O direito dos indivíduos transexuais de alterar o seu
registro civil
Fonte: Site do STJ.
O nome é mais que um acessório. Ele é de extrema relevância na vida social,
por ser parte intrínseca da personalidade. Tanto que o novo Código Civil trata o assunto em seu Capítulo
II, esclarecendo que toda pessoa tem direito ao nome, compreendidos o prenome e
o sobrenome.
Ao proteger o nome, o CC de 2002 nada mais fez do que concretizar o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III,
da Constituição Federal.
Essa tutela é importante para impedir que haja abuso, o que pode acarretar
prejuízos e, ainda, para evitar que sejam colocados nomes que exponham ao
ridículo seu portador.
Uma realidade que o Poder Judiciário brasileiro vem enfrentando diz respeito
aos indivíduos transexuais. Após finalizar o processo transexualizador – com a
cirurgia de mudança de sexo -, esses cidadãos estão buscando a Justiça para
alterar o seu registro civil, com a consequente modificação do documento de
identidade.
Sem legislação
Entretanto, não há no Brasil uma legislação que regulamente e determine a
alteração imediata do registro civil. Assim, resta ao transexual pleitear
judicialmente a alteração.
Alguns juízes permitem a mudança do prenome do indivíduo, com fundamento nos
princípios da intimidade e privacidade, para evitar principalmente o
constrangimento à pessoa. Outras decisões, por sua vez, não acatam o pedido,
negando-o em sua totalidade, com base estritamente no critério biológico.
Há também decisões que, além da alteração do prenome, determinam que a mesma
seja feita com a ressalva da condição transexual do indivíduo, não alterando o
sexo presente no registro. Finalmente, há decisões que não só permitem a mudança
do prenome como a do sexo no registro civil.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem autorizando a modificação do nome
que consta do registro civil, bem como a alteração do sexo. Entretanto, consigna
que a averbação deve constar, apenas do livro cartorário, vedando qualquer
menção nas certidões do registro público, sob pena de manter a situação
constrangedora e discriminatória.
Segundo o ministro da Quarta Turma do STJ Luis Felipe Salomão, se o indivíduo
já realizou a cirurgia e se o registro está em desconformidade com o mundo
fenomênico, não há motivos para constar da certidão.
Isso porque seria um opróbrio ainda maior para o indivíduo ter que mostrar
uma certidão em que consta um nome do sexo masculino. Entretanto, a averbação
deve constar do livro cartorário. “Fica lá no registro, preserva terceiros e ele
segue a vida dele pela opção que ele fez”, afirmou o ministro.
Vida digna
Para a ministra Nancy Andrighi, quando se iniciou a obrigatoriedade do
registro civil, a distinção entre os dois sexos era feita baseada na conformação
da genitália. Hoje, com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem
vários outros elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição de
gênero não pode mais ser limitada somente ao sexo aparente.
“Todo um conjunto de fatores, tanto psicológicos quanto biológicos, culturais
e familiares, devem ser considerados. A título exemplificativo, podem ser
apontados, para a caracterização sexual, os critérios cromossomial, gonadal,
cromatínico, da genitália interna, psíquico ou comportamental, médico-legal, e
jurídico”, afirma a ministra.
Para Andrighi, se o Estado consente com a possibilidade de realizar-se
cirurgia de transgenitalização, logo deve também prover os meios necessários
para que o indivíduo tenha uma vida digna e, por conseguinte, seja identificado
jurídica e civilmente tal como se apresenta perante a sociedade.
Averbação no registro
O primeiro recurso sobre o tema foi julgado no STJ em 2007, sob a relatoria
do falecido ministro Carlos Alberto Menezes Direito. No caso, a Terceira Turma
do STJ, seguindo o voto do ministro, concordou com a alteração, mas definiu, na
ocasião, que deveria ficar averbado no registro civil do transexual que a
modificação do seu nome e do seu sexo decorreu de decisão judicial.
De acordo com o ministro Direito, não se poderia esconder no registro, sob
pena de validar agressão à verdade que ele deve preservar, que a mudança
decorreu de ato judicial nascida da vontade do autor e que se tornou necessário
ato cirúrgico.
“Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode
impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada para o
reconhecimento do direito do autor”, afirmou o ministro, à época.
Livro cartorário
Em outubro de 2009, a Terceira Turma, em decisão inédita, garantiu ao
transexual a troca do nome e do gênero em registro, sem que constasse a anotação
no documento. O colegiado determinou que o registro de que a designação do sexo
foi alterada judicialmente constasse apenas nos livros cartorários.
A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a observação
sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a
situações constrangedoras e discriminatórias.
“Conservar o ‘sexo masculino’ no assento de nascimento do recorrente, em
favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e
social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado em tudo
se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de
anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente”, concluiu a
ministra.
Exposição ao ridículo
O mesmo entendimento foi aplicado pela Quarta Turma, em dezembro de 2009. O
relator do recurso, ministro João Otávio de Noronha, destacou que a Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos)
estabelece, em seu artigo 55, parágrafo único, a possibilidade de o prenome ser
modificado quando expuser seu titular ao ridículo.
“A interpretação conjugada dos artigos 55 e 58 da Lei de Registros Públicos
confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização judicial para a
alteração de seu prenome, substituindo-o pelo apelido público e notório pelo
qual é conhecido no meio em que vive”, disse o ministro.
Na ocasião, Noronha afirmou ainda que o julgador não deve se deter em uma
codificação generalista e padronizada, mas sim adotar a decisão que melhor se
coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das
pessoas.
Quanto à averbação no livro cartorário, o ministro afirmou que é importante
para salvaguardar os atos jurídicos já praticados, para manter a segurança das
relações jurídicas e, por fim, para solucionar eventuais questões que
sobrevierem no âmbito do direito de família (casamento), no direito
previdenciário e até mesmo no âmbito esportivo.
Renascimento
Para a transexual Bianca Moura, 45 anos, a mudança do registro civil foi um
renascimento. Servidora pública do Governo do Distrito Federal, a maranhense
conseguiu a alteração em setembro de 2011, um ano e meio depois de dar entrada
em toda a documentação.
“Procurei o Judiciário em fevereiro de 2010 com meus documentos, fotos,
laudos, tudo. Um ano e meio depois, recebi uma carta comunicando a sentença. Ao
conversar com o juiz, fui avisada que teria que ir até o Maranhão, estado onde
nasci, para pegar a nova certidão. Fui até lá com minha mãe. O processo foi
muito tranquilo”, disse.
Bianca começou sua transformação há 20 anos, em uma época que não se tinha
nenhuma perspectiva de se fazer o processo de readequação de gênero, quanto mais
no registro. Ela ainda está na fila do Sistema Único de Saúde (SUS), aguardando
a sua vez de realizar o procedimento. Mas isso não a impediu de ir atrás de seus
direitos.
“Sempre quis ser reconhecida civilmente como uma mulher. É de extrema
importância para mim que o estado reconheça a minha identidade. O não
reconhecimento me causou inúmeros constrangimentos. Nem todo mundo aceita te
chamar pelo nome social. Acredito que todos os transexuais desejem ter sua
identidade reconhecida e respeitada”, afirmou Bianca.
Nome social é o nome pelo qual os transexuais e travestis são chamados
cotidianamente, em contraste com o nome oficialmente registrado, que não reflete
sua identidade de gênero.
Projeto de lei
Está em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5.002/2013, de autoria do
deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) e da deputada Erika Kokay (PT-DF), que trata da
viabilização e desburocratização para o indivíduo ter assegurado, por lei, o
direito de ser tratado conforme o gênero escolhido por ele.
A proposta obriga o SUS e os planos de saúde a custearem tratamentos
hormonais integrais e cirurgias de mudança de sexo a todos os interessados
maiores de 18 anos, aos quais não será exigido nenhum tipo de diagnóstico,
tratamento ou autorização judicial.
De acordo com o PL, não será necessário entrar na justiça para conseguir a
mudança do nome e toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e
a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal sempre que
não coincidam com a sua identidade de gênero autopercebida.
Segundo a proposta, mesmo um menor que não tenha consentimento dos pais
poderá recorrer à defensoria pública para que sua vontade de mudança de nome
seja atendida. Menores de 18 anos poderão ainda fazer cirurgia de mudança de
sexo, mesmo sem a autorização dos pais, seguindo os critérios da alteração do
registro civil.
O projeto de lei diz que a mudança do sexo não altera o direito à maternidade
ou à paternidade. Também será preservado o matrimônio, se os cônjuges quiserem,
sendo possível retificar a certidão do casamento, para constar a união
homoafetiva.
Os números dos processos não são divulgados em razão de segredo
judicial.
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