quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

DE MOISÉS PARA JESUS: DEZ MANDAMENTOS PARA EVITAR UM NOVO CASO PORTA DOS FUNDOS. ARTIGO DE ANDERSON SCHREIBER.

De Moisés para Jesus:
Dez Mandamentos para evitar um novo caso Porta dos Fundos
Anderson Schreiber
Professor Titular de Direito Civil da UERJ

A recente polêmica causada pela decisão judicial que ordenou a retirada do ar do Especial de Natal do Porta dos Fundos – revertida, em pouco mais de 24 horas, pelo STF – gerou uma quantidade imensa de comentários e postagens nas redes sociais, ora atacando a decisão, por violar frontalmente a liberdade de expressão, ora a defendendo com base na alegada violação à liberdade religiosa da “maioria cristã” (o termo foi, sintomaticamente, empregado tanto na decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro quanto na decisão do Supremo Tribunal Federal). O embate de opiniões é extremamente produtivo em uma sociedade democrática, mas, mais que a discussão de fundo, o episódio revela falta de atenção a algumas orientações que nossos tribunais já poderiam ter apreendido de outros casos judiciais que envolveram, na experiência recente, a colisão entre liberdade de expressão e outros direitos fundamentais e que poderiam trazer um pouco mais de segurança ao julgamento dessa espécie de conflitos. As referidas orientações podem ser sintetizadas em dez pontos para evitarmos um novo caso Porta dos Fundos.
1. Direitos x sentimentos. O deferimento de uma medida liminar (anterior, portanto, ao pleno desenvolvimento do contraditório) para suspender a veiculação de um programa televisivo é medida que deve assumir caráter excepcional na nossa ordem jurídica, não podendo ser concedida com base em meras impressões ou sentimentos, como a impressão de que a liminar é necessária para abrandar um suposto clamor público ou outras afirmações de caráter mais emotivo do que técnico. Isso não significa que a liberdade de expressão seja um direito absoluto ou que goze necessariamente de alguma preferência em caso de colisão com outros direitos fundamentais (como tem defendido parte do STF). Isso quer dizer apenas que medidas liminares devem ser concedidas de modo técnico e cuidadoso, em atenção aos requisitos legais para tanto, e que eventual decisão proferida nesse sentido precisa estar amparada em razões jurídicas que identifiquem o sacrifício concreto que está sendo imposto no caso específico que se analisa.
2. Concreto x abstrato. Com efeito, para conceder uma medida liminar desta natureza, tanto mais se monocrática, não basta que se esteja diante de uma alegação genérica e abstrata de violação a um direito fundamental. Impedir, liminarmente, o exercício concreto da liberdade de expressão exigiria a identificação de uma violação igualmente concreta a um outro direito fundamental. Não se pode, em outras palavras, suspender liminarmente a exibição de um programa televisivo com base na alegação genérica de que sua veiculação “é contra” a liberdade religiosa de todos os adeptos de uma certa religião. É preciso identificar concretamente o sacrifício que está sendo imposto ao exercício do direito fundamental lesado.
3. Individual x coletivo. A concretude a que se aludiu será tanto maior quanto mais individual for o sacrifício. Vale dizer: uma coisa é pleitear medida liminar para suspender a exibição de um programa televisivo que expõe a intimidade sexual de uma determinada pessoa (Fulano de tal) ou a entrevista coletiva em que o terapeuta contará publicamente o que um de seus clientes lhe confidenciou durante as sessões; outra coisa, bem diversa, é pleitear medida liminar para suspender a exibição de um programa sob a alegação de que o seu conteúdo ofende, genericamente, um direito fundamental de toda a sociedade ou da “maioria” dos brasileiros.
4. Minoria x maioria. A alegação de uma violação a um direito fundamental da maioria – no caso, a liberdade religiosa da “maioria cristã”, conforme mencionado, já se registrou, tanto pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro quanto pelo STF como razão de decidir – não é hierarquicamente inferior àquela que diga respeito a uma minoria vulnerável, mas o grau de urgência necessário a amparar uma medida liminar dessa espécie estará mais raramente presente no caso da maioria, pela simples razão de que a maioria dispõe de meios materiais de defesa mais intensos que aqueles de que dispõem as minorias vulneráveis. Enquanto a maioria tem condições de reagir no próprio espaço público – como se viu, no caso do Porta dos Fundos, pela imensidão de comentários críticos que o episódio despertou (não se inclui, aqui, a ilícita agressão dirigida à sede do programa) –, as minorias vulneráveis usualmente não dispõe de igual capacidade de se expressar além dos limites de seu próprio círculo de adeptos. O argumento da maioria aqui pesa, portanto, em desfavor da concessão de medida liminar, e não a favor dela.
5. Ficção x realidade. Uma medida liminar que paralise o exercício da liberdade de expressão já será, pelas razões expostas até aqui, excepcional na prática, mas deve ser ainda menos frequente em se tratando de obras de ficção. Uma reportagem que contenha informações objetivamente falsas sobre uma pessoa, ou que a retrate de modo gravemente ofensivo, tem maior aptidão de lesar seus direitos fundamentais que uma obra declaradamente ficcional. A ficção exprime, por definição, o distanciamento da realidade, distanciamento que é antevisto e até pressuposto por quem assiste à obra ficcional. Qualquer pessoa que viva em sociedade sabe que a ficção é “mais livre”, nesse sentido, do que a retratação da realidade que ocorre por meio de reportagens ou notícias jornalísticas. Por isso mesmo, o potencial lesivo da ficção é menor e menores são as chances de uma obra ficcional veicular lesão a direitos fundamentais suficientemente grave para justificar uma medida liminar. Foi este, aliás, o critério utilizado pelo juízo da 1ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para negar o pedido de suspensão do lançamento do filme Tropa de Elite: “recorde-se que se trata de peça de ficção, por mais que no início apareça referência de que a mesma estaria baseada em relatos verídicos. No entanto, os fatos, ao se traduzirem em palavras, recebem sempre uma versão. Será fidedigna? Será falaciosa? Será hiperbólica? Cada espectador que julgue por si. Certamente a prática profissional dos autores, se incongruente com o que o filme retrata, demonstrará que ele não passa de peça de (má) ficção. Caso contrário, estar-se-á presente a uma dramatização contundente da realidade.” (Processo 2007.001.146746-3).
6. Sátira x outras formas de ficção. Dentro do universo da ficção, é menor ainda o potencial lesivo das obras satíricas. A sátira e o humor em geral são práticas que se fundam justamente no exagero, no escárnio, na conversão do objeto em algo grotesco ou ridículo. Qualquer pessoa que viva em sociedade também sabe disso, o que reduz consideravelmente o grau efetivamente lesivo a direitos fundamentais do retratado. Esta ridicularização é, em larga medida, o próprio papel do humor nas sociedades democráticas, na medida em que promove, através do exagero frequentemente negativo, uma relevante crítica aos costumes sociais (castigat ridendo mores), incluindo – e por que não? – os costumes religiosos. A liberdade religiosa é o direito de cada um de exercer sua religião, e não o direito de que tal religião não seja criticada pelos demais. A história das religiões, e sua própria gênese, está frequentemente vinculada à crítica dirigida pelos seus adeptos a uma religião diversa, dominante em determinado tempo e espaço.
7. Sátira de personagens históricos x pessoas atuais. Ainda nessa mesma direção, parece evidente que a sátira que tem por objeto personagens históricos de origem milenar – fictícios ou reais – apresenta menor potencial lesivo a direitos fundamentais de quem quer que seja do que a sátira que se dirige contra pessoas atuais. Por maior importância que esses personagens possam assumir na crença de cada grupo religioso, não podem ser confundidos com pessoas atuais, que são, em última análise, os sujeitos protegidos pela ordem jurídica.
8. Veículo satírico x outros veículos. O potencial lesivo da sátira reduz-se ainda mais se o próprio veículo tem caráter satírico ou humorístico ou, ainda, se sua própria forma revela a intenção satírica (como acontece no caso das caricaturas e charges em jornais). Ao apreciar pedido de danos morais formulado pelos herdeiros do barão Smith de Vasconcellos, proprietário original do Castelo de Itaipava, em razão de “matéria” publicada pela revista humorística Bundas, que elegeu o Castelo de Itaipava como “Castelo de Bundas” – em nítida galhofa com a revista Caras, que se utilizava de um castelo para divulgação do estilo de vida dos famosos –, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, acertadamente, que “é preciso analisar não só a expressão apontada como injuriosa, e sim esta em conjunto com a integralidade do texto e com o estilo do periódico que o veiculou. Nesse aspecto, nota-se que o meio de comunicação é explicitamente satírico, o que se evidencia – se não por menos – pela proposta editorial calcada na possibilidade de fazer rir a partir da comparação com outra revista de grande circulação, cujo mote é publicizar a vida íntima daquilo que se convencionou chamar de celebridades” (REsp 736.015/RJ).
9. Sátira boa x sátira ruim. No mesmo caso do Castelo de Itaipava, o STJ decidiu expressamente, em boa passagem, que o “nível do humor praticado pelo periódico - apontado como ‘chulo’ - não é tema a ser debatido pelo Judiciário, uma vez que não cabe a este órgão estender-se em análises críticas sobre o talento dos humoristas envolvidos; a prestação jurisdicional deve se limitar a dizer se houve ou não ofensa a direitos morais das pessoas envolvidas pela publicação”. Vale dizer: pode-se gostar do humor veiculado ou não gostar (eu, por exemplo, não vi nenhuma graça no Especial de Natal em questão), pode-se, inclusive, criticá-lo, mas ninguém pode se arvorar – nem mesmo as mais elevadas cortes do país – no direito de eleger esta ou aquela forma de humor como a forma adequada à sociedade brasileira. Não se pode cercear – muito menos em sede de medida liminar – determinado exercício da liberdade de expressão, sob a alegação de que o humor veiculado foi “chulo” ou “grosseiro”. Cada um é livre para gostar do tipo de humor que preferir.
10. Estado laico x Estado religioso. O Estado brasileiro, como se sabe, é laico. Nesse contexto, a avaliação sobre se houve ou não ofensa à liberdade religiosa a partir da sátira televisa que tem por objeto personagens históricos de determinada religião não pode ser governada pelos valores próprios de cada grupo religioso, ou de qualquer de suas múltiplas vertentes, mas deve ter como único norte os valores constitucionais, que exprimem o compromisso unitário de toda sociedade brasileira sedimentado na Constituição da República. Daí porque atribuir satiricamente a Jesus a condição de homossexual – e outras galhofas semelhantes – não pode representar, nem mesmo em tese, uma violação à liberdade de religião, pois a liberdade sexual é plenamente acolhida pela ordem jurídica brasileira (STF, ADI 4.277/DF), tal como, de resto, toda espécie de diversidade, incluindo a própria diversidade religiosa.
Em suma, não é preciso peregrinar no deserto: todas as dez orientações acima indicadas já podem ser extraídas de precedentes judiciais brasileiros, sem falar na doutrina que vem se debruçando, já há alguns anos sobre o tema. Fariam bem os nossos tribunais se, ao analisar pedidos dessa espécie, seguissem esses mandamentos – com o perdão da brincadeira –, a fim de evitar a concessão de medidas liminares que despertam intensa polêmica e suscitam reviravoltas jurisprudenciais que contribuem para um clima de incerteza e insegurança quanto ao exercício dos direitos fundamentais no cenário brasileiro.

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