Quem tem medo de dar carona? Mobilidade urbana e o transporte gratuito
Publicado no Jornal Carta Forense. 01/09/2014
José Fernando Simão. Professor Associado do
Departamento de DIreito Civil da USP. Livre-docente, doutor e mestre pela
Faculdade de Direito da USP. Advogado e consultor jurídico.
Neste mês, São Paulo enfrenta novamente o
caos em termos de mobilidade urbana. A decisão do Prefeito Fernando Haddad em
ampliar as ciclovias na cidade de São Paulo gerou, no Centro da cidade, uma
situação de congestionamento que se inicia por volta de 7 horas da manhã e só
cessa após as 19 horas.
É de se perguntar se em uma cidade com o
transporte público precário, insuficiente, em que nos horários de pico a lotação
é enorme e o desconforto evidente, punir o cidadão que usa carro é realmente a
melhor política.
Sou particularmente avesso ao carro e não gosto
de dirigir. Quando viajo, principalmente para a Europa, utilizo, por opção
apenas transportes públicos. São Paulo oferece esta opção? Posso não utilizar
meu carro nos dias de trabalho?
Em um país que adota o modelo do automóvel como
padrão, pouco ou nada investe no transporte público, a ciclovia não é a solução.
Ao contrário, é sinônimo de falta de seriedade política. Ciclovia é bom e eu
apoio em cidades que dão conta de, por meio de ônibus, metrô e trens, permitir
ao cidadão que não tenha carro ou o deixe em casa.
A opção política do Governo Federal em reduzir
o IPI dos veículos contrasta com a punição que o Prefeito impõe aos motoristas
de São Paulo. E ambas são políticas de um mesmo partido.
É neste ambiente caótico, de poluição sonora e
visual, que o sempre inquieto, amigo e Professor Flávio Tartuce lançou um debate
virtual: “A Súmula 145 do STJ mantém-se produzindo efeitos após a edição do
Código Civil de 2002 ou merece ser revista?”
A Súmula 145 do STJ de 1995 prevê que: “No transporte desinteressado, de simples
cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao
transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”.
O debate diz respeito ao ato de dar ou carona
(no Brasil) e boleia (em Portugal).
É verdade que a doutrina pátria, na vigência do
antigo Código Civil, fez grande esforço para não caracterizar tal modalidade de
fato jurídico como contrato, ou seja, afastando-a da noção de negócio
jurídico.
Pontes de Miranda, por exemplo, afirma
categoricamente que se o funcionário público ou o político são transportados em
trem, veículo ou aeronave do Estado, temos transporte gratuito e tal contrato se
rege pelas regras do contrato de transporte. Se, por outro lado, ocorre o
transporte por amizade, quando A convida B para ir de automóvel a uma festa,
cidade ou reunião, e B viaja com A, não houve contrato de transporte, mas sim o
ato-fato jurídico do transporte sendo a responsabilidade extracontratual
(Tratado de Direito Privado, Borsoi, T. 45, p. 24).
Também Orlando Gomes, na Enciclopédia Saraiva
de Direito, ao definir transporte, afirma que o transporte gratuito se distingue
do de simples cortesia ou condescendência, pois último este não é contrato, e a
responsabilidade do transportador será extracontratual (Tomo 20, p. 20)
Contudo, fato é que houve por parte dos
Tribunais uma assimilação do contrato de transporte gratuito com o transporte
por amizade (carona), ambos considerados igualmente negócios jurídicos, e,
então, o instituto passa a ser considerado contrato gratuito.
Nesse sentido, temos a Súmula 145. Em sendo
gratuito, só trazendo vantagens ao transportado e não ao transportador, o
transportador só responderia por dolo e o transportado por culpa e dolo. Assim,
a vantagem de uma das partes (transportado) implica menor responsabilidade
daquele que nada lucra com o contrato (transportador). Há um tratamento desigual
dos desiguais, o que é justo e adequado ao sistema.
Era essa redação do art. 1057 do revogado
Código Civil: “Nos contratos unilaterais, responde por simples culpa o
contraente, a quem o contrato aproveite, e só por dolo, aquele a quem não
favoreça”.
E por que a Súmula também menciona a culpa
grave do transportador além do dolo? Porque a culpa grave ao dolo se equipara
desde o Direito Romano com a fórmula de Nerva. Assim, o transportador só
responde pelos prejuízos que intencionalmente causou (dolo) ou por aqueles que
não quis causar mas, tamanho foi seu descuido, que pareceria querer causá-los
(culpa grave).
Contudo, o Código Civil de 2002 trouxe regra
até então inexistente:
“Art. 736. Não se subordina às normas do
contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.
Parágrafo único. Não se considera gratuito o
transporte quando, embora feito sem remuneração, o transportador auferir
vantagens indiretas.”
Isso significa que o transporte efetivamente de
cortesia, feito por amizade, ou seja, a carona, não segue as regras do contrato
de transporte de pessoas. Entretanto, se o transportador tiver alguma vantagem
(divisão de combustível, por exemplo, pagamento de pedágio, pelo transportado),
cessa a gratuidade, e as regras do Código Civil quanto ao contrato de
transporte, terão aplicação.
A pergunta que surge é a seguinte: sendo a
carona uma mera cortesia em que termos se configura a responsabilidade do
transportador? Seria ela contratual ou extracontratual?
Flávio Tartuce, seguido por Cesar Peghini,
defende que seria extracontratual, com base no art. 186 do Código Civil, e,
portanto, o transportador responderia por dolo e culpa, em todos os graus
(levíssima, leve ou grave), conforme o adágio in lege aquilia et levissima
culpa venit.
É posição minoritária. Prevalece o entendimento
de que o transportador só responde por culpa grave ou dolo, mantendo-se intacta
a Súmula 145 do STJ. E qual a relação desta interpretação com o trânsito caótico
de São Paulo?
A carona deve ser estimulada e não punida. Já
que o transporte público é ineficiente, a carona é uma das formas de reduzir o
número de carros nas ruas, e com isso, reduzir o trânsito e melhorar o meio
ambiente, sem poluição. É ato de solidariedade e que faz bem ao meio
ambiente.
Há, hoje, dispositivos para que o caronista
encontre o transportador de acordo com o endereço de saída e de chegada
(www.tripda.com.br e www.zaznu.co).
Estimular a carona é solução que não se coaduna
com a tese de Flávio Tartuce de responsabilizar o transportador nos termos do
art. 186 do CC. Adequada é a preservação da Súmula 145 do STJ e do art. 392 do
atual Código Civil. O amigo Flávio Tartuce, ao fim da discussão, disse que
estava disposto a repensar sua tese.
Como sempre digo, ao escrever um tratado ou uma singela coluna,
a responsabilidade do autor é enorme, pois a doutrina é fundamento das decisões
judiciais.
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