quarta-feira, 29 de julho de 2020

DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS

 DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS
 Flávio Tartuce[1]
No último dia 16 de julho de 2020, participei, a convite dos Professores Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, de curso sobre Alimentos, promovido em plataforma online pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). O evento procurou trazer uma análise interdisciplinar a respeito do instituto, e a mim coube analisar a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica na ação de execução de alimentos. Procurarei aqui compartilhar alguns dos temas abordados naquele encontro, notadamente julgados estaduais pesquisados sobre a temática.
Como é notório, a desconsideração da personalidade jurídica está tratada, em termos gerais, pelo art. 50 do Código Civil, que foi recentemente alterado pela Lei da Liberdade Econômica, a Lei n. 13.874/2019. O comando recebeu cinco novos parágrafos e uma locução final no seu caput, visando a trazer parâmetros objetivos para um maior controle na aplicação da categoria. O Código Civil, como se sabe, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige o abuso da personalidade jurídica – caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial –, somado a um prejuízo ao credor. Essa vertente contrapõe-se à teoria menor – adotada, por exemplo, pelo art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor –, que exige apenas o prejuízo ao credor para que a desconsideração seja efetivada. Por óbvio que, em matéria de Direito de Família, sobretudo quanto aos alimentos, incide a primeira teoria.
Voltando-se à essência do art. 50 do Código Civil, a norma continua a enunciar que, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte interessada ou até do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica. Trata-se da chamada desconsideração da personalidade jurídica direta ou regular, em que bens dos sócios ou administradores respondem por dívidas da pessoa jurídica, ampliando-se a responsabilidade patrimonial da última.
Com a Lei da Liberdade Econômica, passou-se a prever, na antes citada locução final, que somente serão responsabilizados os sócios ou administradores "beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso". Adotou-se, portanto, o entendimento de parte considerável da doutrina, consubstanciado no Enunciado n. 7, aprovado na I Jornada de Direito Civil, segundo o qual "só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido". De fato, pela teoria maior, a desconsideração deve atingir apenas o sócio ou administrador que tenha praticado a irregularidade e que por ela tenha sido beneficiado de alguma forma.
Em todos os casos, não se pode negar que a desconsideração da personalidade jurídica é uma exceção à autonomia existente entre a pessoa jurídica e seus membros, inserida expressamente no art. 49-A, caput, do Código Civil pela mesma Lei da Liberdade Econômica, ao preceituar que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. Alguns julgados a seguir expostos confirmam essa premissa para as execuções dos alimentos.
O novo § 1º do art. 50 procurou trazer parâmetros para a definição do que seja o desvio de finalidade, prevendo que esse representa a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Retirou-se, por bem, a menção expressa ao dolo, que constava na Medida Provisória n. 881, que originou a lei. Na previsão atual, o ilícito pode ser doloso, culposo ou praticado em abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil, sendo o último gerador de uma responsabilidade sem culpa, conforme o Enunciado n. 37, aprovado na I Jornada de Direito Civil. No âmbito das ações de alimentos – e também em outras ações de família –, a prova do dolo é diabólica, de difícil superação, e caso a lei mencionasse esse requisito subjetivo os alimentados teriam grandes dificuldades para efetivar a desconsideração em suas demandas.
Já quanto à confusão patrimonial, outro elemento que pode gerar a configuração do abuso da personalidade jurídica, o § 2º do art. 50 trouxe um rol meramente exemplificativo de situações, tais como a) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; e b) a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante. A abertura da norma fica clara pelo inciso III do preceito, que estabelece que outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial também podem gerar a confusão patrimonial, caso da hipótese em que a gestão patrimonial de pessoa jurídica e seus membros é compartilhada.
Sobre a desconsideração inversa ou invertida, foi ela positivada pelo § 3º do art. 50 do Código Civil, ao prever que "o disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica". Isso já tinha ocorrido com o CPC/2015, que em seu art. 133, § 2º, havia utilizado a expressão já difundida na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que o capítulo relativo ao incidente de desconsideração é aplicável "à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica". As duas previsões, material e processual, equivalem-se, sem qualquer distinção de conteúdo.
Além da desconsideração direta e da inversa, o § 4º do art. 50 do Código Civil acabou por positivar – pelo menos indiretamente – a chamada desconsideração econômica ou a sucessão de empresas, com a possibilidade de extensão de responsabilidades de uma pessoa jurídica para outra, em especial nos casos de confusão patrimonial entre elas. Pelo comando, contudo, "a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica".
Sobre os julgados que tratam da desconsideração inversa no âmbito dos alimentos, nota-se que existem acórdãos que a deferem para a responsabilização até de empresa individual de responsabilidade limitada, tratada pelo art. 980-A do Código Civil, formada por apenas uma pessoa (TJSP, Agravo de instrumento n. 2073431-09.2018.8.26.0000, Acórdão n. 13360188, Ribeirão Preto, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Aparício Coelho Prado Neto, julgado em 28/02/2020, DJESP 10/03/2020, p. 2227). Não há qualquer óbice para tanto, como já constava do Enunciado n. 470, da V Jornada de Direito Civil: "o patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica".
Essa deve ser a conclusão sobre o tema, mesmo com a nova redação do art. 980-A, § 7º, do Código Civil, novamente inserido pela Lei da Liberdade Econômica: "somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude". A nova norma não afasta, no meu entender, a possibilidade de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica em relação à EIRELI. Da mesma forma, não há qualquer óbice para a desconsideração da personalidade jurídica, inclusive em execução de alimentos, da sociedade limitada unipessoal, incluída pela Lei n. 13.874/2019 no art. 1.052 do Código Civil.
Como regra geral, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica deve seguir o incidente previsto no Estatuto Processual, a fim de concretizar o contraditório e a ampla defesa. Nessa linha, em ação de execução de alimentos, julgou o Tribunal de Santa Catarina no final de 2019 (TJSC, Agravo de instrumento n. 4020797-22.2019.8.24.0000, Florianópolis, Quinta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Ricardo Orofino da Luz Fontes, DJSC 29/11/2019, p. 367). Além dessa importante ressalva, diante da incidência da teoria maior da desconsideração, muitos julgados apontam a necessidade de se comprovar os seus requisitos, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Assim sendo, a mera ausência de bens do devedor alimentante, por exemplo, não pode dar ensejo à desconsideração inversa. Somente a título ilustrativo, transcreve-se, trazendo análise a respeito desses elementos em ações de execução de alimentos:
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM EXECUÇÃO DE ALIMENTOS DEVIDOS À FILHA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE REJEIÇÃO. ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. ABUSO DA PERSONALIDADE CARACTERIZADO PELO DESVIO DE FINALIDADE E CONFUSÃO PATRIMONIAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COM INTUITO DE LESAR CREDORES, ESPECIFICAMENTE, NO CASO, A ALIMENTANDA. Na desconsideração inversa da personalidade jurídica de empresa comercial, afasta-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do sócio. Tal somente é admitido, entretanto, quando comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir integralmente, conquanto não integrem eles o seu patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da pessoa jurídica controlada. (TJSC, AI n. 2000.018889-1, Rel. Des. Trindade dos Santos, j. 13-9-2001). (...)" (TJSC, Agravo de instrumento n. 4001454-11.2017.8.24.0000, Palmitos, Sétima Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, DJSC 05/08/2019, p. 206).
"AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. Pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Decisão que indeferiu o pedido. Recurso interposto pela autora. Inconformismo com o indeferimento repisando os argumentos aduzidos no pedido. Alimentos que devem ser buscados do provedor inadimplente. Inexistência de comprovação de insolvência do devedor de alimentos. Ausência de motivos que justifique a instauração do incidente processual requerido. Decisão que não se mostra teratológica. Recurso a que se nega provimento. Manutenção da decisão" (TJRJ, Agravo de instrumento n. 0033765-64.2017.8.19.0000, Niterói, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio Brandão de Oliveira, DORJ 10/04/2018, p. 20).
"DIREITO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO LIMINAR. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INOCORRÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. FALTA DE PROVAS DE CONFUSÃO PATRIMONIAL OU OCORRÊNCIA DE FRAUDE. LIMINAR INDEFERIDA. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Cuida-se de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto contra decisão proferida em execução de alimentos, que indeferiu a desconsideração inversa da personalidade jurídica, sob o fundamento de que simples ausência de bens em nome do executado não acarreta necessariamente na desconsideração da personalidade jurídica inversa da empresa que é sócio. 1.1. No recurso, o agravante pede a reforma da decisão, sustentando, em resumo, que estariam presentes os requisitos exigidos pela legislação para o deferimento da medida, pois o agravado, na condição de sócio de empresa, utiliza-se da pessoa jurídica para deixar de cumprir as suas obrigações, especialmente do pagamento da prestação alimentícia do agravante. 2. Não há que se falar em desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa em que o alimentante é sócio, porquanto constitui medida excepcional, aplicável somente nos casos em que evidenciadas as circunstâncias legalmente definidas, o que não é a hipótese dos autos. 2.1. Para que haja a desconsideração inversa deve haver o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, conforme art. 50 do Código Civil. (...). 4. Na desconsideração inversa, os bens da sociedade devem responder por atos praticados pelo sócio. Ou seja: A proteção patrimonial da sociedade é retirada, permitindo-se que a pessoa jurídica responda com seus bens por atos praticados pela pessoa física do sócio. 5. Tal instituto foi criado para casos em que o devedor esvazia o seu patrimônio pessoal, transferindo os seus bens para a titularidade da pessoa jurídica, em flagrante abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. 6. O Superior Tribunal de Justiça admite a desconsideração da personalidade jurídica inversa quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02: [...] III. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. IV. Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. V. A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. [... ] (RESP 948.117/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 03/08/2010). 7. No caso dos autos, a simples afirmação de que o agravado não possui bens penhoráveis, é insuficiente para que haja a desconsideração inversa da personalidade jurídica, porquanto não há provas da concretização de fraude à Lei ou a terceiros. 7.1. Ademais, não existem fundamentos para a alegação de confusão patrimonial entre a empresa e o executado, ou mesmo a ocorrência de fraude com o intuito de afastar a responsabilidade pelo pagamento de dívidas. 8. Agravo improvido" (TJDF, Processo n. 0703.88.8.372018-8070000, Acórdão n. 111.1403, Segunda Turma Cível, Rel. Des. João Egmont, julgado em 25/07/2018, DJDFTE 01/08/2018).
Como se pode notar, apesar de contar com uma série de benefícios materiais e processuais, inclusive com a possibilidade de prisão civil do devedor, o credor dos alimentos que executa a sua dívida está submetido à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, com mais requisitos e rigor para que qualquer uma das suas modalidades seja efetivada, especialmente a desconsideração inversa. Não deixa de ser uma contradição, mas é a nossa realidade legislativa, que deve ser considerada para os devidos fins práticos.

[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

terça-feira, 28 de julho de 2020

RESPONSABILIDADE CIVIL PELA DESISTÊNCIA NA ADOÇÃO. ARTIGO DE PABLO STOLZE E FERNANDA BARRETTO.

RESPONSABILIDADE CIVIL PELA DESISTÊNCIA NA ADOÇÃO

 Pablo Stolze Gagliano[1]
 Fernanda Carvalho Leão Barretto[2]
“"Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade”
( O filho de Mil Homens, Valter Hugo Mãe)
Sumário:
1. Introdução. 2. Diálogo entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil. 3. Responsabilidade Civil por Desistência da Adoção. 3.1. Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito. 3.2. Desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção. 3.3. Desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção. 4. Conclusões e Reflexões Finais.
1. INTRODUÇÃO.
No final do mês de maio de 2020, sites de notícias e redes sociais revelaram ao mundo o caso do pequeno Huxley, um menino de origem chinesa que passou por um processo de adoção internacional que o tornou, em 2017, aos quase dois anos de idade, filho do casal de americanos Myka Stauffer e James de Columbus, pais biológicos de outras quatro crianças.

Myka, uma influenciadora digital com mais de setecentos mil inscritos em seu canal na plataforma YouTube, documentou boa parte da rotina e das etapas do processo de adoção em 27 vídeos e, segundo divulgado por alguns veículos de imprensa, teria tido um crescimento exponencial no seu número de seguidores em virtude dessa divulgação .[3]
Ocorre que o casal, quase três anos após a adoção de Huxley, comunicou ao público haver decidido pela “devolução” do filho, em função de não terem conseguido administrar as necessidades especiais decorrentes do diagnóstico de autismo do garotinho.
A revelação chocou internautas do mundo inteiro, e trouxe a lume uma cruel realidade que não é desconhecida dos nossos pretórios, mas cujo debate ainda é incipiente em solo pátrio: a da “devolução” de crianças e adolescentes por seus pais adotivos.
O termo “devolução", usado frequentemente para traduzir a desistência da adoção, parece muito mais vocacionado a bens, uma vez que seres humanos, dotados de inseparável dignidade, não se sujeitam a um trato que os objetifique, como se fossem coisas defeituosas que frustraram as expectativas do “adquirente” .
Justo por isso, o uso do termo é repleto do significado da dureza que envolve as situações de desistência na adoção, com o retorno a abrigos de pessoas que já estavam acolhidas em seios familiares.
Tudo se torna ainda mais triste se lembrarmos o potencial que essa desistência possui para acarretar uma nova sensação de rejeição naquele que somente foi adotado em razão já haver sido rejeitado, antes, pela família biológica que lhe deu origem.
Segundo dados divulgados pela BBC News, decorrentes de uma pesquisa feita entre onze Estados da federação, num lapso de cerca de cinco anos, foram registrados 172 casos de “devolução” de crianças e adolescentes candidatos à adoção[4], sendo que alguns desses candidatos experimentaram mais de uma situação de desistência no seu calvário em busca de uma família substituta.
Ao lado disso, é cada vez mais frequente a divulgação de decisões que versam sobre a possibilidade de compensação de eventuais danos decorrentes desse fenômeno.[5]
Nesse delicado contexto, surgem questionamentos que serão enfrentados aqui de forma bastante objetiva.
No transcurso do processo de adoção, a desistência dos pais adotantes, se já estiverem convivendo com as crianças ou adolescentes, pode atrair a incidência das regras de responsabilidade civil?
Depois de concluído o processo de adoção, haveria hipótese de desfazimento dela e, se houver, essa desistência geraria dever de indenizar?
2. DIÁLOGO ENTRE O DIREITO DAS FAMÍLIAS E A RESPONSABILIDADE CIVIL.

Importante pontuar que nos parece superada a discussão sobre a possibilidade de se aplicar aos danos causados no âmbito de relações familiares as regras da responsabilidade civil.
Ainda que o Direito das Famílias da pós-modernidade, repersonalizado e revolucionado pelos influxos da Constituição Federal de 88, tenha um dos seus pilares na intervenção mínima do Estado na seara das suas relações[6], isso não significa que a família é um lócus imune às regras da responsabilidade civil.
Não à toa, é ampla (e por vezes polêmica) a casuística em que o Estado-juiz tem sido chamado a decidir sobre a reparabilidade de danos causados no âmbito da convivência familiar, a exemplo das demandas indenizatórias pelo descumprimento dos deveres conjugais (sobretudo o de fidelidade), pelo rompimento de relações amorosas (como o noivado) e pelo abandono afetivo de filho.
Analisando a questão a partir do prisma dos pressupostos da responsabilidade civil na interface com as relações de família, entendemos que, se demonstrada a existência (a) de conduta antijurídica de um membro da família contra outro, (b) do dano indenizável, (c) do nexo de causalidade e, em regra, (d) da culpa, presentes estarão os elementos centrais do nascimento do dever de indenizar.
Todavia, soa fundamental rememorarmos que há, em nosso ordenamento, danos indenizáveis que excepcionalmente derivam de condutas lícitas[7], bem como inúmeras hipóteses enquadradas como de responsabilidade objetiva, ou seja, que prescindem da investigação de culpa para que haja o reconhecimento do dever de indenizar (CC, art. 927), com destaque para o abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil.
Quanto ao art. 187 do CC, escreve, com propriedade, FLÁVIO TARTUCE: “pontue-se que prevalece o entendimento segundo o qual a responsabilidade decorrente do abuso de direito é objetiva, independentemente de culpa. A propósito da correta conclusão a respeito do abuso de direito, vejamos o Enunciado n. 37, da I Jornada de Direito Civil, de 2004: ‘a responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico’ ”.[8]
Após essas necessárias considerações, façamos agora a específica análise do tema proposto.
3. RESPONSABILIDADE CIVIL POR DESISTÊNCIA NA ADOÇÃO

 Para que possamos analisar com solidez o cabimento da reparação por dano derivado da desistência no âmbito da adoção, necessário se faz sedimentar a nossa avaliação em três etapas[9]:
1) desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito;
2) desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção;
3) desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção.
Vamos a elas.
3.1. Desistência ocorrida durante o estágio de convivência em sentido estrito
O art. 46 do ECA dispõe que:
"A adoção será precedida de estágio de convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso”.
O instituto tem por objetivo propiciar um início de convivência[10] entre os candidatos previamente habilitados no Cadastro Nacional de Adoção. Vale observar que o procedimento de habilitação deveria durar no máximo 120 dias (ECA, art. 197-F), mas, como informa Maria Berenice Dias, demora, geralmente, de um a dois anos[11].
Cumpre notar, analisando os parágrafos do referido art. 46, que é possível a dispensa do estágio de convivência, se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do adotante por tempo que o magistrado considere suficiente para avaliar a conveniência da constituição do vínculo (ECA, art. 46, §1º).
O legislador adverte, contudo, que a simples guarda de fato não autoriza, de per si, a dispensa da realização do estágio de convivência (ECA, art. 46, §2º).
O prazo máximo de 90 dias é passível de prorrogação por até igual período, e quando os adotantes forem residentes no estrangeiro, será de no mínimo 30 e no máximo 45 dias, prorrogável apenas uma vez (ECA, art. 46, §2º-A e §3º).
Como essa fase tem por característica ser uma espécie de teste[12] acerca da viabilidade da adoção, concluímos que, regra geral, a desistência em prosseguir com o processo de adoção nessa etapa é legítima e não autoriza a reparação civil.
Note-se que aqui estamos tratando do estágio de convivência no sentido estrito, descolado da guarda provisória dos adotandos.
Não desconsideramos, contudo, que possa haver intenso sofrimento psíquico para a criança ou o adolescente se, por exemplo, o estágio de convivência se estender por tempo significativo, se ocorrer majoritariamente fora dos limites do abrigo ou se o laço entre as partes se desenvolver com aparência de firmeza, por meio de atitudes capazes de criar no candidato a filho a sólida expectativa de que seria adotado.
Nesse horizonte, excepcionalmente e a depender das peculiares características do caso concreto[13], as rupturas absolutamente imotivadas e contraditórias ao comportamento demonstrado ao longo do estágio podem vir a ser fontes de reparação civil[14].
 Em alguns Estados da federação há a previsão de salutares medidas voltadas para amenizar as consequências dos traumas decorrentes do insucesso do estágio de convivência, como se dá com o Juizado da Infância e da Juventude de Porto Velho (RO), que celebra acordo com candidatos a pais, desistentes na fase do estágio de convivência, para que subsidiem um ano de psicoterapia para as crianças “devolvidas”[15].
Em síntese, o exercício do direito potestativo de desistir da adoção dentro do estágio de convivência não autoriza o reconhecimento da responsabilidade civil dos desistentes, ressalvadas as situações excepcionais que destacamos.
3.2. Desistência no âmbito da guarda provisória para fim de adoção
A guarda provisória é a etapa que usualmente sucede os estágios de convivência concluídos com êxito, apesar de haver hipóteses de concessão que não passam pela necessidade de prévio estágio.
Uma vez sinalizado pela família adotante, ao Juízo da Infância e da Juventude, o seu interesse em concluir a adoção daquela criança ou adolescente, ser-lhe-á atribuída a guarda para fim de adoção.
Essa guarda muitas vezes é sucessivamente renovada e já atribui aos adotantes amplos deveres parentais para com os adotandos. Quem milita com o instituto da adoção costuma dizer que a guarda provisória funda a relação paterno ou materno-filial, embora ainda não tenha havido a constituição formal do vínculo, que depende da sentença de adoção.
Ademais, durante a guarda provisória, a convivência entre adotantes e adotados não ocorrerá mais no abrigo, e sim no lar dos adotantes.
Por isso, a desistência da adoção, nesse contexto, se afigura muito mais complexa e dura do que o insucesso do estágio de convivência em sentido estrito, uma vez que rompe uma convivência sociofetiva consolidada, atraindo a incidência das regras de responsabilidade civil, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro nacional.
Não se ignora que, enquanto não consumada, por sentença, a adoção, a possibilidade jurídica de desistência existe.
Mas é preciso notar que o seu exercício depois de um estágio prolongado de guarda provisória - que, por vezes, dura anos e promove uma total inserção familiar do adotando no seio da família adotante - pode configurar abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil.
E note-se que, nesse mencionado dispositivo (art. 187, CC), consagrou-se uma "ilicitude objetiva”, vale dizer, que dispensa a demonstração do dolo ou da culpa para a sua configuração.
Aqui, não há como não invocar a bela máxima cunhada pelo francês Saint-Exupéry, em “O Pequeno Príncipe”, clássico da literatura infanto-juvenil: "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
A guarda dos que pretendem adotar precisa ser exercida com plena consciência da grande responsabilidade que encerra.
Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“ A condenação por danos morais daqueles que desistiram do processo de adoção, que estava em fase de guarda, de forma abrupta e causando sérios prejuízos à criança, encontra guarida em nosso direito pátrio, precisamente nos art. 186 c/c arts. 187 e 927 do Código Civil. A previsão de revogação da guarda a qualquer tempo, art. 35 do ECA, é medida que visa precipuamente proteger e resguardar os interesses da criança, para livrá-la de eventuais maus tratos ou falta de adaptação com a família, por exemplo, mas não para proteger aqueles maiores e capazes que se propuserem à guarda e depois se arrependeram (TJMG - Apelação Cível 1.0024.11.049157-8/002, Relator(a): Des.(a) Vanessa Verdolim Hudson Andrade , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 15/04/2014, publicação da súmula em 23/04/2014).
A partir da análise de todo esse panorama, é inexorável a extração da seguinte conclusão: a configuração do abuso do direito de desistir da adoção gera responsabilidade civil e esse abuso estará presente se a desistência se operar depois de constituído, pelo adotante, um vínculo robusto com o adotando, em virtude do prolongamento do período de guarda, ante o amálgama de afeto que passa a vincular os protagonistas da relação.
3.3. Desistência depois do trânsito em julgado da sentença de adoção
Uma vez transitada em julgado a sentença, a adoção se torna irrevogável (ECA, art. 39, § 1o).
Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, “não há nenhuma previsão legal de 'desadoção'. Uma vez filho, adotado ou não, será para sempre, pois filhos e pais mesmo depois da morte permanecem vivos dentro da gente”.[16]
As palavras do grande jurista mineiro, e todas as reflexões que tecemos até aqui, já nos permitem antever a resposta ao último problema que nos propusemos a enfrentar: e se os pais, depois de findo o processo de adoção, resolvem “devolver” seu filho (a), como aconteceu no dramático caso narrado na abertura deste texto?
A resposta é simples: inexiste, no ordenamento brasileiro, base jurídica para devolução” de um filho após concretizada sua adoção.
Aliás, a filiação adotiva, diferentemente da biológica, é sempre planejada, programada e buscada com a paciência que o burocrático processo de adoção exige, num contexto de longa expectativa dos envolvidos.
 Há toda uma preparação para que uma pessoa ou um casal possa se habilitar a adotar, envolvendo a participação de uma equipe multidisciplinar, que existe para dar suporte aos envolvidos e para que os candidatos a pais tenham ciência das variadas e densas dimensões que o processo de acolher - no coração e na vida - um filho exige.
Também não se pode olvidar que o indivíduo adotado é alguém cuja trajetória costuma estar marcada por uma rejeição original, razão pela qual uma vulnerabilidade lhe é imanente e demanda especial proteção por parte do Estado.
Impende perceber, ainda, que muitos dos casos de rejeição a filhos adotivos parte de um rosário de queixas sobre a dificuldade de trato com o filho, do seu comportamento “indomável” ou da revelação de características ou problemas de saúde que “surpreendem negativamente" a família adotiva.
Com todas as vênias, esse tipo de argumento nos parece dos mais absurdos, pela simples razão de que a Constituição Federal não permite a diferenciação entre filhos em função da sua origem, e, ademais, filhos biológicos podem apresentar os mesmíssimos problemas ou questões, sem que se cogite de sua potencial devolução.
E a quem se devolveria um filho biológico?
Assim, entendemos que devolução fática” de filho já adotado caracteriza ilícito civil, capaz de suscitar amplo dever de indenizar, e, potencialmente, também, um ilícito penal (abandono de incapaz, previsto no art. 133 do CP), sem prejuízo de se poder defender, para além da impossibilidade de nova habilitação no cadastro, a mantença da obrigação alimentar, uma vez que os adotantes não podem simplesmente renunciar ao poder familiar e às obrigações civis daí decorrentes.
Aliás, a apresentação, em juízo, de um pleito de desconstituição do vínculo de filiação adotiva pode ensejar o proferimento liminar de sentença de mérito, por improcedência liminar do pedido, à semelhança do que se dá com as hipóteses elencadas no art. 332 do CPC. Tratar-se-ia, nesse caso, de uma hipótese atípica de improcedência liminar do pedido.[17]
4. CONCLUSÕES E REFLEXÕES FINAIS
 O drama da desistência na adoção é agudo e tem desafiado, cada vez mais, os nossos Tribunais.
Partindo da premissa da possibilidade de entrelaçamento das esferas da responsabilidade civil e das relações familiares, investigamos o cabimento de indenização pelos danos derivados das “devoluções” de crianças e adolescentes em processo de adoção ou com a adoção já consumada.
Trata-se de uma indenização que não apenas atende ao escopo compensatório, mas também se justifica em perspectiva pedagógica, à luz da função social da responsabilidade civil.
Aliás, a dor, a angústia, o sofrimento derivados da “devolução de um filho” - como se mercadoria fosse - acarretam, em nosso sentir, um dano moral que dispensa prova em juízo (“in re ipsa”).
Se a desistência ocorre dentro do estágio de convivência (ECA, art. 46) no sentido estrito, não se há que falar, em regra, em responsabilidade civil, eis que o direito potestativo de desistência é legítimo e não abusivo.
Se a desistência ocorre, contudo, após o estágio de convivência, durante período de guarda provisória e antes da sentença transitada de adoção, pode se configurar o abuso do direito (de desistir), à luz do art. 187 do CC, daí emergindo a responsabilidade civil.
Após a sentença de adoção transitada em julgado, é juridicamente impossível a pretendida “devolução”, caracterizando, tal ato, se efetivado, no plano fático, ilícito civil (e, a depender do caso, também, ilícito penal, por abandono de incapaz - art. 133, CP). Ressalte-se que o juiz, inclusive, pode proferir uma sentença de rejeição do pedido de devolução, sem sequer citar o réu (hipótese atípica de improcedência liminar do pedido - art. 332, CPC).
Adotar é lançar ao solo sementes de amor, mas esse ato precisa se dar no terreno da responsabilidade e da consciência de que as relações paterno ou materno-filiais, quaisquer que sejam as suas origens, são repletas de arestas que demandam paciência, resiliência e afeto para serem aparadas.
 REFERÊNCIAS
1. DIAS, Maria Berenice. O Perverso Sistema da Adoção in PEREIRA, Rodrigo da Cunha, DIAS, Maria Berenice (Coord.) Familia e Sucessões. Polêmicas, tendências e inovações. Editora IBDFAM, 2018, 1 Ed. p. 114.
2. DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 22ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 740/741.
3. GAGLIANO, Pablo Stolze. Aula proferida pelo coautor Pablo Stolze Gagliano, em aula, por videoconferência, proferida no dia 17 de julho de 2020, a convite da ilustre Promotora de Justiça Márcia Rabelo, coordenadora do Caoca do Ministério Público do Estado da Bahia.
4. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, p. 449.
_________________________. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Del Rey, 2005, p. 156.
5. TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil - volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 79-80.
7. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40464738 acessado em 25 de julho de 2020.
9. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-40464738 acessado em 25 de julho de 2020.

[1] Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).
[2] Advogada. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela UCSAL. Professora da UNIFACS- Universidade Salvador e de diversos cursos de pós-graduação. Conselheira da OAB/BA. Vice-presidente do IBDFAM/BA.
[6] Nesse sentido, vale a pena conferir Rodrigo da Cunha Pereira, segundo o qual "a família contemporânea não admite mais a ingerência do Estado, sobretudo no que se refere à intimidade de seus membros. Conforme salienta Luiz Edson Fachin, está-se diante de um notório processo de privatização das relações, com propagação da interferência mínima do Estado no âmbito das relações privadas, notadamente nas relações de família". (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. São Paulo: Del Rey, 2005, p. 156).
[7] A exemplo do dano provocado por aquele que age sob estado de necessidade ou em legítima defesa nos termos dos artigos 929 e 930, CC.
[8] TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil - volume único. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 79-80.
[9] Essas conclusões basearam-se em aula proferida pelo coautor Pablo Stolze Gagliano, por videoconferência, no dia 17 de julho de 2020, a convite da ilustre Promotora de Justiça Márcia Rabelo, coordenadora do Caoca do Ministério Público do Estado da Bahia.
[10] Segundo diálogo virtual que mantivemos com Silvana Du Monte, uma das maiores especialistas do país em matéria de adoção, presidente da Comissão do IBDFAM destinada ao tema, essa é a fase do “cortejo” entre os candidatos a pais e filhos, que se dá, comumente, no próprio abrigo, acompanhado pela equipe técnica e com saídas aos finais de semana.
[11] DIAS, Maria Berenice. O Perverso Sistema da Adoção in PEREIRA, Rodrigo da Cunha, DIAS, Maria Berenice (Coord.) Familia e Sucessões. Polêmicas, tendências e inovações. Editora IBDFAM, 2018, p. 114.
[12] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, p. 449.
[13] Nesse sentido “ A devolução injustificada do menor/adolescente durante o estágio de convivência acarreta danos psíquicos que devem ser reparados(TJ-SC AI: 40255281420188240900 Joinvile 4025528-14.2018.8.24.0900, Rel: Marcus Túlio Sartorato, 3 Camara de Direito Civil, j: 29/01/2019)
[14] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, pag. 450
[16] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias Editora Forense, 2020, p. 450
[17] ” DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil, v. 1, 22ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, pp. 740/741.

domingo, 5 de julho de 2020

RESUMO. INFORMATIVO 673 DO STJ.

RESUMO. INFORMATIVO 673 DO STJ.
SEGUNDA SEÇÃO
PROCESSO
REsp 1.756.283-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 11/03/2020, DJe 03/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Plano de saúde ou seguro saúde. Reembolso de despesas médico-hospitalares previstas em cláusula contratual. Prazo prescricional decenal.
DESTAQUE
É decenal o prazo prescricional aplicável ao exercício da pretensão de reembolso de despesas médico-hospitalares alegadamente cobertas pelo contrato de plano de saúde (ou de seguro saúde), mas que não foram adimplidas pela operadora.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Inicialmente, ressalta-se que, consoante a jurisprudência do STJ, não incide a prescrição ânua própria das relações securitárias nas demandas em que se discutem direitos oriundos de planos de saúde ou de seguros saúde, dada a natureza sui generis desses contratos.
A presente pretensão reparatória também não se confunde com aquela voltada à repetição do indébito decorrente da declaração de nulidade de cláusula contratual (estipuladora de reajuste por faixa etária), que foi debatida pela Segunda Seção, por ocasião do julgamento dos Recursos Especiais 1.361.182/RS e 1.360.969/RS, que observaram o rito dos repetitivos. Destaca-se que a ratio decidendi dos recursos especiais citados teve como parâmetros: (a) a revisão de cláusula contratual de plano ou de seguro de assistência à saúde tida por abusiva, com a repetição do indébito dos valores pagos (fatos relevantes da causa); e (b) a consequência lógica do reconhecimento do caráter ilegal ou abusivo do contrato é a perda da causa que legitimava o seu pagamento, dando ensejo ao enriquecimento sem causa e direito à restituição dos valores pagos indevidamente, e, como resultado, atrai a incidência do prazo prescricional trienal previsto no art. 206, § 3º, IV, do Código Civil de 2002 (motivos jurídicos determinantes que conduziram à conclusão).
Assim, em havendo pontos de fato e de direito que diferenciam o presente caso da hipótese de incidência delineada nos recursos piloto, não há falar em tipificação do comando normativo posto, devendo-se afastar, por conseguinte, o prazo trienal com fundamento no enriquecimento sem causa.
De outro lado, revela-se evidente que a hipótese dos autos encontra-se mesmo compreendida pela exegese adotada pela Segunda Seção e na Corte Especial, quando dos julgamentos dos EREsp 1.280.825/RJ e EResp 1.281.594/SP respectivamente, no sentido de que, nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral (art. 205 do Código Civil de 2002) que prevê dez anos de prazo prescricional.
Assim, diante da inexistência de norma prescricional específica que abranja o exercício da pretensão de reembolso de despesas médico-hospitalares supostamente cobertas pelo contrato de plano de saúde (que não se confunde com a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa), deve incidir a regra da prescrição decenal estabelecida no art. 205 do Código Civil de 2002.

PROCESSO
Rcl 37.521-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 13/05/2020, DJe 05/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Recusa tácita ao fornecimento de material genético pelo herdeiro e por terceiros. Adoção de medidas indutivas, coercitivas e mandamentais contra o herdeiro. Art. 139, IV, CPC. Possibilidade.
DESTAQUE
O juiz deve adotar todas as medidas indutivas, mandamentais e coercitivas, como autoriza o art. 139, IV, do CPC, com vistas a refrear a renitência de quem deve fornecer o material para exame de DNA, especialmente quando a presunção contida na Súmula 301/STJ se revelar insuficiente para resolver a controvérsia.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O propósito da presente reclamação é definir se a sentença que extinguiu o processo sem resolução de mérito, sob fundamento de que deveria ser respeitada a coisa julgada formada em anterior ação investigatória de paternidade, afrontou a autoridade de decisão proferida por esta Corte na ocasião do julgamento do REsp 1.632.750/SP. Na referida decisão, determinou-se a apuração de eventual fraude no exame de DNA realizado na primeira ação investigatória e a realização de novo exame para a apuração de eventual existência de vínculo biológico entre as partes.
O acórdão desta Corte concluiu que o documento apresentado pela parte configurava prova indiciária da alegada fraude ocorrida em anterior exame de DNA e, em razão disso, determinou a reabertura da fase instrutória. Dessa forma, não pode a sentença, valendo-se apenas daquele documento, extrair conclusão diversa, no sentido de não ser ele suficiente para a comprovação da fraude, sob pena de afronta à autoridade da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça.
Determinado pelo STJ que fosse realizado novo exame de DNA para apuração da existência de vínculo biológico entre as partes, não pode a sentença, somente com base na ausência das pessoas que deveriam fornecer o material biológico, concluir pelo restabelecimento da coisa julgada que se formou na primeira ação investigatória (e que foi afastada por esta Corte), tampouco concluir pela inaplicabilidade da presunção contida na Súmula 301/STJ, sem que sejam empreendidas todas as providências necessárias para a adequada e exauriente elucidação da matéria fática.
A impossibilidade de condução do investigado "debaixo de vara" para a coleta de material genético necessário ao exame de DNA não implica a impossibilidade de adoção das medidas indutivas, coercitivas e mandamentais autorizadas pelo art. 139, IV, do CPC/2015, com o propósito de dobrar a sua renitência, que deverão ser adotadas, sobretudo, nas hipóteses em que não se possa desde logo aplicar a presunção contida na Súmula 301/STJ, ou quando se observar postura anticooperativa de que resulte o non liquet instrutório em desfavor de quem adota postura cooperativa.
Por fim, aplicam-se aos terceiros que possam fornecer material genético para a realização do novo exame de DNA as mesmas diretrizes anteriormente formuladas, pois, a despeito de não serem legitimados passivos para responder à ação investigatória (legitimação ad processum), são eles legitimados para a prática de determinados e específicos atos processuais (legitimação ad actum), observando-se, por analogia, o procedimento em contraditório delineado nos arts. 401 a 404, do CPC/2015, que, inclusive, preveem a possibilidade de adoção de medidas indutivas, coercitivas, sub-rogatórias ou mandamentais ao terceiro que se encontra na posse de documento ou coisa que deva ser exibida.
TERCEIRA TURMA
PROCESSO
REsp 1.529.532-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 16/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Alimentos devidos e não pagos. Acordo para exoneração da dívida. Possibilidade.
DESTAQUE
É possível a realização de acordo com a finalidade de exonerar o devedor do pagamento de alimentos devidos e não pagos.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Inicialmente, extrai-se do art. 1.707 do Código Civil que o direito aos alimentos presentes e futuros é irrenunciável, não se aplicando às prestações vencidas, nas quais o credor pode deixar de exercer a cobrança até mesmo na fase executiva.
Com efeito, a vedação legal à renúncia ao direito aos alimentos decorre da natureza protetiva do instituto dos alimentos. Contudo, a irrenunciabilidade atinge tão somente o direito, e não o seu exercício.
Note-se que a irrenunciabilidade e a vedação à transação estão limitadas aos alimentos presentes e futuros, não havendo os mesmos obstáculos para os alimentos pretéritos.
No caso, a extinção da execução em virtude da celebração de acordo em que o débito foi exonerado não resultou em prejuízo, pois não houve renúncia aos alimentos vincendos, indispensáveis ao sustento dos alimentandos. As partes transacionaram somente o crédito das parcelas específicas dos alimentos executados, em relação aos quais inexiste óbice legal.
Nesse contexto, os alimentos pretéritos perdem relevância, não havendo motivo para impor às partes integrantes da relação alimentar empecilho à sua transação, tendo em vista que, como assinalado, não decorreram prejuízos. Ademais, destaca-se que, especialmente no âmbito do Direito de Família, é salutar o estímulo à autonomia das partes para a realização de acordo, de autocomposição, como instrumento para se alcançar o equilíbrio e a manutenção dos vínculos afetivos.

PROCESSO
REsp 1.786.722-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 12/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL
TEMA
Acidente em linha férrea. Transporte de passageiros. Responsabilidade civil objetiva. Art. 734 do CC/2002. Teoria do risco criado. Art. 927, parágrafo único, do CC/2002. Ato de vandalismo que resulta no rompimento de cabos elétricos de vagão de trem. Rompimento do nexo causal. Inocorrência. Padrões mínimos de qualidade no exercício da atividade de risco. Fortuito interno.
DESTAQUE
O ato de vandalismo que resulta no rompimento de cabos elétricos de vagão de trem não exclui a responsabilidade da concessionária/transportadora, pois cabe a ela cumprir protocolos de atuação para evitar tumulto, pânico e submissão dos passageiros a mais situações de perigo.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia a definir se o acidente na linha férrea, evento causador do dano moral sofrido pelo passageiro se enquadra nos riscos inerentes aos serviços prestados pela empresa de transporte , ou se se encontra fora desses riscos, caracterizando um fortuito externo, apto a afastar sua responsabilidade objetiva.
O CC/2002 determinou que a natureza jurídica da responsabilidade civil do transportador é objetiva, nos termos do art. 734, de modo que, sobrevindo dano ao passageiro ou à sua bagagem durante a execução do contrato, fica aquele obrigado a indenizar, independentemente de culpa, salvo se demonstrada a ocorrência de certas excludentes de responsabilidade.
Na responsabilidade civil objetiva, os danos deixam de ser considerados acontecimentos extraordinários, ocorrências inesperadas e atribuíveis unicamente à fatalidade ou à conduta (necessariamente no mínimo) culposa de alguém, para se tornarem consequências, na medida do possível, previsíveis e até mesmo naturais do exercício de atividades inerentemente geradoras de perigo, cujos danos demandam, por imperativo de solidariedade e justiça social, a adequada reparação.
Para a responsabilidade objetiva da teoria do risco criado, adotada pelo art. 927, parágrafo único, do CC/2002, o dever de reparar exsurge da materialização do risco – da inerente e inexorável potencialidade de qualquer atividade lesionar interesses alheios – em um dano; da conversão do perigo genérico e abstrato em um prejuízo concreto e individual. Assim, o exercício de uma atividade obriga a reparar um dano, não na medida em que tenha sido culposa (ou dolosa), porém na medida em que tenha sido causal.
Anota-se que a exoneração da responsabilidade objetiva ocorre com o rompimento do nexo causal, sendo que, no fato de terceiro, pouco importa que o ato tenha sido doloso ou culposo, sendo unicamente indispensável que ele tenha sido a única e exclusiva causa do evento lesivo, isto é, que se configure como causa absolutamente independente da relação causal estabelecida entre o dano e o risco do serviço.
Ademais, na teoria do risco criado, somente o fortuito externo, a impossibilidade absoluta – em qualquer contexto abstrato, e não unicamente em uma situação fática específica – de que o risco inerente à atividade tenha se concretizado no dano, é capaz de romper o nexo de causalidade, isentando, com isso, aquele que exerce a atividade da obrigação de indenizar.
Registra-se que o conceito de fortuito interno reflete um padrão de comportamento, um standard de atuação, que nada mais representa que a fixação de um quadrante à luz das condições mínimas esperadas do exercício profissional, que deve ser essencialmente dinâmico, e dentro das quais a concretização dos riscos em dano é atribuível àquele que exerce a atividade.
Assim, se a conduta do terceiro, mesmo causadora do evento danoso, coloca-se nos lindes do risco do transportador, mostrando-se ligada à sua atividade, então não configura fortuito interno, não se excluindo a responsabilidade.
O contrato de transporte de passageiros envolve a chamada cláusula de incolumidade, segundo a qual o transportador deve empregar todos os expedientes que são próprios da atividade para preservar a integridade física do passageiro contra os riscos inerentes ao negócio, durante todo o trajeto, até o destino final da viagem.
Na hipótese, o ato de vandalismo não foi a causa única e exclusiva da ocorrência do abalo moral sofrido pelo passageiro, pois outros fatores, como o tumulto decorrente da falta de informações sobre a causa, a gravidade e as precauções a serem tomadas pelos passageiros diante das explosões elétricas no vagão de trem que os transportava, aliada à falta de socorro às pessoas que se jogavam nas vias férreas, contribuíram para as lesões reportadas.
Dessa forma, a incolumidade dos passageiros diante de eventos inesperados, mas previsíveis, como o rompimento de um cabo elétrico, encontra-se indubitavelmente inserida nos fortuitos internos da prestação do serviço de transporte, pois o transportador deve possuir protocolos de atuação para evitar o tumulto, o pânico e a submissão dos passageiros a mais situações de perigo, como ocorreram com o rompimento dos lacres das portas de segurança dos vagões e o posterior salto às linhas férreas de altura considerável, e duas estações de parada.

PROCESSO
HC 574.495-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 26/05/2020, DJe 01/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Obrigação alimentícia. Inadimplemento. Prisão civil. Suspensão temporária. Excepcionalidade. Pandemia (covid-19).
DESTAQUE
Em virtude da pandemia causada pelo coronavírus (covid-19), admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores por dívida alimentícia em regime fechado.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A pandemia de covid-19 foi declarada publicamente pela Organização Mundial da Saúde - OMS - em 11 de março de 2020. Com base nessa realidade, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação CNJ n. 62/2020, que no seu artigo 6º recomenda "aos magistrados com competência cível que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus".
Ao aprofundar a reflexão sobre o tema, percebe-se que assegurar aos presos por dívidas alimentares o direito à prisão domiciliar é medida que não cumpre o mandamento legal e que fere, por vias transversas, a própria dignidade do alimentando.
Assim, não há falar na relativização da regra do art. 528, §§ 4º e 7º, do Código de Processo Civil de 2015, que autoriza a prisão civil do alimentante em regime fechado quando devidas até 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo. Válido consignar que a lei federal incorporou ao seu texto o teor da Súmula 309/STJ ("O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo").
Por esse motivo, não é plausível substituir o encarceramento pelo confinamento social, o que, aliás, já é a realidade da maioria da população, isolada em prol do bem-estar de toda a coletividade.
Nesse sentido, diferentemente do que assentado em recentes precedentes desta Corte (HC 566.897/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 19/3/2020, e HC 568.021/CE, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 25/03/2020), que aplicaram a Recomendação n. 62 do CNJ, afasta-se a possibilidade de prisão domiciliar dos devedores de dívidas alimentares para apenas suspender a execução da medida enquanto pendente o contexto pandêmico mundial.
Portanto, a excepcionalidade da situação emergencial de saúde pública permite o diferimento provisório da execução da obrigação cível enquanto pendente a pandemia. A prisão civil suspensa terá seu cumprimento no momento processual oportuno, já que a dívida alimentar remanesce íntegra, pois não se olvida que, afinal, também está em jogo a dignidade do alimentando, em regra, vulnerável.

PROCESSO
REsp 1.814.639-RS, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. Acd. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por maioria, julgado em 26/05/2020, DJe 09/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Ação de exigir contas. Pensão alimentícia. Informações sobre a destinação. Viabilidade jurídica. Art. 1.538, § 5º, do Código Civil. Princípios do melhor interesse e da proteção integral da criança e do adolescente.
DESTAQUE
É cabível ação de exigir de contas ajuizada pelo alimentante, em nome próprio, contra a genitora guardiã do alimentado para obtenção de informações sobre a destinação da pensão paga mensalmente, desde que proposta sem a finalidade de apurar a existência de eventual crédito.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
O ingresso no ordenamento jurídico da Lei n. 13.058/2014 incluiu a polêmica norma contida no § 5º do art. 1.583 do CC/2002, versando sobre a legitimidade do genitor não guardião para exigir informações e/ou prestação de contas contra(o) a(o) guardiã(ão) unilateral, devendo a questão ser analisada, com especial ênfase, à luz dos princípios da proteção integral da criança e do adolescente, da isonomia e, principalmente, da dignidade da pessoa humana, que são consagrados pela ordem constitucional vigente.
Como os alimentos prestados são imprescindíveis para a própria sobrevivência do alimentado, devem, ao menos, assegurar uma existência digna a quem os recebe. Assim, a função supervisora, por quaisquer dos detentores do poder familiar, em relação ao modo pelo qual a verba alimentar fornecida é empregada, além de ser um dever imposto pelo legislador, é um mecanismo que dá concretude ao princípio do melhor interesse e da proteção integral da criança ou do adolescente.
Dessa forma, não há apenas interesse jurídico, mas também o dever legal do genitor alimentante de acompanhar os gastos com o filho alimentado que não se encontra sob a sua guarda, fiscalizando o atendimento integral de suas necessidades,materiais e imateriais, essenciais ao seu desenvolvimento físico e psicológico, aferindo o real destino do emprego da verba alimentar que paga mensalmente, pois ela é voltada para esse fim.
Por fim, o que justifica o legítimo interesse processual em ação dessa natureza é exclusivamente a finalidade protetiva da criança ou do adolescente beneficiário dos alimentos, diante da sua possível malversação, e não o eventual acertamento de contas, perseguições ou picuinhas com a(o) guardiã(ao), devendo ela ser dosada, ficando vedada a possibilidade de apuração de créditos ou preparação de revisional, pois os alimentos são irrepetíveis.

PROCESSO
REsp 1.815.796-RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 26/05/2020, DJe 09/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR
TEMA
Plano de saúde. Tratamento quimioterápico. Prognóstico de falência ovarina como sequela. Criopreservação dos óvulos. Necessidade de minimização dos efeitos colaterais do tratamento. Princípio médico "Primum, non nocere" (primeiro, não prejudicar). Obrigação de cobertura do procedimento até a alta da quimioterapia. Possibilidade.
DESTAQUE
É devida a cobertura, pela operadora de plano de saúde, do procedimento de criopreservação de óvulos de paciente fértil, até a alta do tratamento quimioterápico, como medida preventiva à infertilidade.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia sobre a obrigação de a operadora de plano de saúde custear o procedimento de criopreservação de óvulos de paciente oncológica jovem sujeita a quimioterapia, com prognóstico de falência ovariana, como medida preventiva à infertilidade.
Nos termos do art. 10, inciso III, da Lei n. 9.656/1998, não se inclui entre os procedimentos de cobertura obrigatória a "inseminação artifical", compreendida nesta a manipulação laboratorial de óvulos, dentre outras técnicas de reprodução assistida (cf. RN ANS 387/2016).
Nessa linha, segundo a jurisprudência do STJ, não caberia a condenação da operadora de plano de saúde a custear criopreservação como procedimento inserido num contexto de mera reprodução assistida.
O caso concreto, porém, revela a necessidade de atenuação dos efeitos colaterais, previsíveis e evitáveis, da quimioterapia, dentre os quais a falência ovariana, em atenção ao princípio médico "primum, non nocere" e à norma que emana do art. 35-F da Lei n. 9.656/1998, segundo a qual a cobertura dos planos de saúde abrange também a prevenção de doenças, no caso, a infertilidade.
Nessa hipótese, é possível a manutenção da condenação da operadora à cobertura de parte do procedimento pleiteado, como medida de prevenção para a possível infertilidade da paciente, cabendo à beneficiária arcar com os eventuais custos do procedimento a partir da alta do tratamento quimioterápico.
Ressalte-se a distinção entre o caso dos autos, em que a paciente é fértil e busca a criopreservação como forma de prevenir a infertilidade, daqueles em que a paciente já é infértil, e pleiteia a criopreservação como meio para a reprodução assistida, casos para os quais não há obrigatoriedade de cobertura.

PROCESSO
REsp 1.842.066-RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 15/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO DO CONSUMIDOR, DIREITO INTERNACIONAL
TEMA
Transporte aéreo internacional. Extravio de bagagem e atraso de voo. Indenização. Danos materiais. Limitação da responsabilidade civil da transportadora. Aplicação da Convenção de Montreal. Danos morais. Código de Defesa do Consumidor. Incidência.
DESTAQUE
As indenizações por danos morais decorrentes de extravio de bagagem e de atraso de voo internacional não estão submetidas à tarifação prevista na Convenção de Montreal, devendo-se observar, nesses casos, a efetiva reparação do consumidor preceituada pelo CDC.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Em 1999, após a ampla privatização das empresas do setor e o advento de normas consumeristas em todo o mundo, foi celebrada em Montreal, sede da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), uma nova convenção, ampliando a proteção dos usuários do transporte aéreo internacional.
O art. 1º da Convenção de Montreal, inserida no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto n. 5.910, de 27/9/2006, esclarece que essa norma tem aplicação para todos os casos de transporte de pessoas, bagagem ou carga efetuado em aeronaves, mediante remuneração ou a título gratuito, por uma empresa de transporte aéreo. Muito embora deixe claro que trata de danos decorrentes de morte ou lesões corporais, atraso no transporte de pessoas e destruição, perda ou avaria de bagagem/carga, não esclarece se os danos referenciados são apenas os de ordem patrimonial ou também os de natureza extrapatrimonial.
Apesar da norma internacional, não mencionar claramente a espécie de danos aos quais se refere, é preciso considerar que ela representou uma mera atualização da Convenção de Varsóvia, firmada em 1929, quando sequer se cogitava de indenização por danos morais. Assim, se a norma original cuidou apenas de danos materiais, parece razoável sustentar que a norma atualizadora também se ateve a essa mesma categoria de danos.
Além disso, os prejuízos de ordem extrapatrimonial, pela sua própria natureza, não admitem tabelamento prévio ou tarifação. Nesse sentido, inclusive, já se posicionou a jurisprudência desta Corte Superior.
Se os países signatários da Convenção de Montreal tinham a intenção de impor limites à indenização por danos morais, nos casos de atraso de voo e de extravio de bagagem/carga, deveriam tê-lo feito de modo expresso.
Registra-se, também, que, se a própria Convenção de Montreal admitiu o afastamento do limite indenizatório legal quando feita declaração especial do valor da bagagem transportada, é possível concluir que ela não incluiu os danos morais.
Por sua vez, o STF, no julgamento do RE n. 636.331/RJ, com repercussão geral reconhecida (Tema 210), fixou a seguinte tese jurídica: nos termos do artigo 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. No entanto, referido entendimento tem aplicação apenas aos pedidos de reparação por danos materiais.
Com efeito, apesar de não estar em pauta a questão da indenização por danos morais, o STF no RE 636.331/RJ, afirmou, a título de obiter dictum, que os limites indenizatórios da Convenção de Montreal não se aplicavam às hipóteses de indenização por danos extrapatrimoniais.
Muito embora se trate de norma posterior ao CDC e constitua lex specialis em relação aos contratos de transporte aéreo internacional, não pode ser aplicada para limitar a indenização devida aos passageiros em caso de danos morais decorrentes de atraso de voo ou extravio de bagagem.
Assim, é de se reconhecer que a tarifação prevista na Convenção de Montreal tem aplicação restrita aos danos patrimoniais, mantendo-se incólume, em relação aos danos morais por extravio de bagagem e atraso de voo, o primado da efetiva reparação do consumidor insculpido nos arts. 5º, V, da CF, e 6º, VI, do CDC.

PROCESSO
REsp 1.701.824-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 12/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Cumprimento de sentença. Pagamento voluntário. Não ocorrência. Honorários advocatícios. Acréscimo de 10% (dez por cento). Art. 523, § 1º, do CPC/2015. Relativização. Impossibilidade.
DESTAQUE
O acréscimo de 10% (dez por cento) de honorários advocatícios, previsto pelo art. 523, § 1º, do CPC/2015, quando não ocorrer o pagamento voluntário no cumprimento de sentença, não admite relativização.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
As alterações realizadas pelo CPC/2015 na disciplina da fixação dos honorários advocatícios já foram objeto de debate na Segunda Seção desta Corte Superior, que concluiu que, dentre as alterações, o novo Código reduziu, visivelmente, a subjetividade do julgador, restringindo as hipóteses nas quais cabe a fixação dos honorários de sucumbência por equidade.
Isso porque, enquanto no CPC/1973 a fixação equitativa da verba era possível nas causas de pequeno valor, nas de valor inestimável, naquelas em que não houvesse condenação ou fosse vencida a Fazenda Pública e nas execuções, embargadas ou não (art. 20, § 4º). Reconheceu-se que no CPC/2015 tais hipóteses são restritas, havendo ou não condenação, às causas em que o proveito econômico foi inestimável, ou irrisório, ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo (art. 85, § 8º).
Nesse contexto, no cumprimente de sentença, nos termos do art. 523, § 1º, do CPC/2015, não ocorrendo o pagamento voluntário do débito no prazo de 15 (quinze) dias, o mesmo será acrescido de multa de 10% (dez por cento) e de honorários de advogado no percentual de 10% (dez por cento).
Assim, vencido o prazo sem pagamento do valor devido, haverá acréscimo, por força de lei, da multa de 10% (dez por cento) sobre o valor do débito atualizado, mais honorários advocatícios que o julgador deverá fixar, nos termos da lei, também em 10% (dez por cento) sobre o valor devido.
Com efeito, a lei não deixou dúvidas quanto ao percentual de honorários advocatícios a ser acrescido ao débito nas hipóteses de ausência de pagamento voluntário. Diz-se: o percentual de 10% (dez por cento) foi expressamente tarifado em lei.

PROCESSO
REsp 1.760.914-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Réu revel na fase de conhecimento. Advogado não constituído. Intimação por carta para o cumprimento de sentença. CPC/2015. Necessidade.
DESTAQUE
Ainda que citado pessoalmente na fase de conhecimento, é devida a intimação por carta do réu revel, sem procurador constituído, para o cumprimento de sentença.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Cinge-se a controvérsia sobre a necessidade de intimação pessoal dos devedores no momento do cumprimento de sentença prolatada em processo em que os réus, citados pessoalmente na fase de conhecimento, permaneceram revéis.
Inicialmente, registre-se que o STJ, sob a égide do CPC/1973, ao interpretar o conteúdo normativo do art. 322, dispositivo correspondente ao art. 346 do novo CPC, concluiu que "Após a edição da Lei nº 11.232/2005, a execução por quantia fundada em título judicial desenvolve-se no mesmo processo em que o direito subjetivo foi certificado, de forma que a revelia decretada na fase anterior, ante a inércia do réu que fora citado pessoalmente, dispensará a intimação pessoal do devedor para dar cumprimento à sentença." (REsp 1.241.749/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 27/09/2011, DJe 13/10/2011).
Faz-se necessário registrar, ainda, que, nas hipóteses em que o revel era citado fictamente, esta Corte Superior concluíra desnecessária qualquer intimação do executado para os fins do art. 475-J do CPC/1973.
O CPC de 2015, no entanto, alterou este cenário, em parte, em relação ao efeito processual da revelia consubstanciado na ciência do revel acerca dos atos processuais (art. 346 do CPC) e fortemente em relação à sua cientificação para o cumprimento de sentença (art. 513 do CPC).
Com relação à citação ficta do revel, o inciso IV do §2º do art. 513 do novo Código, deu tratamento diverso daquele dado pelo STJ, sob a vigência do CPC de 1973. Atualmente, o revel citado por edital ou por hora certa deverá ser intimado na fase executiva também por edital.
Perceba-se que não será suficiente, segundo a lei, a intimação pessoal da Defensoria Pública, quando atuar como curador especial do réu revel citado na forma do art. 256 do CPC, sendo necessário, nova intimação editalícia do executado, para cumprir a sentença em que restou condenado.
Em se tratando de revel que não tenha sido citado por edital e que não possua advogado constituído, o inciso II do §2º do art. 513 do CPC/2015 foi claro ao reconhecer que a intimação do devedor para cumprir a sentença ocorrerá "por carta com aviso de recebimento, quando representado pela Defensoria Pública ou quando não tiver procurador constituído nos autos, ressalvada a hipótese do inciso IV".
Pouco espaço a lei atual deixou para outra interpretação, pois ressalvou, apenas, a hipótese em que o revel fora citado fictamente, exigindo, ainda assim, nova intimação para o cumprimento da sentença, em que pese exigi-la na via do edital.
Em conclusão, na lei processual vigente, há expressa previsão de que o réu sem procurador nos autos, incluindo-se aí o revel, mesmo quando citado pessoalmente na fase cognitiva, deve ser intimado por carta, não se mostrando aplicável, neste especial momento de instauração da fase executiva, o quanto prescreve o art. 346 do CPC.

PROCESSO
REsp 1.770.863-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 09/06/2020, DJe 15/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Alienação fiduciária em garantia. Pagamento da integralidade da dívida. Art. 3º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969. Prazo. Direito material. Contagem. Dias corridos. Art. 219, caput, do CPC/2015. Inaplicabilidade.
DESTAQUE
O prazo de cinco dias para pagamento da integralidade da dívida, previsto no art. 3º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969, deve ser considerado de direito material, não se sujeitando, assim, à contagem em dias úteis, prevista no art. 219, caput, do CPC/2015.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
A natureza processual de um determinado prazo é determinada pela ocorrência de consequências endoprocessuais do ato a ser praticado nos marcos temporais definidos, modificando a posição da parte na relação jurídica processual e impulsionando o procedimento à fase seguinte.
A partir da entrada em vigor da Lei n. 10.931/2004, que deu nova redação aos parágrafos do artigo 3º do Decreto-Lei n. 911/1969, prevê-se a possibilidade de, em cinco dias, contados da execução da liminar deferida na ação de busca e apreensão, o devedor de mútuo com garantia de alienação fiduciária pagar integralmente a dívida.
A definição da natureza do referido prazo de cinco dias depende da aferição das consequências da prática, ou não, do ato a ele relacionado, isto é, ao pagamento, ou não, da integralidade da dívida.
O pedido da ação de busca e apreensão é, primordialmente, reipersecutório, haja vista tratar-se do exercício do direito de sequela inerente ao direito real de propriedade incidente sobre o bem gravado com alienação fiduciária; e, por essa razão, ela não se confunde com a ação de cobrança, por meio da qual o credor fiduciário requer a satisfação da dívida.
Justamente por ser o autor o proprietário do bem e, como consequência, possuir o direito de sequela – de poder buscá-lo na (ou "retirá-lo da") mão de terceiros –, a ação de busca e apreensão tem como causa de pedir próxima a relação de direito real, cujo implemento da condição resolutiva não se operou, em virtude da mora.
Assim, a sentença de procedência proferida na ação de busca e apreensão tem natureza meramente declaratória, porquanto, de acordo com a doutrina, não tem efeito constitutivo relativamente à consolidação da propriedade; esta resulta, de pleno direito, da condição, que corresponde à não purgação da mora.
Realmente, o pagamento da dívida no prazo do art. 3º, § 2º, do Decreto-Lei n. 911/1969, acarretaria, no máximo – na hipótese de não se discutir a ocorrência de mora ou a regularidade de sua comprovação –, a declaração da perda do objeto da ação de busca e apreensão, haja vista ter ocorrido, supervenientemente, no plano material, a condição que extingue a propriedade resolúvel do credor.

PROCESSO
REsp 1.845.536-SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. Acd. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por maioria, julgado em 26/05/2020, DJe 09/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
TEMA
Incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Condenação em honorários advocatícios. Descabimento. Art. 85, caput e § 1º, do CPC/2015.
DESTAQUE
Não há condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Nos termos do novo regramento emprestado aos honorários advocatícios pelo atual Código de Processo Civil, verifica-se que, em regra, a condenação nos ônus de sucumbência é atrelada às decisões que tenham natureza jurídica de sentença. Excepcionalmente, estende-se essa condenação àquelas decisões previstas na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente, conforme disposição expressa do § 1º do art. 85.
No caso concreto, está-se diante de uma decisão que indeferiu o pedido incidente de desconsideração da personalidade jurídica, à qual o legislador atribuiu de forma expressa a natureza de decisão interlocutória, nos termos do art. 136 do CPC/2015.
Assim, tratando-se de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o descabimento da condenação nos ônus sucumbenciais decorre da ausência de previsão legal excepcional, sendo irrelevante se apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente.

PROCESSO
REsp 1.854.882-CE, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 02/06/2020, DJe 04/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
TEMA
Ação civil pública. Acolhimento institucional de menor por período acima do teto legal. Danos morais. Questão repetitiva que não foi objeto de precedente vinculante. Existência de inúmeras ações civis públicas no juízo acerca do tema. Irrelevância. Interpretação restritiva das hipóteses autorizadoras do julgamento prematuro. Litígio de natureza estrutural. Necessidade de dilação probatória.
DESTAQUE
Em ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima daquele fixado em lei, não é admissível o julgamento de improcedência liminar ou o julgamento antecipado do pedido, especialmente quando, a despeito da repetitividade da matéria, não há tese jurídica fixada em precedente vinculante.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
Na hipótese, a sentença e o acórdão recorrido concluíram ser possível o julgamento de improcedência liminar do pedido sob fundamento de que existiam causas repetitivas naquele mesmo juízo sobre a matéria, o que autorizaria a extinção prematura do processo com resolução de mérito.
Todavia, diferentemente do tratamento dado à matéria no revogado CPC/1973, não mais se admite, no novo CPC, o julgamento de improcedência liminar do pedido com base no entendimento firmado pelo juízo em que tramita o processo sobre a questão repetitiva, exigindo-se, diferentemente , que tenha havido a prévia pacificação da questão jurídica controvertida no âmbito dos Tribunais, materializada em determinadas espécies de precedentes vinculantes, a saber: súmula do STF ou do STJ; súmula do TJ sobre direito local; tese firmada em recursos repetitivos, em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em incidente de assunção de competência.
Por limitar o pleno exercício de direitos fundamentais de índole processual, em especial o do contraditório e o da ampla defesa, é certo que a referida regra deve ser interpretada de modo restritivo, não se podendo dar a ela amplitude maior do que aquela textualmente indicada pelo legislador, razão pela qual se conclui que o acórdão recorrido violou o art. 332, III, do novo CPC, sobretudo porque é fato incontroverso que, no que tange ao tema, não há súmula ou tese firmadas em nenhuma das modalidades de precedentes anteriormente mencionadas.
De igual modo, para que possa o juiz resolver o mérito liminarmente e em favor do réu, ou até mesmo para que haja o julgamento antecipado do mérito imediatamente após a citação do réu, é indispensável que a causa não demande ampla dilação probatória, o que não se coaduna com a ação civil pública em que se pretende discutir a ilegalidade de acolhimento institucional de menores por período acima do máximo legal e os eventuais danos morais que do acolhimento por longo período possam decorrer, pois são questões litigiosas de natureza estrutural.
Os litígios de natureza estrutural, de que é exemplo a ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima do teto previsto em lei, ordinariamente revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual.
Conclui-se que também sob esse enfoque houve violação ao art. 332, caput e III, do novo CPC, na medida em que o julgamento de improcedência liminar do pedido (ou de julgamento antecipado do mérito) é, em regra, incompatível com os processos estruturais, ressalvada a possibilidade de já ter havido a prévia formação de precedente qualificado sobre o tema que inviabilize nova discussão da questão controvertida no âmbito do Poder Judiciário.

QUARTA TURMA
PROCESSO
RHC 80.124-RJ, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 26/05/2020, DJe 03/06/2020
RAMO DO DIREITO
DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR
TEMA
Empresa falida. Quebra decretada na vigência do Decreto-Lei n. 7.661/1945. Sócio minoritário sem poderes de administração. Fixação de residência no estrangeiro. Possibilidade. Retroatividade da Lei n. 11.101/2005. Desnecessidade de autorização judicial. Comunicação fundamentada ao juízo. Suficiência.
DESTAQUE
A norma mais benéfica do art. 104, III, da Lei n. 11.101/2005, que não exige mais autorização judicial, mas apenas a comunicação justificada sobre mudança de residência do sócio, inclusive para o exterior, pode ser aplicada às quebras anteriores à sua vigência.
INFORMAÇÕES DO INTEIRO TEOR
No caso, apesar da falência estar submetida ao rito do Decreto-Lei n. 7.661/1945, em razão da data de sua decretação no ano de 2004, e a despeito da previsão contida na Lei n. 11.101/2005, cujo art. 192 impede expressamente a retroação dos seus efeitos às falências decretadas antes de sua vigência, não se cuida aqui de atos processuais que importem ao andamento do processo de falência, os quais continuam regidos pelo Decreto-Lei n. 7.661/1945, mas do estatuto pessoal de sócio minoritário, sem poder de administração da falida, devendo prevalecer o regime jurídico atual, mais benéfico.
Vale lembrar que, na hipótese de apuração de crimes falimentares, a interpretação desta Corte admite a retroação da norma mais benéfica.
Além disso, a restrição de ir e vir apenas se justificaria se houvesse indício de cometimento de ilícito criminal, o que não ocorreu no caso. Nem mesmo há referência a inquérito instaurado (após mais de uma década da quebra), não se olvidando os efeitos de eventual prescrição.
Assim, deve ser decidido com base no art. 104, inciso III, da Lei n. 11.101/2005, o qual não mais exige a autorização judicial, mas apenas a comunicação, devidamente justificada, ao juiz da mudança de residência.
Destaque-se, por fim, que o "interesse social" em que a falência transcorra dentro da normalidade (para satisfação dos credores da massa) carece de concretude, se não há indicação precisa de qual seria a ameaça representada pela mudança de domicílio, enquanto o processo não alcança a fase final, nem há o que possa colocar em risco a solução da lide falimentar.