Temos, portanto, que o art. 1.358-R do CC merece interpretação conforme à Constituição Federal para que seja lido no sentido de que a expresso “administrador profissional” pode ser entendida como qualquer pessoa capaz, ainda que sem inscrição em conselho profissional de administrador, e pode ser o próprio síndico do condomínio edilício.
Ainda que assim não fosse, no mínimo, tem-se de dar interpretação restritiva ao preceito para o restringir a casos em que os multiproprietários sejam considerados consumidores. Assim, se, em um condomínio edilício composto por 4 unidades pertencentes a amigos, é autorizado que cada unidade se sujeite a uma multipropriedade em benefício dos respectivos parentes, não há razão alguma para burocracias maiores. Não há relação de consumo nesse ambiente fraterno-familiar e, portanto, jamais se poderia entender pela obrigatoriedade de um administrador profissional.
22. CONCLUSÃO
A lei em pauta é um marco legal relevantíssimo para o direito brasileiro. A doutrina e a jurisprudência terão muito trabalho para explorar o tema. Faltará, ainda, o legislador nos brindar com uma disciplina da multipropriedade para bens móveis diante de sua importância social. Enquanto isso, convém que seja estimulada a criatividade dos juristas para evitar o desperdício de um recurso tão escasso, como são os imóveis, dando ferramentas jurídicas idôneas para permitir a exploração do econômica dos bens.

[1] VIEGAS DE LIMA, Frederico Henrique. Aspectos teóricos da multipropriedade no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, 658/40.(Disponível em: https://bdjur.tjdft.jus.br/xmlui/handle/tjdft/36335).
[2] TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. Editora Saraiva, São Paulo: 1993.
[6] Essa é uma das melhores formas de fazer valer a função social da propriedade, como sói ensinar em aula o Professor Frederico Henrique Viegas de Lima.
[7] Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73).
[8] Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73).
[9] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Msg/VEP/VEP-763.htm. Acesso em 22 de dezembro de 2018.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

RESUMO. INFORMATIVO 638 DO STJ.

RESUMO. INFORMATIVO 638 DO STJ, 19 DE DEZEMBRO DE 2018.
 SÚMULA N. 620. A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida. Segunda Seção, julgado em 12/12/2018, DJe 17/12/2018.
 SÚMULA N. 621. Os efeitos da sentença que reduz, majora ou exonera o alimentante do pagamento retroagem à data da citação, vedadas a compensação e a repetibilidade. Segunda Seção, julgado em 12/12/2018, DJe 17/12/2018.
 SÚMULA N. 623. As obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor. Primeira Seção, julgado em 12/12/2018, DJe 17/12/2018.
 SÚMULA N. 629. Quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar. Primeira Seção, julgado em 12/12/2018, DJe 17/12/2018.
 PROCESSO
REsp 1.712.163-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 08/11/2018, DJe 26/11/2018 (Tema 990)
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Plano de saúde. Fornecimento de medicamento não registrado pela ANVISA. Obrigatoriedade. Ausência. (Tema 990)
DESTAQUE
As operadoras de plano de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamento não registrado pela ANVISA.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Inicialmente, cumpre destacar que a Lei n. 6.360/1976 estabelece que estão sujeitos às normas de vigilância sanitária os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos (art. 1º) e que nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde (art. 12). Além disso, o art. 16 desta lei prevê os requisitos específicos que devem ser efetivamente atendidos para o registro de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, dentre eles, que o produto, através de comprovação científica e de análise, seja reconhecido como seguro e eficaz para o uso a que se propõe e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias (inciso II). Nessa mesma linha, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou na defesa da indispensabilidade do referido registro pela ANVISA, nos termos do voto condutor do acórdão proferido no julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n. 175/CE, Relator o Ministro Gilmar Mendes, após colheita de elementos sobre o tema da saúde em audiência pública. Cumpre salientar que a obrigatoriedade do registro é essencial à garantia à saúde pública, tendo em conta que tal medida é fundamental para atestar a segurança e a eficácia do medicamento, dever este que recai sobre o Estado. Logo, não é possível o Judiciário impor às operadoras de plano de saúde que realizem ato tipificado como infração de natureza sanitária, pois isso implicaria manifesta vulneração do princípio da legalidade previsto constitucionalmente (REsp n. 874.976/MT, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJe 14/12/2009). Dessa forma, é exigência legal ao fornecimento de medicamento a prévia existência de registro pela ANVISA ou autorização dela.
TERCEIRA TURMA
PROCESSO
REsp 1.584.465-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Atraso em voo internacional. Dano moral presumido (in re ipsa). Inocorrência. Necessidade de comprovação.
DESTAQUE
Na hipótese de atraso de voo, não se admite a configuração do dano moral in re ipsa.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
De início, revela-se importante anotar que esta Corte Superior tem perfilhado o entendimento de que "o dano moral decorrente de atraso de voo prescinde de prova, sendo que a responsabilidade de seu causador opera-se, in re ipsa, por força do simples fato da sua violação em virtude do desconforto, da aflição e dos transtornos suportados pelo passageiro" (REsp 299.532/SP, 4ª Turma, DJe 23/11/2009). Contudo, a presunção de dano moral in re ipsa, independentemente da duração do atraso e das demais circunstâncias envolvidas, exige maiores reflexões sobre a controvérsia. É que vários outros fatores devem ser considerados a fim de que se possa investigar acerca da real ocorrência do dano moral, exigindo-se, por conseguinte, a prova, por parte do passageiro, da lesão extrapatrimonial sofrida. Dizer que é presumido o dano moral nas hipóteses de atraso de voo é dizer, inevitavelmente, que o passageiro, necessariamente, sofreu abalo que maculou a sua honra e dignidade pelo fato de a aeronave não ter partido na exata hora constante do bilhete , frisa-se, abalo este que não precisa sequer ser comprovado, porque decorreria do próprio atraso na saída da aeronave em si. Por oportuno, convém mencionar que as circunstâncias que envolvem o caso concreto servirão de baliza para a possível comprovação e a consequente constatação da ocorrência do dano moral. A exemplo, pode-se citar particularidades a serem observadas: I) a averiguação acerca do tempo que se levou para a solução do problema, isto é, a real duração do atraso; II) se a companhia aérea ofertou alternativas para melhor atender aos passageiros; III) se foram prestadas a tempo e modo informações claras e precisas por parte da companhia aérea a fim de amenizar os desconfortos inerentes à ocasião; IV) se foi oferecido suporte material (alimentação, hospedagem, etc.) quando o atraso for considerável; V) se o passageiro, devido ao atraso da aeronave, acabou por perder compromisso inadiável no destino, dentre outros.
PROCESSO
REsp 1.731.735-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 13/11/2018, DJe 22/11/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Despesas condominiais. Imóvel objeto de alienação fiduciária. Responsabilidade do credor fiduciário. Consolidação de sua propriedade plena. Necessidade.
DESTAQUE
A responsabilidade do credor fiduciário pelo pagamento das despesas condominiais dá-se quando da consolidação de sua propriedade plena quanto ao bem dado em garantia, ou seja, quando de sua imissão na posse do imóvel.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A Lei n. 9.514/1997 deixou expressamente consignado, em seu art. 23, parágrafo único, que "com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel". Com o advento da Lei n. 10.931/2004 introduziu-se o § 8º ao art. 27 da Lei n. 9.514/1997, segundo o qual: "Responde o fiduciante pelo pagamento dos impostos, taxas, contribuições condominiais e quaisquer outros encargos que recaiam ou venham a recair sobre o imóvel, cuja posse tenha sido transferida para o fiduciário, nos termos deste artigo, até a data em que o fiduciário vier a ser imitido na posse". Mais recentemente, essa divisão foi reafirmada com a edição da Lei n. 13.043/2014, que introduziu o art. 1.368-B ao CC/2002. Aparentemente, com a interpretação literal dos mencionados dispositivos legais, chega-se à conclusão de que o legislador procurou mesmo proteger os interesses do credor fiduciário, que tem a propriedade resolúvel como mero direito real de garantia voltado à satisfação de um crédito. Ocorre que a proteção indefinida do credor fiduciário contrasta-se com outro interesse digno de tutela: o interesse dos titulares de créditos gerados pelo próprio bem dado em garantia (a exemplo do IPTU, das despesas condominiais, etc.) que, se não puderem satisfazê-lo mediante a penhora ou excussão da coisa, ficarão desprotegidos. A fim de estancar eventuais choques de interesses porventura existentes, uma solução que se admite é a de que o devedor fiduciante, titular de direito real de aquisição – e que possui valor econômico –, tenha tal direito penhorado pelos demais credores em geral, em especial pelos credores de despesas geradas pelo próprio bem – a exemplo do condomínio quando da cobrança de despesas condominiais. Nessa hipótese o credor das despesas originadas pelo bem não adquire a propriedade plena, mas sub-roga-se na posição jurídica de titular de direito expectativo real de aquisição do devedor fiduciante. O credor fiduciário, por sua vez, mantêm íntegra a sua garantia. Dessume-se que, de fato, a responsabilidade do credor fiduciário pelo pagamento das despesas condominiais dá-se quando da consolidação de sua propriedade plena quanto ao bem dado em garantia, ou seja, quando de sua imissão na posse do imóvel.
PROCESSO
REsp 1.715.438-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 13/11/2018, DJe 21/11/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Ação de alimentos. Mecanismo de integração posterior do polo passivo. Natureza jurídica. Litisconsórcio facultativo ulterior simples. Art. 1.698 do CC/2002. Autor com plena capacidade processual. Exclusividade.
DESTAQUE
Em ação de alimentos, quando se trata de credor com plena capacidade processual, cabe exclusivamente a ele provocar a integração posterior no polo passivo.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A majoritária doutrina, ao interpretar o art. 1.698 do CC/2002, que trata do litisconsórcio facultativo ulterior simples, tem se posicionado no sentido de que a obrigação alimentar não é solidária, mas, sim, divisível, ao fundamento de que não há disposição legal que autorize a cobrança integral do valor de apenas um dos codevedores, que arcam apenas com a cota que puder prestar, no limite de suas possibilidades. A despeito da convergência acerca da divisibilidade da obrigação alimentar, remanesce amplo dissenso doutrinário acerca do mecanismo processual a ser adotado para que se promova a integração, ao polo passivo, dos demais devedores que não foram inicialmente demandados pelo credor, bem acerca da legitimidade para requerer essa posterior integração. É correto afirmar que a primeira definição da necessidade dos alimentos incumbe essencialmente ao autor, a quem caberá delinear, na causa de pedir de sua petição inicial, quais são os custos e as despesas necessárias à sua sobrevivência digna, cabendo-lhe ainda mensurar, a partir desse quadro, quais, entre os potenciais obrigados, possuiriam a capacidade financeira de arcar com os alimentos necessários, inserindo no polo passivo aqueles aptos a suportar integralmente a pretensão deduzida. Assim, quando se tratar de credor de alimentos que reúna plena capacidade processual, cabe a ele, exclusivamente, provocar a integração posterior do polo passivo, devendo a sua inércia ser interpretada como concordância tácita com os alimentos que puderem ser prestados pelo réu por ele indicado na petição inicial, sem prejuízo de eventual e futuro ajuizamento de ação autônoma de alimentos em face dos demais coobrigados. Contudo, nas hipóteses em que for necessária a representação processual do credor de alimentos incapaz, cabe também ao devedor provocar a integração posterior do polo passivo, a fim de que os demais coobrigados também componham a lide, inclusive aquele que atua como representante processual do credor dos alimentos, bem como cabe provocação do Ministério Público, quando a ausência de manifestação de quaisquer dos legitimados no sentido de chamar ao processo os demais coobrigados possa causar prejuízos aos interesses do incapaz. No que tange ao momento processual adequado para a integração do polo passivo pelos coobrigados, cabe ao autor requerê-lo em sua réplica à contestação; ao réu, em sua contestação; e ao Ministério Público, após a prática dos referidos atos processuais pelas partes, respeitada, em todas as hipóteses, a impossibilidade de ampliação objetiva ou subjetiva da lide após o saneamento e organização do processo, em homenagem ao contraditório, à ampla defesa e à razoável duração do processo.
QUARTA TURMA
PROCESSO
REsp 1.346.584-PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, por unanimidade, julgado em 09/10/2018, DJe 22/11/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL
TEMA
Protesto legítimo. Quitação da dívida. Ausência da entrega da carta de anuência. Dever de enviar o documento hábil ao cancelamento do protesto. Imposição tácita ao credor. Impossibilidade.
DESTAQUE
Não há como impor tacitamente ao credor o dever de enviar, sem provocação, o documento hábil ao cancelamento do legítimo protesto.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
De início, ressalta-se que o art. 26, § 1º, da Lei n. 9.492/1997 estabelece que o cancelamento do registro do protesto será solicitado diretamente no Tabelionato de Protesto de Títulos, por qualquer interessado, mediante apresentação do documento protestado, cuja cópia ficará arquivada, e que apenas na impossibilidade de apresentação do original do título ou documento de dívida protestado será exigida a declaração de anuência, com identificação e firma reconhecida, daquele que figurou no registro de protesto como credor, originário ou por endosso translativo. Outrossim, como o pagamento do título de crédito, em regra, implica o resgate da cártula, cogitar ser dever do credor enviar, sem qualquer provocação do interessado, o próprio título de crédito, seria providência inusual e claramente temerária para os interesses do próprio devedor e eventuais coobrigados. Ora, como o princípio da unitariedade do protesto esclarece que um título de crédito pode se submeter a apenas um protesto, e, como visto, a Lei do Protesto dispõe que qualquer interessado pode requerer o seu cancelamento - e, evidentemente, quitar a dívida, que pode envolver coobrigados -, nesses casos, o mais prudente seria mesmo o credor aguardar provocação daquele que quitou em nome próprio ou de comum acordo com os demais coobrigados para entregar-lhe o título protestado. Dessa forma há que se entender que é inequívoco dever do credor o fornecimento do documento hábil ao cancelamento do protesto, mas apenas tão logo seja provocado.