GUARDA
COMPARTILHADA E RELACIONAMENTO FAMILIAR – ALGUMAS REFLEXÕES NECESSÁRIAS
Por Giselle Câmara Groeninga. Psicanalista. Mestre e Doutora em Direito Civil pela USP. Diretora Nacional de Relações Interdisciplinares do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.
Vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família - ISFL.
A
aprovação pelo Senado do Projeto de Lei nº 117/2013 tem sido festejada em
diversos veículos de comunicação que exibem casais parentais felizes, como se
finalmente pudessem vir a exercer, com o auxílio da lei, seus direitos e deveres
para com os filhos. Um desejo que só pode ser por todos comungado - um ideal
mais do que legítimo. E neste sentido, a aprovação do PL foi por muitos
defendida, embora diversas vozes lhe fizessem ressalvas.
Mas,
é preciso que se diga, que o entendimento tem sido principalmente no sentido de
uma divisão do tempo dos filhos de forma igual entre as casas dos pais, correndo
o risco de confundir-se com a guarda alternada, o que foi objeto de
manifestações por parte do IBDFAM.
Em
termos sociais, familiares e legislativos há um longo caminho a ser percorrido
para a ampliação da consciência quanto à responsabilidade dos pais e às formas
de seu exercício.
As
mudanças legislativas apresentam um movimento pendular, com avanços e
retrocessos. Caso o PL seja sancionado, esclarecimentos estarão por vir, quer
pela via legislativa, quer pela própria interpretação e jurisprudência, neste
movimento pendular. E talvez, oxalá apenas um talvez, venha a ocorrer uma
sobrecarga ao Poder Judiciário... Mas, assim se caminha na seara das relações
familiares e na função do Judiciário em matéria de Direito de Família, com
sucessivos aprimoramentos necessários, e mesmo novas leis. E quiçá, inclusive o
termo “guarda”, com as imprecisões e confusões que carreia, possa vir a ser
substituído, no futuro próximo, pelo instituto da “convivência familiar” como
previsto no Estatuto das Famílias ou, ainda, por “relacionamento familiar”. Mas
esta é toda uma outra discussão.
O
que caberia questionar, no atual estágio das discussões, é se o referido PL
legitima o nobre ideal do relacionamento familiar equilibrado dos pais com os
filhos - e complementar entre os primeiros -, respeitando suas diferenças e,
mais ainda, se lhe dá a necessária eficácia.
Em
primeiro lugar, não cabe a inocência em se acreditar que a lei tenha, por si só,
o condão em harmonizar as relações familiares. Estas são complexas por natureza,
sobretudo em situações de litígio que envolvem os filhos, nas difíceis crises
que demandam a diferenciação do casal parental do casal conjugal, quando este
assim se constituiu. Dando mostras de tal complexidade tem se dado importância a
outras abordagens dos conflitos e litígios, com a possibilidade do recurso à
orientação técnico-profissional, como contemplado no Art. 1.584, II-, § 3º da
lei 11.698 (“Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de
convivência sob guarda compartilhada, o juiz de ofício ou a requerimento do
Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de
equipe interdisciplinar”). Recurso este mantido no PL 117/2013 mas que, no
entanto, prioriza a questão do tempo reservado a cada um dos pais, (“O juiz,
de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em
orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá
visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe”, grifos da
autora).
Seja
como for, dando mostras da complexidade da questão, somou-se ao rito processual
o recurso a outros profissionais e equipes interdisciplinares. E ainda, apenas
como exemplo de iniciativas que buscam contemplar as dificuldades quanto ao
exercício da responsabilidade parental, temos a difusão das Oficinas de Pais e a
crescente ênfase dada aos institutos da Mediação e da Conciliação. Em
recente Conferência Mundial da Sociedade Internacional de Direito de Família –
ISFL -, realizada em agosto em Recife, clara se mostrou a tendência em se
recorrer a outros profissionais nas questões relativas ao exercício da
parentalidade, vez que a lei e o Judiciário em outras partes do mundo enfrentam
problemas semelhantes aos que aqui se discutem.
A
lei tem importante função em acompanhar as mudanças nos paradigmas sociais,
abrigando contribuições trazidas por outras áreas do conhecimento. E as leis da
guarda compartilhada, Nº 11.698, e da alienação parental, Nº 12.318, trouxeram
inúmeros avanços, sobretudo em um país em que a grande maioria das guardas é
unilateral, em que mais de um terço dos lares é mantido exclusivamente por
mulheres, em que um sem número de filhos não tem o nome do pai na certidão de
nascimento, e em que há tantos outros sintomas a demonstrar fragilidades nas
instituições… fragilidade que se atualiza também nas famílias, e que demandam a
proteção do Estado.
Nesta
linha, é importante a sensibilização para a responsabilização conjunta dos pais
e para a consciência da importância de ambos na vida dos filhos e, ainda, para o
que se mostra fundamental: que as funções parentais devem ser tratadas mais como
complementares do que como paralelas.
E
este ponto, de relações complementares, é central. Como que às avessas, ele se
representava na controversa expressão “sempre que possível”, que consta
no Art. 1584, II-, § 2º (“Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto
à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda
compartilhada”). Expressão suprimida no PL 117/2014 (“quando não houver
acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os
genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda
compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a
guarda do menor”).
A
complexa questão da complementaridade das funções acabou, muitas vezes, por
ensejar uma simplificação indevida, com a interpretação de que a expressão
“sempre que possível” implicava na impossibilidade da guarda
compartilhada quando não houvesse entendimento entre os pais; embora, cabe
lembrar, houvesse a possibilidade do recurso a outros profissionais, recurso
aliás bem pouco utilizado. E, na indevida linha de simplificação do que é por
natureza complexo, o PL 117/2014 acabou por enfatizar a questão da divisão do
tempo, talvez como se desta forma se “resolvesse” e se pacificasse a questão. Ao
que muito indica, o compartilhamento corre o risco de ser transformado, assim,
em alternância.
Não
se tem dúvidas de que, historicamente, a lei da guarda compartilhada, Nº 11.698,
representa uma evolução no sentido de reforçar o poder familiar que, repita-se,
deveria idealmente ser exercido de forma complementar e cooperativa entre os
pais. É certo que a guarda única podia contribuir para diminuir o poder
familiar, para a exclusão e mesmo alienação dos pais, tanto impondo uma
sobrecarga a um, enquanto que ao outro lhe ficava reservado o direito de
visitas, o pagamento da pensão e o dever de fiscalização. Na falta de
entendimento, o primeiro tornava-se refém da boa-vontade do segundo, e este, em
alguns casos, refém daquele contemplado com a guarda - em geral a mãe.
A
guarda unilateral, como única modalidade possível, reproduzia um contexto social
em que predominava uma divisão das funções baseadas no sexo e identidade de
gênero. Podia ser, assim, desequilibrado o exercício do poder familiar,
sobretudo nos casos de litígio, mas não só. Também em termos dos novos papéis
assumidos por homens e mulheres, o exercício do poder familiar podia se ver
desbalanceado, e também as concernentes responsabilidades, promovendo-se
desigualdades de direitos e deveres, vis-a-vis as novas possibilidades de
organização das famílias e das funções parentais, e a consciência da necessidade
dos filhos em contarem com o relacionamento com ambos os pais.
As
mudanças quanto à compreensão da importância dos vínculos com os dois pais,
baseados no afeto, e quanto à uma maior plasticidade no exercício das funções
parentais, e mesmo relativamente à igualdade entre os gêneros, refletiram-se em
novos modelos familiares que reclamavam novas leis; ademais ganharam voz os
abusos, exclusões e tentativas de alienação.
Produto
também de um compreensível e legítimo movimento dos pais, as leis, tanto da
Guarda Compartilhada como da Alienação Parental, tentaram acompanhar as mudanças
de paradigmas, sobretudo vindo em socorro do desequilíbrio no exercício do poder
familiar.
Curiosamente,
a definição da Guarda Compartilhada é a de responsabilização conjunta do pai e
da mãe, como se não o fosse na guarda unilateral… Mas é certo que à lei coube
enfatizá-la, sendo que a responsabilidade parental e o exercício de direitos e
deveres do pai e da mãe, concernentes ao poder familiar, não só não deveriam se
restringir, como encontravam-se indevidamente desequilibrados com o predomínio
da guarda unilateral. Tal desequilíbrio expressa-se também em expressões como
"direito de visita" e "dever de fiscalização", embora as
interpretações considerem como sendo um direito/dever, um múnus. É
unanimidade que o conceito de visita não cabe mais nas relações parentais, e que
a responsabilidade transcende a fiscalização e o mero pagamento relativo à
manutenção dos filhos e, em muitos casos, da mãe.
A
responsabilidade dos pais, seja na guarda única como na compartilhada implica no
dever/direito em educar e criar; mas a referida lei continha ainda uma divisão
indevida, sendo critério para atribuição da guarda unilateral ao pai ou à mãe
que demonstrasse melhores condições para propiciar saúde, segurança e educação,
cabendo ao outro a supervisão dos interesses dos filhos. O equilíbrio entre
direitos e deveres dos pais podia ficar, assim, um tanto restrito à guarda
compartilhada. Necessária se faz a correção, que está contemplada no PL 117/2014
(Art. 1634. “Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação
conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto
aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação; II- exercer a guarda
unilateral ou compartilhada nos termos o art. 1.584;”...”IV-
conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V-
conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência
permanente para outro Município;” grifos da
autora).
Ainda,
digna de nota, é a importância que foi dada ao afeto na Lei 11.698. Este
decorrente do exercício da responsabilidade parental e dos vínculos formados com
base no relacionamento familiar, ou formas de convivência. O afeto foi
contemplado indiretamente como condição para a atribuição da guarda unilateral
para aquele que revelasse mais aptidão para propiciar aos filhos "afeto nas
relações com o genitor e com o grupo familiar" (Art. 1.583, § 2º,
I-). Novamente o espírito da complementariedade aí está presente. No entanto, na
redação do PL 117/2014, tal referencia foi suprimida...
Assim,
a lei da guarda compartilhada enfatizou: a responsabilidade parental conjunta, a
cooperação, a importância do relacionamento familiar com ambos os pais e
familiares em suas diversas formas, a importância do afeto – e, por tudo, a
complementariedade das funções. Contar com outros profissionais para o
estabelecimento das responsabilidades e do tempo a ser empregado no cuidado para
com os filhos, mostrou-se neste sentido um caminho salutar.
Observe-se
que as necessidades de cada criança ou adolescente variam de acordo com a idade,
maturidade e contexto, como também variam as possibilidades de cada genitor,
sendo diversas as formas quanto ao exercício da parentalidade. Não se deve
esquecer que, assim como se busca atualmente contemplar uma série de composições
familiares, também são diversos os modelos parentais, e que estes podem se
modificar ao longo do tempo, de acordo com interesses e necessidades diversas.
Ademais há pais e mães que participam mais do cotidiano, há outros que
participam menos diretamente, o que não os faz pais piores ou melhores.
Se
de um lado a guarda compartilhada pode ajudar a prevenir a alienação parental,
chamando à responsabilidade parental conjunta, diferenciando as questões da
conjugalidade daquelas da parentalidade, por outro lado é inegável que a
expressão "sempre que possível" tem dado margem a um incremento do
litígio e tentativa de alienação parental para obtenção da guarda unilateral. Um
efeito colateral indesejável, e mesmo um uso perverso daquela expressão. O
recurso previsto a outros profissionais seria um caminho para tentar harmonizar
as diferenças e mesmo apaziguar o litígio, mas infelizmente pouco utilizado e
distante da realidade da maioria dos nossos tribunais; mas estas são
dificuldades que não justificariam a indevida simplificação.
O
PL 117/2013 viria no sentido de tentar aprimorar os avanços obtidos com a lei
anterior.
No
entanto, ao tentar corrigir a expressão "sempre que possível", e que deu
margem a injustiças, muito indica que a nova lei acabou por confundir o que
seria o espírito da guarda compartilhada – complementariedade das funções,
separação das questões da conjugalidade desfeita com as da parentalidade,
formação dos vínculos por meio do exercício da responsabilidade parental e das
diversas formas de convivência – enfatizando a questão do tempo com uma redação
que dá margem à interpretação deste ser metade com a mãe e metade com o pai e a
alternância entre as residências. O resultado pode ser uma equiparação
equivocada do que é necessariamente diferente: função materna e função paterna.
É preciso que se diga que as diferenças não implicam menos direitos e
deveres.
Curiosamente,
o que deve ser privilegiado na lei – o superior interesse dos filhos, que se
entende como indissociável daquele dos pais enquanto no exercício de suas
funções – pode acabar por se desvirtuar com a simples divisão equilibrada do
tempo, e com a designação genérica de custódia física dos filhos, recém
substituída por tempo de convívio (Art. 1583, § 2º).
Examine-se
o que se afigura como uma confusão quanto ao significado de “divisão
equilibrada do tempo”. É importante que esta se dê “sempre tendo em vista
as condições fáticas e os interesses dos filhos”, como consta do PL.
Condições e interesses que variam em cada fase do desenvolvimento das crianças e
adolescentes, como também de acordo com as possibilidades dos pais, levando-se
em conta o exercício diferenciado das funções. Caso as condições e interesses
não recebam o necessário exame, e a continuar a confusão divulgada na mídia e
nas críticas ao PL, em que se entende que os filhos passarão igual período na
casa de cada genitor, a lei pode acabar por não atender aos interesses da
família transformada pela separação dos cônjuges, conviventes, ou mesmo nos
casos de filhos de casais que não se constituíram.
A
necessária cooperação entre os pais não se estabelece pela tentativa em
homogeneizar as diferenças e dividir o tempo e moradia; pelo contrário, isto
pode vir a acentuar a competição e a cisão. Em suma, o risco é o de se
privilegiar fatores espaciais e temporais, objetivos, em detrimento dos fatores
existenciais e afetivos, certamente mais complexos. Mas, desconsiderá-los
transforma complexidade em complicação. Os vínculos devem ser, tanto quanto
possível, considerados na sutileza, complexidade e especificidades das
relações.
Assim,
até o presente estágio das discussões, não se pode dizer ao certo o quanto o
espírito da lei pode ser desvirtuado em uma visão salomônica – divide-se a
parentalidade, divide-se o filho ao meio, e o tempo de convivência -
confundindo-se igualdade de direitos com a desconsideração das diferenças entre
as funções parentais e as necessidades dos filhos.
A
continuar o entendimento da divisão do tempo dos filhos entre as casas dos pais,
deve-se temer, ainda, que o "efeito colateral" indesejável da nova lei possa
refletir-se em tentativas de modificação quanto à pensão alimentícia. Talvez
mais controvérsias estejam por vir.
Finalmente,
há ainda dois pontos que merecem reflexão. O primeiro diz respeito ao que pode
ser interpretado como um “ato falho” da lei ao punir indiretamente os filhos com
o que seria a punição aos pais. Veja-se na Lei Nº 11.698, o Art. 1584, II-, § 4º
(“A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusulas de
guarda, unilateral ou compartilhada, poderá implicar a redução de prerrogativas
atribuídas ao seu detentor, inclusive quanto ao número de horas de convivência
com o filho.”). Como um avanço, foi suprimida a frase “inclusive quanto
ao número de horas de convivência com o filho” redação do PL 117/2014,
permanecendo um tanto vaga o que seria a “redução de prerrogativas atribuídas
ao seu detentor”. Mas ainda, fica a ideia de que o Superior Interesse da
Criança e do Adolescente seria ferido com a punição à mãe ou ao pai, seja com
diminuição de horas de convivência ou redução de prerrogativas; caminhos que
visem à sensibilização deveriam ser privilegiados.
O
outro ponto reside no que pode ser interpretado como imposição de um modelo de
relacionamento familiar, em que a supervalorização da guarda compartilhada
tomada no sentido de igualdade de tempo com cada pai, colocaria em difícil
posição aquele que “declarar ao magistrado que não deseja a guarda do
menor”. O desejável é que panorama atual fosse mais de conscientização do
que de imposição, do respeito à diversidade, de liberdade com responsabilidade e
reforço do poder familiar.
A
guarda compartilhada deveria e poderia representar um caminho para a inibição da
alienação parental. No entanto, em alguns casos, ela pode inclusive fomentá-la.
Assim se dá nos casos em que o litígio é indevidamente ampliado para que a
guarda seja unilateral - um mau uso da expressão “sempre que possível”.
Mas é certo que a alienação parental tem terreno fértil, sobretudo, quando as
relações não forem entendidas de forma complementar como o devem ser as funções
materna e paterna, bem como consideradas suas diferenças.
Os
filhos necessitam de pai, de mãe, e que estes de alguma forma cooperem e não
compitam. As relações tratadas de forma paralela, podem acabar por ser uma
tentativa de combater uma alienação, de um dos pais, com outra alienação – a da
própria relação parental.
O
desafio é: o da consideração dos interesses dos filhos - indissociados daqueles
dos pais no exercício de suas funções -, e o da consideração das diferenças na
igualdade de direitos e deveres.
Giselle
Câmara Groeninga
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