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que é inconstitucional "repristinar" a separação judicial no Brasil
Fonte:
CONJUR. Autorizado pelo autor.
A
separação judicial fundamenta-se em forte rastro ideológico-religioso.
Basicamente, o que a justificava era apreservação
da família: criou-se um hiato temporal legal que obstava o rompimento do
vínculo conjugal de imediato a fim de permitir aos cônjuges repensarem sua
situação de separados judicialmente. Sendo mais direto: o Estado imiscuía-se na
própria vontade do brasileiro de não permanecer casado e, mais que isso,
exortava-o sutilmente a agir de modo contrário e a retomar o casamento.
Hoje,
é certo que esse tipo de intromissão do Estado na vida dos casais fere
claramente a secularização.
O
legislador impusera aos cônjuges, não mais desejosos de permanecerem juntos, a
obrigação de percorrerem uma espécie de calvário, que se caracterizava por um
dualismo legal, como condição para que o casamento se dissolvesse de modo
definitivo. A Lei 6515/77 deu margem a utilização de expressões não
diferenciadas pelo senso comum, mas que no âmbito jurídico adquiriram
conotações próprias: pelo que nela se lê, somente o divórcio e a morte possuem
força dedissolver o
casamento válido (põe termo ao casamento e aos efeitos civis do matrimônio
religioso); a separação judicial, de sua vez, apenas termina com a sociedade
conjugal.
Desejoso
de casar de novo? Só mediante o divórcio. Bingo. Dualismo legal porque o
desapego definitivo do vínculo conjugal só era possível depois de superados
dois procedimentos judiciais diversos – a não ser que a opção fosse pelo
divórcio direto, só possível para aqueles separados de fato já por dois anos –,
não raras vezes regrados de ataques e contra-ataques, constrangimentos e
exposições dos erros e mazelas da vida íntima do casal.
Mas
com a evolução social essa situação clamava por mudança. E foi com esse
objetivo que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) apresentou
PEC, por meio de um de seus associados, Deputado Federal Sérgio Barradas
Carneiro, para dar nova redação ao parágrafo 6º do art. 226 da Constituição
Federal. O resultado foi profícuo, apesar das críticas recebidas mormente de
parlamentares religiosos, cujos argumentos permaneceram fiéis à tônica de
preservação da família: afirmavam que a medida incentivaria o divórcio e
banalizaria o casamento. De qualquer sorte, a PEC vingou e, hoje, depois da EC
66 dela resultante, o parágrafo 6º
do art. 226 apresenta-se mais sucinto e reza simplesmente que “o casamento
pode ser dissolvido pelo divórcio”. Eliminou-se o complemento, presente em sua
versão anterior, que condicionava o divórcio à prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em
lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. Com a EC 66, ficaram
não recepcionadas as normas de direito material e processual que versavam sobre
a separação judicial. Sendo mais claro: a separação foi varrida do mapa
jurídico. Ponto para a secularização do direito. E ponto para Baruch Espinosa,
um dos precursores da secularização.
E não pode haver dúvida que, com a alteração do
texto constitucional, desapareceu a separação judicial no sistema normativo
brasileiro – e antes que me acusem de descuidado, não ignoro doutrina e
jurisprudência que seguem rota oposta ao que defendo no texto, mas com elas
discordo veementemente.
Assim, perde o sentido distinguir-se término e dissoluçãode
casamento. Isso é simples. Agora, sociedade conjugal e vínculo conjugal são
dissolvidos mutuamente com o divórcio, afastada a necessidade de prévia
separação judicial ou de fato do casal. Nada mais adequado à um Estado laico (e
secularizado), que imputa inviolável a liberdade de consciência e de crença
(CF/88, art. 5o., VI). Há, aliás, muitos civilistas renomados que defendem essa
posição, entre eles Paulo Lôbo, Luís Edson Facchin e Rodrigo da Cunha.
Pois bem. Toda essa introdução me servirá de base
para reforçar meu posicionamento e elaborar crítica para um problema que
verifiquei recentemente. E já adianto a questão central: fazendo uma leitura do
Projeto do novo CPC, deparei-me com uma espécie de repristinação da separação
judicial. Um dispositivo tipo-Lázaro. Um curioso retorno ao mundo dos
vivos.
A impressão que tive é de estar de frente para um
fantasma! Está lá a morta-viva, em vários dispositivos do CPC Projetado: art.
23, III; art. 53, I; art. 189, II e seu parágrafo único; art. 708, art. 746;
art. 747; e art. 748. De onde teria surgido isso?
Comecei a pensar no porquê desse ato milagroso: a
ressureição legal de um instituto jurídico que deveria permanecer sepultado em
nome da secularização do direito. Não há justificativa plausível.
Tenho dito e redito – e me perdoem a insistência,
pois sofro de LEER (Lesão por Esforço Epistêmico Repetitivo)– que não há
Direito sem história porque é o passado que nos lega os sentidos jurídicos nos
quais, desde sempre, estamos imersos – o direito é um conceito
interpretativo. É assim, portanto, que a hermenêutica irá responder ao problema
da relação entre prática e teoria: um contexto intersubjetivo de fundamentação
(a noção de pré-compreensão, contexto antepredicativo de significância, etc) no
interior do qual tanto o conhecimento teórico quanto o conhecimento prático se
dão na applicatio.
Não importa ao direito uma modalidade da moral que
não opera no mundo prático-concreto (moral ornamental) e tampouco um moralismo
jurídico no interior do qual o direito seria responsável pela capilarização dos
desejos morais individuais dos que participam da comunidade política. O que
tenho defendido é a presença de uma moral instituidora da comunidade
política que obriga legisladores e juízes a seguirem uma cadeia de
coerência e integridade em suas decisões.
De todo modo, a lo largo de tudo isso,
algo passou despercebido na mente do legislador empenhado na elaboração do novo
CPC. Explico: a historicidade é inexorável para que se tenha o Direito.
Entretanto, ao que parece o legislador do CPC Projetado, nesse particular,
rejeitou-a na medida em que decidiu ignorar todo o caminho doutrinário e
jurisprudencial percorrido até a publicação EC 66/2010 e cuja desígnio foi o de
justamente, e de uma vez por todas, abolir do sistema normativo brasileiro a
separação judicial mediante a sua total absorção pelo instituto do divórcio.
Aqui, é suficiente a leitura da exposição dos
motivos da EC 66/2010:
“Como corolário do sistema jurídico vigente,
constata-se que o instituto da separação judicial perdeu muito da sua
relevância, pois deixou de ser a antecâmara e o prelúdio necessário para a sua
conversão em divórcio; a opção pelo divórcio direto possível revela-se
natural para os cônjuges desavindos, inclusive sob o aspecto econômico, na
medida em que lhes resolve em definitivo a sociedade e o vínculo conjugal.”
Bingo de novo. Um pouco de interpretação histórica
por vezes vai bem, pois não?
Caíram por terra justificativas de moral religiosa
que se escondiam por detrás das dificuldades legais que os cônjuges encontravam
para dissolver o casamento, o que se apresenta mais condizente com um Estado
que assegura o livre exercício dos cultos religiosos (CF/88, art. 5o., VI).
Em resumo: hoje o direito trabalha com
desvinculação não mais pautada na culpa, e, sim, na ruptura objetiva do vínculo
conjugal. Essa constitucionalização prospectiva se dirige, pois, a um telos de
transformação do Direito de Família e de sua eficácia na sociedade. Não mais se
cogita, pois, da figura intermediária que é historicamente marcada pelo debate
a respeito da culpa pela dissolução da sociedade conjugal – que que convertia o
Estado em juiz da intimidade conjugal.
A ausência de liberdade de conformação do
legislador
Logo, a questão que se põe é: o legislador
ordinário tem liberdade de conformação para alterar o sistema constitucional
estabelecido pela EC 66? A resposta é escandalosamente negativa, sob pena de
aceitarmos, daqui para a frente, que uma lei ordinária possa vir a alterar a
Constituição recentemente modificada. Simples assim. Não dá para estabelecer
por lei ordinária aquilo que o constituinte derivado derrogou! Para entender
isso, basta ler o caso Marbury v. Madison, de 1803. Um olhar para a
tradição demonstra que essa é a resposta adequada a Constituição, uma vez que
traz consigo a coerência e integridade.
Numa palavra final
O legislador do novo CPC tem responsabilidade
política (no sentido de que falo em Verdade e Consenso e Jurisdição
Constitucional e Decisão Jurídica). Para tanto, deve contribuir e aceitar,
também nesse particular, a evolução dos tempos eliminando do texto todas as
expressões que dão a entender a permanência entre nós desse instituto cuja
serventia já se foi e não mais voltará. Não fosse por nada – e peço desculpas
pela ironia da palavra “nada” - devemos deixar a separação de fora do novo CPC
em nome da Constituição. E isso por dois motivos:
A um, por ela mesma, porque sacramenta a
secularização do direito, impedindo o Estado de “moralizar” as relações
conjugais;
A dois, pelo fato de o legislador constituinte
derivado já ter resolvido esse assunto. Para o tema voltar ao “mundo jurídico”,
só por alteração da Constituição. E ainda assim seria de duvidosa
constitucionalidade. Mas aí eu argumentaria de outro modo.
Portanto, sem chance de o novo CPC repristinar a
separação judicial (nem por escritura pública, como consta no Projeto do CPC).
É inconstitucional. Sob pena de, como disse Marshall em 1803, a Constituição
não ser mais rígida, transformando-se em flexível. E isso seria o fim do
constitucionalismo. Esta é, pois, a resposta adequada a Constituição.
Espero que o legislador que aprovará o novo CPC se
dê conta disso e evite um périplo de decisões judiciais no âmbito do controle
difuso ou nos poupe de uma ação direta de inconstitucionalidade. O Supremo
Tribunal Federal já tem trabalho suficiente.
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