domingo, 30 de setembro de 2018

RESUMO. INFORMATIVO 632 DO STJ.

RESUMO. INFORMATIVO N. 632 DO STJ. SETEMBRO DE 2018.
RECURSOS REPETITIVOS
PROCESSO
REsp 1.680.318-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 22/08/2018, DJe 24/08/2018 (Tema 989)
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO TRABALHO
TEMA
Plano de saúde coletivo empresarial. Contribuição exclusiva do empregador. Ex-empregado aposentado ou demitido sem justa causa. Assistência médica. Manutenção. Não cabimento. Previsão em negociação coletiva. Excepcionalidade. Coparticipação do usuário. Irrelevância. Salário indireto. Descaracterização. Tema 989.
DESTAQUE
Nos planos de saúde coletivos custeados exclusivamente pelo empregador não há direito de permanência do ex-empregado aposentado ou demitido sem justa causa como beneficiário, salvo disposição contrária expressa prevista em contrato ou em acordo/convenção coletiva de trabalho, não caracterizando contribuição o pagamento apenas de coparticipação, tampouco se enquadrando como salário indireto.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A questão controvertida na presente via recursal consiste em definir se o ex-empregado aposentado ou demitido sem justa causa faz jus à manutenção no plano de saúde coletivo empresarial quando, na atividade, a contribuição foi suportada apenas pela empresa empregadora. Como cediço, é assegurado ao trabalhador demitido sem justa causa ou ao aposentado que contribuiu para o plano de saúde em decorrência do vínculo empregatício o direito de manutenção como beneficiário nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral (arts. 30 e 31 da Lei n. 9.656/1998). Extrai-se, assim, que uma das condições exigidas para a aquisição desse direito é o empregado contribuir, na atividade, para o custeio do plano de saúde, não podendo ser considerados para tanto os pagamentos a título exclusivo de coparticipação. Com efeito, nos termos do art. 30, § 6º, da Lei n. 9.656/1998, não é considerada contribuição a coparticipação do consumidor, única e exclusivamente, em procedimentos, como fator de moderação, na utilização dos serviços de assistência médica ou hospitalar, como ocorre nos planos coletivos custeados integralmente pela empresa. Desse modo, contribuir para o plano de saúde significa, nos termos da lei, pagar uma mensalidade, independentemente de se estar usufruindo dos serviços de assistência médica. A coparticipação, por sua vez, é um fator de moderação, previsto em alguns contratos, que consiste no valor cobrado do consumidor apenas quando utilizar o plano de saúde, possuindo, por isso mesmo, valor variável, a depender do evento sucedido. Sua função, portanto, é a de desestimular o uso desenfreado dos serviços da saúde suplementar. Ademais, quanto à caracterização como salário indireto do plano de assistência médica, hospitalar e odontológica concedido pelo empregador, o art. 458, § 2º, IV, da CLT é expresso em dispor que esse benefício não possui índole salarial, sejam os serviços prestados diretamente pela empresa ou por determinada operadora. Efetivamente, o plano de saúde fornecido pela empresa empregadora, mesmo a título gratuito, não possui natureza retributiva, não constituindo salário-utilidade (salário in natura), sobretudo por não ser contraprestação ao trabalho. Ao contrário, referida vantagem apenas possui natureza preventiva e assistencial, sendo uma alternativa às graves deficiências do Sistema Único de Saúde (SUS), obrigação do Estado.
SEGUNDA SEÇÃO
PROCESSO
EREsp 1.280.825-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, por maioria, julgado em 27/06/2018, DJe 02/08/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Responsabilidade civil contratual e extracontratual. Regimes jurídicos distintos. Prescrição. Unificação. Impossibilidade.
DESTAQUE
É adequada a distinção dos prazos prescricionais da pretensão de reparação civil advinda de responsabilidades contratual e extracontratual.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
No direito privado brasileiro, a responsabilidade extracontratual é historicamente tratada de modo distinto da contratual, por um motivo muito simples: são fontes de obrigações muito diferentes, com fundamentos jurídicos diversos. Essa diferença fática e jurídica impõe o tratamento distinto do prazo prescricional, pois a violação a direito absoluto e o inadimplemento de um direito de crédito não se confundem nem na tradição jurídica pátria, nem na natureza das coisas. Com efeito, é possível encontrar muitas distinções de regime jurídico entre a responsabilidade contratual e a extracontratual, inclusive com relação: à capacidade das partes, quanto à prova do prejuízo; à avaliação da culpa entre os sujeitos envolvidos no dano; aos diferentes graus de culpa para a imputação do dever de indenizar; ao termo inicial para a fixação do ressarcimento; e, por fim, à possibilidade de prefixação do dano e de limitar ou excluir a responsabilidade, pois somente a responsabilidade contratual permite fixar, limitar ou mesmo excluir o dever de indenizar. Analisando as diferenças fáticas entre a responsabilidade contratual e a extracontratual, há uma sensível diferença quanto ao grau de proximidade entre as partes contratuais nas suas relações sociais. Na responsabilidade extracontratual, os sujeitos encontram-se no grau máximo de distanciamento. Em realidade, nessas circunstâncias, as partes entram em contato pelo mero fato de viverem em sociedade, sem qualquer negociação ou aproximação prévias. Porém, quando se trata de responsabilidade por inadimplemento contratual, há previamente uma relação entre as partes que se protrai no tempo, normalmente precedidas de aproximação e negociação, que ajustam exatamente o escopo do relacionamento entre elas. Essas relações não ocorrem por acaso, ou pelo mero "viver em sociedade", mas derivam de um negócio jurídico. Normalmente, há um mínimo de confiança entre as partes, e o dever de indenizar da responsabilidade contratual encontra seu fundamento na garantia da confiança legítima entre elas. Do ponto de vista pragmático, também se mostra adequada a distinção dos prazos. Em contratos mais duradouros, sempre é viável e mais provável que as partes se componham de alguma maneira, de forma a evitar longas e dispendiosas disputas judiciais, o que é improvável de ocorrer na responsabilidade extracontratual.

PROCESSO
EREsp 1.280.825-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, por maioria, julgado em 27/06/2018, DJe 02/08/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Responsabilidade civil. Prescrição. Inadimplemento contratual. Prazo decenal. Interpretação sistemática.
DESTAQUE
É decenal o prazo prescricional aplicável às hipóteses de pretensão fundamentadas em inadimplemento contratual.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O acórdão embargado, da Quarta Turma, aplicou o prazo decenal (art. 205 do CC/2002), enquanto os acórdãos paradigmas, da Terceira Turma, aplicaram o prazo trienal (art. 206, §3º, V, do CC/2002). Inicialmente, registre-se que, nas hipóteses de inadimplemento contratual, ao credor é permitido exigir do devedor o exato cumprimento daquilo que foi avençado. Se houver mora, além da execução específica da prestação, o credor pode pleitear eventuais perdas e danos decorrentes da inobservância do tempo ou modo contratados (arts. 389, 394 e 395 do CC/2002). Na hipótese de inadimplemento definitivo (art. 475 do CC/2002), o credor poderá escolher entre a execução pelo equivalente ou, observados os pressupostos necessários, a resolução da relação jurídica contratual. Em ambas alternativas, poderá requerer, ainda, o pagamento de perdas e danos eventualmente causadas pelo devedor. Assim, há três pretensões potenciais por parte do credor, quando se verifica o inadimplemento contratual, todas interligadas pelos mesmos contornos fáticos e pelos mesmos fundamentos jurídicos, sem qualquer distinção evidente no texto normativo. Tal situação exige do intérprete a aplicação das mesmas regras para as três pretensões. Considerando a logicidade e a integridade da legislação civil, por questão de coerência, é necessário que o credor esteja sujeito ao mesmo prazo para exercer as três pretensões que a lei põe à sua disposição como possíveis reações ao inadimplemento. Nesse sentido, o art. 205 do CC/2002 mantém a integridade lógica e sistemática da legislação civil. Assim, quando houver mora, o credor poderá exigir tanto a execução específica como o pagamento por perdas e danos, pelo prazo de dez anos. Da mesma forma, diante do inadimplemento definitivo, o credor poderá exigir a execução pelo equivalente ou a resolução contratual e, em ambos os casos, o pagamento de indenização que lhe for devida, igualmente pelo prazo de dez anos. Por observância à lógica e à coerência, portanto, o mesmo prazo prescricional de dez anos deve ser aplicado a todas as pretensões do credor nas hipóteses de inadimplemento contratual, incluindo o da reparação de perdas e danos por ele causados.
PROCESSO
REsp 1.569.840-MT, Rel. Min. Francisco Falcão, por unanimidade, julgado em 16/08/2018, DJe 27/08/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Contrato de arrendamento mercantil (leasing). Descaracterização. Prazo mínimo de vigência. Vida útil do bem arrendado.
DESTAQUE
Fica descaracterizado o contrato de arrendamento mercantil (leasing) se o prazo de vigência do acordo celebrado não respeitar o período mínimo estabelecido com base na vida útil do bem arrendado.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
De início, cumpre salientar que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou entendimento no sentido de que o contrato de arrendamento mercantil (leasing) somente poderá ser descaracterizado no caso da ocorrência de um dos cenários jurídicos previstos nos arts. 2º, 9º, 11, §1º, 14 e 23 da Lei n. 6.099/1974. No entanto, verifica-se que o art. 23 da Lei n. 6.099/1974 prevê que o Conselho Monetário Nacional possui autorização para expedir normas regulamentadoras acerca da atividade de arrendamento mercantil, sendo possível, inclusive, a exclusão ou limitação de modalidades de operação. Nesse contexto, com base no conteúdo da sessão do Conselho Monetário Nacional de 28/8/1996, o Banco Central do Brasil publicou a Resolução n. 2.309/1996, a qual, no art. 8º, inciso I, alíneas "a" e "b", de seu anexo, prevê que os contratos de arrendamento mercantil financeiro devem estabelecer o prazo mínimo de vigência, estipulados de acordo com a vida útil do bem arrendado. O prazo delimitado pelo CMN para o arrendamento mercantil financeiro é de: a) dois anos compreendidos entre a data de entrega dos bens à arrendatária, consubstanciada em termo de aceitação e recebimento dos bens, e a data de vencimento da última contraprestação, quando se tratar de arrendamento de bens com vida útil igual ou inferior a cinco anos; ou b) três anos observada a definição do prazo constante da alínea anterior, para o arrendamento de outros bens. Dessa forma, na hipótese de o bem arrendado possuir vida útil superior a cinco anos e o prazo de vigência do contrato for inferior a dois ou três anos, conforme exigido pela referida lei, o contrato de arrendamento fica descaracterizado.
TERCEIRA TURMA
PROCESSO
REsp 1.669.612-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, por unanimidade, julgado em 07/08/2018, DJe 14/08/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Compra e venda de imóvel. Prévio contrato de locação. Manutenção pelo adquirente. Cláusula de vigência. Registro de imóveis. Averbação. Imprescindibilidade.
DESTAQUE
A averbação do contrato com cláusula de vigência no registro de imóveis é imprescindível para que a locação possa ser oposta ao adquirente.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A controvérsia gira em torno de definir se o contrato de locação com cláusula de vigência em caso de alienação precisa estar averbado na matrícula do imóvel para ter validade ou se é suficiente o conhecimento do adquirente acerca da cláusula para proteger o locatário. Registre-se que a lei de locações exige, para que a alienação do imóvel não interrompa a locação, que o contrato seja por prazo determinado, haja cláusula de vigência e que o ajuste esteja averbado na matrícula do imóvel. Na hipótese, apesar de no contrato de compra e venda haver cláusula dispondo que o adquirente se sub-rogaria nas obrigações do locador nos inúmeros contratos de locação, não há referência à existência de cláusula de vigência, muito menos ao fato de que o comprador respeitaria a locação até o termo final. Assim, ausente o registro, não é possível impor restrição ao direito de propriedade, afastando disposição expressa de lei, quando o adquirente não se obrigou a respeitar a cláusula de vigência da locação.

PROCESSO
REsp 1.721.705-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 28/08/2018, DJe 06/09/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Planos de saúde. Negativa de fornecimento de medicação. Tratamento experimental. Uso fora da bula (off-label). Ingerência da operadora na atividade médica. Impossibilidade.
DESTAQUE
A operadora de plano de saúde não pode negar o fornecimento de tratamento prescrito pelo médico, sob o pretexto de que a sua utilização em favor do paciente está fora das indicações descritas na bula/manual registrado na ANVISA (uso off-label).
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O propósito recursal consiste em definir se a operadora de plano de saúde está autorizada a negar tratamento prescrito por médico, sob o fundamento de que sua utilização em favor do paciente está fora das indicações descritas na bula/manual registrado na ANVISA (uso off-label). A Lei n. 9.656/1998 (Lei dos Planos de Saúde) estabelece que as operadoras de plano de saúde estão autorizadas a negar tratamento clínico ou cirúrgico experimental (art. 10, I). Por sua vez, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) editou a Resolução Normativa n. 338/2013, vigente ao tempo da demanda, disciplinando que é considerado tratamento experimental aquele que não possui as indicações descritas na bula/manual registrado na ANVISA (uso off-label). Quanto ao ponto, a jurisprudência do STJ está sedimentada no sentido de que é o médico, e não a operadora do plano de saúde, o responsável pela orientação terapêutica adequada ao paciente. Desse modo, ao estabelecer que a operadora está autorizada a negar cobertura de tratamento clínico ou cirúrgico que "não possui as indicações descritas na bula/manual registrado na ANVISA (uso off-label)", a ANS acaba por substituir abstrata e previamente a expertise médica pela ingerência da operadora. Nesse sentido, a doutrina afirma que "o tratamento previsto no art. 10, I, da Lei n. 9.656/1998 não abrange o uso off-label do medicamento", em reconhecimento de que a resolução normativa da ANS "ultrapassou os limites da mera regulamentação do art. 10, I, da Lei n. 9.656/1998". O caráter experimental a que faz referência este inciso diz respeito ao tratamento clínico ou cirúrgico incompatível com as normas de controle sanitário ou, ainda, aquele não reconhecido como eficaz pela comunidade científica. Assim, a ingerência da operadora, além de não ter fundamento na Lei n. 9.656/98, constitui ação iníqua e abusiva na relação contratual, e coloca concretamente o consumidor em desvantagem exagerada (art. 51, IV, do CDC).

PROCESSO
REsp 1.677.983-MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, por unanimidade, julgado em 26/06/2018, DJe 02/08/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL
TEMA
Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia – CBLC. Negociação de ações mobiliárias. Uso de procuração pública falsa. Responsabilidade civil. Inexistência.
DESTAQUE
A Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia, atual BM&F BOVESPA, não responde civilmente pelos prejuízos decorrentes da negociação de ações mobiliárias mediante uso de procuração pública falsa que não lhe foi apresentada.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Inicialmente cumpre salientar que custódia é a guarda, a atualização e o exercício de direitos inerentes aos títulos depositados em nome dos investidores nas centrais de custódia. A custódia agiliza a negociação dos títulos, pois, para que o investidor possa negociar ações na bolsa de valores, é necessário que elas estejam depositadas na respectiva central de custódia. Nos termos dos arts. 293 da Lei n. 6.404/1976 e 24 da Lei n. 6.385/1976, somente podem prestar esse tipo de serviço as instituições financeiras e as entidades de compensação e liquidação expressamente autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM. Atualmente a CBLC - Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia, associada à BM&F - BOVESPA, é a única central de liquidação e custódia de ações em atividade no país. Vinculados a essa Central de Custódia estão os Agentes de Custódia, entidades autorizadas pela CVM para manter contas de seus clientes nas centrais de custódia. A negociação das ações em bolsa é realizada por meio das instituições custodiantes (Agente de Custódia) que atendem ao investidor. Esses agentes são instituições financeiras (Sociedades Corretoras, Distribuidoras de Valores e Bancos) responsáveis, perante a CBLC, pela abertura, administração e movimentação das contas de custódia dos investidores, seus clientes. Assim, considerando o artigo 35 da Lei n. 6.404/1976, segundo o qual a propriedade da ação escritural presume-se pelo registro na conta de depósito das ações, aberta em nome do acionista nos livros da instituição depositária, é de se concluir que a abertura da conta de custódia não ocorre perante a CBLC, mas perante os agentes de custódia. Com efeito, o art. 2º da Resolução n. 1.655/1989 da CVM, que disciplina a constituição, organização e funcionamento das sociedades corretoras de valores mobiliários, estabelece que a sociedade corretora tem por objeto social intermediar oferta pública e distribuição de títulos e valores mobiliários no mercado, encarregar-se da administração de carteiras e da custódia de títulos e valores mobiliários, exercer as funções de agente emissor de certificados e manter serviços de ações escriturais. De outra parte, o art. 11, III, da Resolução n. 1.655/1989, o art. 40, III, da Resolução n. 1.656/1989 e ainda o art. 39, III, da Resolução n. 2.690/2000, todas editadas pelo CMN, estabelecem que, nas operações realizadas em bolsas de valores, as corretoras são responsáveis pela autenticidade dos endossos em valores mobiliários e legitimidade de procuração ou documentos necessários para a transferência de valores mobiliários. Daí resulta que não se pode imputar à CBLC, atual BOVESPA, nenhuma conduta negligente por deixar de constatar a falsidade da procuração pública com base na qual a corretora de valores procedeu a negociação em Bolsa das ações de seu cliente. Assim, considerando a dinâmica de funcionamento própria do mercado de ações, é de se concluir que a BOVESPA não pode ser responsabilizada pelos prejuízos decorrentes da negociação de títulos mediante uso de procuração falsa apresentada a corretora de valores.

PROCESSO
REsp 1.559.791-PB, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 28/08/2018, DJe 31/08/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Execução de título extrajudicial. Réu falecido antes do ajuizamento da ação. Habilitação, sucessão ou substituição processual. Desnecessidade. Ausência de citação válida. Emenda à inicial para correção do polo passivo. Faculdade. Pretensão dirigida ao espólio. Arts. 43, 265 e 1.055 do CPC/1973.
DESTAQUE
É admissível a emenda à inicial, antes da citação, para a substituição de executado pelo seu espólio, em execução ajuizada em face de devedor falecido antes do ajuizamento da ação.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia a definir se a execução em face de devedor falecido antes do ajuizamento da ação deve ser suspensa até o processamento de ação de habilitação de sucessores ou se, ao revés, é admissível a emenda à inicial, antes da citação, para a substituição do executado falecido pelo seu espólio. De acordo com os arts. 43 e 1.055, ambos do CPC/1973, os institutos da habilitação, sucessão ou substituição processual têm relevância quando há o falecimento da parte, ou seja, quando o evento morte ocorre no curso do processo, situação diversa da qual o falecimento do devedor ocorre antes da citação. Daí porque, inclusive, não há que se falar em suspensão do processo na forma do art. 265, I, do CPC/1973. Na verdade, a situação em que a ação judicial é ajuizada em face de réu preteritamente falecido revela a existência de ilegitimidade passiva do de cujus, devendo, pois, ser oportunizada ao autor da ação a possibilidade de emendar a petição inicial para regularizar o polo passivo, sobretudo porque, evidentemente, ainda não terá havido ato citatório válido e, portanto, o aditamento à inicial é admissível independentemente de aquiescência do réu, conforme expressamente autorizam os arts. 264 e 294 do CPC/1973, a fim de que o espólio seja o sujeito passivo da relação jurídico-processual em que deduzida a pretensão executiva, especialmente porque o espólio responderá pelas dívidas do falecido (art. 597 do CPC/1973).

PROCESSO
REsp 1.584.441-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, por unanimidade, julgado em 21/08/2018, DJe 31/08/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Sociedade empresarial estrangeira. Representação no Brasil. Art. 835 do CPC/1973 (art. 83 do NCPC). Prestação de caução. Desnecessidade.
DESTAQUE
Não é necessária a prestação de caução para o ajuizamento de ação por sociedade empresarial estrangeira devidamente representada no Brasil.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O sistema processual brasileiro, por cautela, exige a prestação de caução para a empresa estrangeira litigar no Brasil, se não dispuser de bens suficientes para suportar os ônus de eventual sucumbência (art. 835 do CPC/1973). Na verdade, é uma espécie de fiança processual para não tornar melhor a sorte dos que demandam no Brasil, residindo fora, ou dele retirando-se, pendente a lide, pois, se tal não se estabelecesse, o autor, nessas condições, perdendo a ação, estaria incólume aos prejuízos causados ao demandado (EREsp 179.147/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Corte Especial, julgado em 1º/8/2000, DJ 30/10/2000). Entretanto, nos termos do art. 88, I, parágrafo único, do CPC/1973 (correspondente ao art. 21, I, parágrafo único, do NCPC), considera-se domiciliada no território nacional a pessoa jurídica estrangeira que tiver agência, filial ou sucursal estabelecida no Brasil. Desse modo, a sociedade empresarial estrangeira com representante no Brasil não precisa pagar caução para agir em juízo.

QUARTA TURMA
PROCESSO
REsp 1.540.580-DF, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Rel. Acd. Min. Luis Felipe Salomão, por maioria, julgado em 02/08/2018, DJe 04/09/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Responsabilidade civil do médico. Inadimplemento do dever de informação. Especialização da informação e de consentimento específico. Necessidade. Ofensa ao direito à autodeterminação. Dano extrapatrimonial. Configuração.
DESTAQUE
A inobservância do dever de informar e de obter o consentimento informado do paciente viola o direito à autodeterminação e caracteriza responsabilidade extracontratual.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A controvérsia consiste em definir a responsabilidade civil decorrente da inobservância do dever de informação (falta ou deficiência) acerca de procedimento cirúrgico implementado em tratamento neurocirúrgico, que compromete o denominado consentimento informado - manifestação do direito fundamental de autodeterminação do paciente. Registre-se que, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro qualquer norma que imponha o consentimento escrito do paciente, expresso em documento assinado. Diante da inexistência de legislação específica para regulamentação do dever de informação e do direito ao consentimento livre e informado na relação médico-paciente, o Código de Defesa do Consumidor é o diploma que reúne as regras capazes de proteger o sujeito em estado de vulnerabilidade e hipossuficiência, a partir de uma visão da relação contratual, com prevalência do interesse social. Nesse sentido, consoante dispõe o art. 6º, III, do CDC, caracterizada a relação de consumo, o dever de informar pode assumir caráter de direito básico, principal, denominado pela doutrina como dever instrumental, de conduta, dever de proteção ou deveres de tutela. Além disso, no âmbito do direito do consumidor, serão indenizados os danos causados por produto ou serviço defeituoso. A ausência do consentimento informado será considerada defeito tendo em vista a "falta ou insuficiência de instruções sobre a correta utilização do produto ou serviço, bem como sobre riscos por ele ensejados". A falta de segurança pode decorrer da falta de informação da periculosidade de serviço que o consumidor não tenha sido advertido dos riscos a serem suportados. Nesse rumo de ideias, de extrema importância esclarecer que o dano indenizável, não é o dano físico, a piora nas condições físicas ou neurológicas do paciente. Todavia, este dano, embora não possa ser atribuído à falha técnica do médico, poderia ter sido evitado diante da informação sobre o risco de sua ocorrência, que permitiria que o paciente não se submetesse ao procedimento. O dano indenizável é, na verdade, a violação da autodeterminação do paciente que não pôde escolher livremente submeter-se ou não ao risco previsível. Deste modo, pelos critérios tradicionais dos regimes de responsabilidade civil, a violação dos deveres informativos dos médicos seria caracterizada como responsabilidade extracontratual.

PROCESSO
HC 439.973-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. Acd. Min. Antonio Carlos Ferreira, por maioria, julgado em 16/08/2018, DJe 04/09/2018
RAMO DO DIREITO
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Prisão civil. Débito alimentar incontroverso. Teoria do adimplemento substancial. Não aplicabilidade pela via estreita do writ.
DESTAQUE
A teoria do adimplemento substancial não tem incidência nos vínculos jurídicos familiares, revelando-se inadequada para solver controvérsias relacionadas a obrigações de natureza alimentar.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Trata-se de habeas corpus em que se discute a possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial em controvérsias relacionadas a obrigações de natureza alimentar. A par de encontrar um estreito espaço de aplicação no direito contratual – exclusivamente nas hipóteses em que o inadimplemento revela-se de escassa importância quando cotejado com a obrigação como um todo, ao lado de elementos outros cuja análise demanda uma avaliação qualitativa, casuística e aprofundada da avença, incompatível com o rito do habeas corpus –, a teoria do adimplemento substancial não tem incidência nos vínculos jurídicos familiares, menos ainda para solver controvérsias relacionadas a obrigações de natureza alimentar. Com efeito, trata-se de instituto que, embora não positivado no ordenamento jurídico brasileiro, está incorporado em nosso Direito por força da aplicação prática de princípios típicos das relações jurídicas de natureza contratual. Por sua vez, a obrigação alimentar diz respeito a bem jurídico indisponível, intimamente ligado à subsistência do alimentando, cuja relevância ensejou fosse incluído como exceção à regra geral que veda a prisão civil por dívida, o que evidencia ter havido ponderação de valores, pelo próprio constituinte originário, acerca de possível conflito com a liberdade de locomoção, outrossim um direito fundamental de estatura constitucional. Isso porque os alimentos impostos por decisão judicial guardam consigo a presunção de que o valor econômico neles contido traduz o mínimo existencial do alimentando, de modo que a subtração de qualquer parcela dessa quantia pode ensejar severos prejuízos a sua própria manutenção. Além disso, o julgamento sobre a cogitada irrelevância do inadimplemento da obrigação não se prende ao exame exclusivo do critério quantitativo, sendo também necessário avaliar sua importância para satisfazer as necessidades do credor alimentar. Ora, a subtração de um pequeno percentual pode mesmo ser insignificante para um determinado alimentando, mas possivelmente não para outro, mais necessitado. Tem-se que o critério quantitativo não é suficiente nem exclusivo para a caracterização do adimplemento substancial, como já se manifesta parte da doutrina: "Observa-se, ainda, que predomina nos julgados a análise meramente quantitativa da parte inadimplida, principalmente através de percentual, sendo raros os acórdãos que abordam a significância do montante inadimplido em termos absolutos, o que entendemos correto. A ressalva que se faz, nesse ponto, é que o critério quantitativo é o menos relevante e significativo".

sábado, 29 de setembro de 2018

SUBSTITUIÇÃO QUASE-PUPILAR - DEVE SER INTRODUZIDA NO DIREITO BRASILEIRO? ARTIGO DE ZENO VELOSO

Substituição quase-pupilar – deve ser introduzida no direito brasileiro?
Zeno Veloso. - Professor de Direito Civil e de Direito Constitucional Aplicado na Universidade Federal do Pará (aposentado) e na Universidade da Amazônia; Diretor Regional Norte do IBDFAM; membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
1.  O presente estudo é inspirado numa consulta que dei a uma mãe angustiada, cujo problema não pude resolver. Por sinal, nesses já longos anos de atividade profissional, foi o terceiro ou quarto caso semelhante que me apareceu. A senhora devia ter 65 anos de idade. Contou que aos 20 anos, apaixonou-se por um funcionário público que tinha sido transferido de Salvador. Deu-se o que se chama paixão à primeira vista, e do namoro ao noivado pouco tempo transcorreu. A moça descobriu que estava grávida e ainda sentiu-se mais realizada e feliz, pois a data de seu casamento já se aproximava. Mas, para sua surpresa e desapontamento, o rapaz rompeu o compromisso, dizendo que havia sentido saudades de uma ex-namorada e abandonou-a. Além disso, não deu mais notícias, jamais quis saber do filho, evaporou-se, ao ponto de não se saber se ainda vive ou morreu. Sozinha, teve de criar o menino, enfrentando galhardamente dificuldades extremas. Este filho está com 44 anos, nasceu com uma doença mental profunda, grave, permanente e, segundo o atual estágio da ciência médica, irreversível. Em tudo, sem quase nada tirar, depende da mãe. Embora não deva ser chamado assim, por força da Lei nº 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, que, além de muitos outros, alterou o art. 3º do Código Civil, trata-se, na prática, na realidade de sua existência, de um absolutamente incapaz.
A senhora, talvez porque observou no meu olhar alguma expressão de solidariedade, disse: “não tenho queixas, doutor, da vida que tenho vivido, nem fico me lamentando, nem me acho uma heroína, uma ‘mulher maravilha’. Considero, ao contrário, ter sido eleita por Deus, Nosso Senhor, com a missão de cuidar dessa criatura tão amada por Ele e por mim, que foi colocada nesse mundo”. Tenho de confessar que escutei isso com grande emoção e respeito.
A consulente explicou que, não obstante os cuidados que teve de dispensar ao filho, sempre trabalhou muito, bem aplicou seu dinheirinho. É dona de dois apartamentos e de um investimento financeiro. Mas, recentemente, numa visita rotineira a seu clínico, foi pedida uma bateria de exames, e descobriu que está sofrendo de moléstia muito grave. Sabe que, com sua morte, todos os seus bens passarão para esse filho, único e universal herdeiro.
Ela tem uma amiga de confiança, desde os tempos em que ambas eram meninas. Essa amiga muito se afeiçoou a seu filho, gosta muito dele. Poderá ficar como sua curadora.
Entretanto, os bens que irão ao filho, com a morte dele, passarão a seus parentes mais próximos, seguindo a ordem de vocação hereditária, que são quatro primos, que jamais tiveram nenhuma aproximação ou ligação com ele. Ao contrário, rejeitaram-no, trataram-no com total discriminação, com visível desapreço. Nada mais vil e odioso de que o preconceito com relação a uma pessoa deficiente, e só por causa dessa limitação. Perguntou-me, então, a mãe amorosa e aflitíssima o que poderia fazer, legalmente, para que os bens que coubessem a seu filho amado não se transferissem, futuramente, para aqueles parentes que, gratuitamente, o odiavam?
Indagou sobre a possibilidade de fazer um testamento, deixando todos os seus bens para a aludida e querida amiga, futura cuidadora do filho incapaz, com o encargo de ela amparar e proteger esse filho. Respondi que isso era impossível, pois o filho é herdeiro necessário, tendo direito à legítima (arts. 1.845 e 1.846 do Código Civil). O máximo que podia fazer, expliquei, era deixar a metade de seus bens – metade disponível – para essa amiga (CC, art. 1.789). Mas a outra metade, obrigatoriamente, iria para o filho, e, quando este morresse, para os primos que o tratavam tão mal, considerando que ele não tinha possibilidade de escolher seus herdeiros, não poderia manifestar a sua vontade, por falta absoluta de discernimento e autonomia, estava vedada ao mesmo a facção testamentária. Notei a sua contrariedade e decepção com as informações que dei.
Quando ela se despediu, deixando meu gabinete com ar de profunda tristeza, afirmando: “qualquer dia, volto aqui”, quem ficou angustiado fui eu. Meditei sobre a questão, pensei e repensei, até concluir que tinha dado a ela a solução possível, embora não resolvesse o problema. De repente, veio-me à mente uma figura do direito romano, que dava um jeito para casos como esse, e eu até já havia abordado o tema em meu livro Comentários ao Código Civil (São Paulo: Saraiva, 2003, coordenador Antônio Junqueira de Azevedo, vol. 21, p. 294). Transcreverei o que ali escrevi, introduzindo alguns acréscimos, e, afinal, vou apresentar uma sugestão de reforma legislativa, alterando o Código Civil.
2. O direito romano conheceu a substituição pupilar, pela qual o pater familias designava herdeiro para seu filho, se este falecesse impúbere (pupillus). Na época de Justiniano, consolidou-se outro tipo de substituição, denominada quase-pupilar (ou exemplar, ou justinianeia), em que o ascendente nomeava herdeiro para o descendente que sofresse das faculdades mentais, e morresse no estado de alienação.
Nas Institutas do Jurisconsulto Gaio – uma das maiores autoridades do direito romano, a quem o Imperador Justiniano chamava “Gaius noster” (“O nosso Gaio”), demonstrando carinho e respeito – encontramos no Livro II, nº 179, referência à substituição pupilar – que já existia no tempo de Cícero, em que o pai (paterfamilias), por testamento, indica quem será o herdeiro do filho (filiusfamilias), se este morrer impúbere, antes de ter adquirido a capacidade de outorgar um testamento, ou seja, era desprovido da testamenti factio. Ulpiano afirma que a substituição pupilar já era conhecida deste os tempos antigos do jus romanum, tendo origem consuetudinária. As Institutas de Gaio foram escritas durante o reinado de Antonino Pio (138-161 d. C.). Passados mais de 300 anos, surgiram as Institutas do Imperador Justiniano, de 533 d. C., que, no Livro 2, Tít. XVI, trata da substituição pupilar (De pupillari substitutione). Entretanto, Justiniano, através de uma Constituição, à imagem e semelhança da pupilar, criou a substituição quase-pupilar ou exemplar (ad exemplum pupillaris substituitionis), em que o pai de um filho mentecapto (louco), faz a indicação dos herdeiros deste filho, ficando sem efeito a substituição do filho se este recupera a razão, como, do mesmo modo, fica sem efeito a substituição pupilar quando o filho chega à puberdade (cf. Pietro Bonfante, Istituzioni di Diritto Romano, 8ª ed., Roma, 1925, § 208; Eugène Petit, Tratado Elemental de Derecho Romano, tradução da 9ª ed. francesa, México, 1977, ns. 563 a 567; Max Kaser, Direito Privado Romano(Römisches Privatrecht), Fundação Calouste Golbenkian, Lisboa, 1999, § 68, p. 387); José Carlos Moreira Alves, Direito Romano, 14ª ed., Rio de Janeiro, 2008, n. 318, p. 735; Silvio Meira, Instituições de Direito Romano, 4ª ed., São Paulo, 2017, ns. 287 e 288, p. 493).
3. Nas Ordenações Filipinas (Livro 4, Tít. LXXXVII, § 7º) previu-se: “Substituição pupilar é a que o pai faz a seu filho pupilo, que tem debaixo de seu poder, nesta forma: Se meu filho Pedro falecer dentro da pupilar idade, seja seu herdeiro Paulo”. Assim que o filho varão completasse quatorze anos e a filha doze anos, expirava a substituição pupilar que o pai tivesse feito. O objetivo era o de evitar que os impúberes morressem sem ter feito testamento. As Ordenações Filipinas (L. 4, Tít. LXXXI, princ.) diziam: “O varão menor de quatorze anos, ou a fêmea menor de doze, não podem fazer testamento, nem o furioso”. Nesse tempo, os menores eram considerados púberes ou impúberes: o varão é púbere, se completou quatorze anos de idade; e a mulher, desde que completou doze anos (Ordenações citadas, L.4., Tít. CIV, último parágrafo). Na Consolidação das Leis Civis, de Teixeira de Freitas, art. 993, § 1º, estabeleceu-se que não podem fazer testamento os menores de quatorze anos e as menores de doze.
No L. 4, Tít. LXXXVII, § 11, as citadas Ordenações[1] diziam que a substituição exemplar é a que um ascendente faz a seu descendente, o qual não pode fazer testamento por causa de algum impedimento natural e perpétuo, como no caso de o descendente ser furioso, mentecapto, surdo e mudo de nascimento. Tratava-se, como se vê, da substituição quase-pupilar, criada por Justiniano.
4.  Na Consolidação das Leis Civis, Teixeira de Freitas – nosso sumo civilista – regulou tais substituições nos arts. 1.045 a 1.051.
5.  O anterior Código Civil português, de 1867 (um momento jurídico, cujo projeto foi redigido pelo Visconde de Seabra, que nasceu no Brasil), acolheu essas substituições nos arts. 1.859 e 1.862. No Código lusitano em vigor, a matéria vem tratada nos arts. 2.297 (substituição pupilar) e 2.298 (substituição quase-pupilar). Na substituição pupilar, o progenitor que tem o poder paternal institui herdeiros ou legatários ao filho menor de 18 anos de idade. Na substituição quase-pupilar, o progenitor nomeia herdeiros ou legatários ao filho incapaz de testar em consequência de interdição por anomalia psíquica. Essas substituições só podem abranger os bens que o substituído (o filho menor de idade ou o filho incapaz de testar em consequência de interdição por anomalia psíquica) haja adquirido por via do testador, embora a título de legítima. A substituição pupilar fica sem efeito logo que o substituído perfaça os dezoito anos, ou se falecer deixando descendentes ou ascendentes, e a substituição quase-pupilar fica sem efeito logo que seja levantada a interdição, ou se o substituído falecer deixando descentes ou ascendentes (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, 1998, v. VI, p. 467 s.; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil-Sucessões, 5ª ed., Coimbra, 2000, n. 25, p. 49 s.; Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, 4ª ed., Coimbra, 2000, v. I, p. 224 s.; Inocêncio Galvão Telles, Sucessão Testamentária, Coimbra, 2006, ns. 108 e 109, p. 101; Carlos Pamplona Corte-Real, Curso de Direito das Sucessões, Lisboa, 2012, n. 144, p. 97; Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2ª ed., Lisboa, 2017, n. 25, p. 89).
6.  O Código Civil espanhol, fiel às fontes romanas, menciona, igualmente, as substituições pupilar e quase-pupilar, nos arts. 775 e 776, que se aplicam aos casos de descendentes menores de 14 anos de idade (que não podem ainda testar) e dos que se encontram (de qualquer idade) incapacitados de testar por limitações psíquicas.
Nesses casos, os pais e demais ascendentes poderão fazer testamento e nomear substitutos a seus descendentes. A substituição pupilar fica sem efeito se o filho completar 14 anos, quando adquire a capacidade testamentária ativa, e a substituição quase-pupilar perde o efeito se o incapaz outorga um testamento durante um intervalo lúcido ou depois de haver recobrado a razão. Essas substituições, quando o substituído tiver herdeiros necessários, somente serão válidas se não prejudicarem os direitos legitimários desses herdeiros (cf. José Puig Brutau, Fundamentos de Derecho Civil, tomo V, vol. II, Barcelona, 1977, p. 578; Francisco Bonet Rámon, Compendio de Derecho Civil, tomo V – Sucesiones, Madrid, 1965, ns. 61 e 62, p. 339 s.; José Manuel Fernández Hierro, Los Testamentos, Granada, 2000, p. 666 s.; Carlos Lasarte, Derecho de Sucesiones, 6ª ed., Madrid, 2010, p. 109 s.; José Luis Lacruz Berdejo et aliiElementos de Derecho Civil, V, Sucesiones, Madrid, 2001, § 57, n. 269, p. 290 s.).
7.  O Código Civil de Macau, que entrou em vigor no dia 1º de novembro de 1999, e que tomou o lugar do Código Civil português – que vigorava naquele antigo território –, prevê a substituição pupilar (art. 2.126) e a quase-pupilar (art. 2.127).
8. Como essas figuras que estamos investigando sempre foram denominadas “substituições”, penso que é útil um breve relato sobre a também antiga figura do direito sucessório do mesmo nome. Roma conheceu a substituição vulgar (substitutio vulgaris) e o fideicomisso (fideicomissum hereditatis).
 O Código Civil brasileiro acolheu e regula a substituição vulgar (art. 1.947 s.) e a substituição fideicomissária (art. 1.951 s.).
Vou aproveitar, aqui, o que disse em meu livro Comentários ao Código Civil, antes citado (p. 293 s.). Na substituição vulgar ou direta, o testador, nomeando herdeiro ou legatário, prevê o caso de um ou outro não querer ou não poder aceitar a herança ou o legado, indicando outra pessoa – ou outras pessoas – como beneficiária da instituição. Inspiradas no Digesto, as Ordenações Filipinas (L. 4, Tít. LXXXVII) davam exemplo de substituição vulgar: “Instituo a Pedro por meu herdeiro, e se não for meu herdeiro, seja meu herdeiro Paulo”. Chama-se vulgar ou comum essa substituição, por ser a mais frequente. Dá-se o fideicomisso (ou substituição fideicomissária), nos termos do art. 1.951 do Código Civil, quando o testador nomeia herdeiro ou legatário determinando que, por ocasião da morte do instituído (quum morietur), a certo tempo ou sob certa condição, a herança ou legado passará para outra pessoa. O art. 1.952 do Código Civil traz uma inovação importante, estatuindo: “A substituição fideicomissária somente se permite em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador”.
Há uma importante distinção a consignar: na substituição vulgar, o substituto é chamado alternativamente, se o primeiro nomeado não pôde ou não quis aceitar a herança ou o legado. O primeiro nomeado não chega a ser sucessor e o herdeiro ou legatário, efetivamente, é o substituto. No fideicomisso, o primeiro nomeado ocupa, realmente, o lugar de sucessor, exercendo os respectivos direitos, mas com a sua morte, a certo tempo ou sob certa condição, a herança ou o legado se reverte para a pessoa indicada pelo disponente, havendo, assim, vocações sucessivas (cf. Silvio Rodrigues, Direito Civil, v. 7, Direito das Sucessões, São Paulo, 2002 – que tive a honra de atualizar a pedido do saudoso e grande autor –, n. 137, p. 239 s.).
Nas substituições pupilar e quase-pupilar, a substituição não ocorre com relação aos herdeiros ou legatários, mas na pessoa do filho incapaz de fazer testamento, que é substituído pelo pai na feitura do ato de disposição de última vontade.
O substituído é o filho; o pai, autorizado por lei, vai testar por ele, escolhendo seus herdeiros ou legatários. Esses sucessores não serão do pai, mas do filho. Sintetizando: na substituição vulgar ou fideicomissária, a substituição dá-se na pessoa do herdeiro ou do legatário, isto é, do sucessor, do instituído. Na substituição pupilar e na quase-pupilar, a substituição é pelo lado ativo, na pessoa do filho que não tem capacidade testamentária, e que é substituído, para este fim, por seu pai, o autor da substituição. Esclareço que estou utilizando a expressão pai no sentido genérico, e a mãe tem o mesmo e igual direito de exercer a substituição e outorgar o testamento no lugar do filho incapaz de fazê-lo (cf. CC, arts. 1.511, 1.567, 1.631).
9.  Feitas estas digressão histórica e visita às legislações de outros povos, além do estudo doutrinário, é chegado o momento de concluir esta investigação e fazer uma proposta de mudança legislativa.
Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, 3ª ed., Rio de Janeiro, 1973, tomo LIX, § 5.873, p. 61) observa que é nulo o testamento feito no Brasil por procurador. Hoje, é princípio de ordem pública a irrepresentabilidade para testar. O princípio de que testamento é um negócio jurídico unilateral, pessoal – personalíssimo, como acentua a melhor doutrina –, encontra exceção nas substituições pupilar e quase-pupilar.
Essas substituições são um expediente para suprir a incapacidade testamentária de um filho. Noutra exceção aos princípios, uma pessoa faz testamento por outrem. O filho, que não tem a possibilidade de outorgar disposições de última vontade válidas, é substituído na autoria do testamento por seu pai. Presume-se que este ascendente tem muito afeto pelo filho – quod plerumque fit -, haverá de atuar com o maior respeito, responsabilidade e atenção, com vistas a superar a impossibilidade invencível do filho para outorgar testamento, escolhendo herdeiros e legatários que esse filho provavelmente elegeria, se pudesse fazer a sua própria disposição de última vontade. Essa presunção do amor e do carinho do pai por seu filho cai por terra e se desvanece se esse genitor teve limitado ou extinto o poder familiar (CC, arts. 1.635, 1.637 e 1.638).
O espanhol Lasarte, em seu livro, acima citado (p. 110), argumenta que essas formas de substituição (pupilar e exemplar) representam exclusivamente a manutenção de figuras do passado cuja função na sociedade atual pode considerar-se virtualmente nula, tendo a matéria escasso atrativo e relativa importância prática, tanto assim que o Código Civil francês e o alemão (BGB) não acolheram as duas figuras.
Realmente, as substituições pupilar e quase-pupilar (mais aquela do que esta) têm uma origem que se perde nos tempos antigos. A substituição pupilar é de velhez bimilenar. A quase-pupilar é mais nova(!), foi introduzida por Justiniano. Mas não acho que na época em que vivemos devamos rejeitar antigos institutos jurídicos só por serem vetustos, ou porque não têm grande atrativo ou interesse prático. Se assim fosse, teríamos de revogar, simplesmente, muitos artigos do Código Civil (o próprio instituto do testamento é de escassa utilização por nosso povo, quase ninguém faz testamento, e nem se pode admitir uma ideia disparatada de abolir a figura...)
Até posso concordar que a substituição pupilar perdeu muito de seu interesse e serventia, ficando relegada ao museu histórico do direito. Mas, ao contrário, acho que a substituição quase-pupilar pode ser de grande utilidade.
Se um filho é acometido de doença mental profunda, permanente, e segundo o atual estágio da ciência médica, irreversível, irremediável, achando-se desprovido de vontade, não podendo resolver, escolher, decidir, independentemente de ter havido ou não uma sentença judicial reconhecendo esta situação, não possuindo, ademais, herdeiros necessários, seu pai deve ser autorizado a fazer um testamento, suprindo a incapacidade testamentária do filho, e indicando, por ele, herdeiros ou legatários. Admitida essa possibilidade, o testamento do pai pode abranger todos os bens do filho, sem considerar a procedência dos mesmos. Obviamente, o testamento do pai perde o efeito e caduca, se o filho adquirir ou readquirir o juízo perfeito, ou se tiver herdeiros necessários.
10.  O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM nomeou uma Comissão de Juristas para promover estudos e oferecer um anteprojeto de reforma do Livro V – Do Direito das Sucessões – do Código Civil. O presidente desta Comissão é o advogado e professor Mário Delgado, e também fazem parte da mesma os professores Ana Luiza Maia Nevares, João Brandão Aguirre e Flávio Tartuce, que neste ano de Copa do Mundo da Rússia, posso dizer que formam uma verdadeira seleção brasileira de juristas. Por eles tenho grande admiração e apreço.
 Ex positis, e servindo a própria exposição como justificativa, venho oferecer minha colaboração a essa douta Comissão, com base nas reflexões antes feitas. Proponho, então, que, em seguida do art. 1.960 do Código Civil, seja introduzida a Seção III, com dois novos artigos, e a redação seguinte:
Seção III
Substituição do filho incapaz de testar
Art. 1.960-A. O ascendente que não teve suspenso nem extinto o poder familiar (arts. 1.635, 1.637, 1.638), cujo filho não pode manifestar a sua vontade, por enfermidade ou deficiência mental, poderá, por testamento, nomear herdeiros ou legatários para este filho.
Art. 1.960-B. Caduca o testamento se o filho recobrar a razão, ou deixar descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro.
Zeno Veloso
- Professor de Direito Civil e de Direito Constitucional Aplicado na Universidade Federal do Pará (aposentado) e na Universidade da Amazônia; Diretor Regional Norte do IBDFAM; membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

[1] As Ordenações foram recompiladas por mandado do rei D. Filipe I de Portugal (II de Espanha) e vigentes a partir da Lei de 11 de janeiro de 1603, já no reinado de Filipe II de Portugal e III de Espanha. Em Portugal, as Ordenações Filipinas vigoraram até 1867, com a entrada em vigor do primeiro Código Civil. No Brasil, essas Ordenações sobreviveram por mais tempo: só foram integralmente revogadas com o Código Civil de 1916, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1917. Rui de Figueiredo Marcos, Carlos Fernando Mathias e Ibsen Noronha (História do Direito Brasileiro, Gen/Forense, 1ª ed., 2014, Rio de Janeiro, n. 15, p. 69) expõem que as Ordenações Filipinas foram a codificação com mais extenso reinado na história do direito luso-brasileiro.