TRANSFORMAÇÕES QUANTO AOS ALIMENTOS
DEVIDOS ENTRE OS CÔNJUGES OU COMPANHEIROS.[1]
Flávio Tartuce[2]
Desde a sua mais elementar
existência, o ser humano sempre necessitou ser alimentado para que pudesse exercer
suas funções vitais. Como se extrai das lições de Álvaro Villaça Azevedo, a
palavra alimento vem do latim alimentum, “que significa sustento,
alimento, manutenção, subsistência, do verbo alo, is, ui,
itum, ere (alimentar, nutrir,
desenvolver, aumentar, animar, fomentar, manter, sustentar, favorecer, tratar
bem)” (Curso de direito civil. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2013, p. 304).
Nesse contexto, os chamados alimentos
familiares representam uma das principais efetivações do princípio constitucional
da solidariedade nas relações civis, sendo essa a própria concepção da
categoria jurídica.
No que diz respeito a alimentos entre
os cônjuges – e também entre os companheiros –, houve uma mudança considerável
no seu tratamento doutrinário e jurisprudencial, uma verdadeira Virada de Copérnico, termo que ora se
utiliza em homenagem aos grupos brasileiros de estudos em Direito Civil
Constitucional.
No passado, a verba alimentar era
atribuída com o intuito de manter o status
quo social do cônjuge, especialmente da mulher, o que representa, na
codificação em vigor, aplicação das locuções a seguir sublinhadas, constantes
do seu art. 1.694, caput: “podem os
parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que
necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social,
inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
Todavia, os alimentos passaram a ser
analisados, tanto por doutrina como por jurisprudência, sob a perspectiva da
inclusão da mulher no mercado de trabalho e de uma suposta posição de equalização
frente ao homem, a igualdade entre os gêneros, retirada do art. 5º, inc. I, do
Texto Maior. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, um dos primeiros
precedentes a fazer essa análise foi o caso conhecido como da “psicóloga dos
Jardins”, que teve como Relatora a Ministra Fátima Nancy Andrighi. A ementa é
longa, mas merece ser transcrita e lida, para os devidos estudos e
aprofundamentos. Vejamos:
“Direito civil. Família. Revisional de alimentos.
Reconvenção com pedido de exoneração ou, sucessivamente, de redução do encargo.
Dever de mútua assistência. Divórcio. Cessação. Caráter assistencial dos
alimentos. Comprovação da necessidade de quem os pleiteia. Condição social.
Análise ampla do julgador. Peculiaridades do processo. – Sob a perspectiva do
ordenamento jurídico brasileiro, o dever de prestar alimentos entre ex-cônjuges
reveste-se de caráter assistencial, não apresentando características indenizatórias,
tampouco fundando-se em qualquer traço de dependência econômica havida na
constância do casamento. – O dever de mútua assistência que perdura ao longo da
união, protrai-se no tempo, mesmo após o término da sociedade conjugal,
assentado o dever de alimentar dos então separandos, ainda unidos pelo vínculo
matrimonial, nos elementos dispostos nos arts. 1.694 e 1.695 do CC/02,
sintetizados no amplamente difundido binômio – necessidades do reclamante e
recursos da pessoa obrigada. – Ultrapassada essa etapa – quando dissolvido o
casamento válido pelo divórcio, tem-se a consequente extinção do dever de mútua
assistência, não remanescendo qualquer vínculo entre os divorciados, tanto que
desimpedidos de contrair novas núpcias. Dá-se, portanto, incontornável ruptura
a quaisquer deveres e obrigações inerentes ao matrimônio cujo divórcio impôs
definitivo termo. – Por força dos usualmente reconhecidos efeitos patrimoniais
do matrimônio e também com vistas a não tolerar a perpetuação de injustas
situações que reclamem solução no sentido de perenizar a assistência, optou-se
por traçar limites para que a obrigação de prestar alimentos não seja utilizada
ad aeternum em hipóteses que não
demandem efetiva necessidade de quem os pleiteia. – Dessa forma, em paralelo ao
raciocínio de que a decretação do divórcio cortaria toda e qualquer
possibilidade de se postular alimentos, admite-se a possibilidade de prestação
do encargo sob as diretrizes consignadas nos arts. 1.694 e ss. do CC/02, o que
implica na decomposição do conceito de necessidade, à luz do disposto no art.
1.695 do CC/02, do qual é possível colher os seguintes requisitos
caracterizadores: (i) a ausência de bens suficientes para a manutenção daquele
que pretende alimentos; e (ii) a incapacidade do pretenso alimentando de
prover, pelo seu trabalho, à própria mantença. – Partindo-se para uma análise socioeconômica,
cumpre circunscrever o debate relativo à necessidade a apenas um de seus
aspectos: a existência de capacidade para o trabalho e a sua efetividade na
mantença daquele que reclama alimentos, porquanto a primeira possibilidade
legal que afasta a necessidade – existência de patrimônio suficiente à
manutenção do ex-cônjuge –, agrega alto grau de objetividade, sofrendo poucas
variações conjunturais, as quais mesmo quando ocorrem, são facilmente
identificadas e sopesadas. – O principal subproduto da tão propalada igualdade
de gêneros estatuída na Constituição Federal, foi a materialização legal da
reciprocidade no direito a alimentos, condição reafirmada pelo atual Código
Civil, o que significa situar a existência de novos paradigmas nas relações
intrafamiliares, com os mais inusitados arranjos entre os entes que formam a
família do século XXI, que coexistem, é claro, com as tradicionais figuras do
pai/marido provedor e da mãe/mulher de afazeres domésticos. – O fosso fático
entre a lei e a realidade social impõe ao julgador detida análise de todas as
circunstâncias e peculiaridades passíveis de visualização ou intelecção do
processo, para a imprescindível definição quanto à capacidade ou não de autossustento
daquele que pleiteia alimentos. – Seguindo os parâmetros probatórios
estabelecidos no acórdão recorrido, não paira qualquer dúvida acerca da
capacidade da alimentada de prover, nos exatos termos do art. 1.695 do CC/02,
sua própria mantença, pelo seu trabalho e rendimentos auferidos do patrimônio
de que é detentora. – No que toca à genérica disposição legal contida no art.
1.694, caput, do CC/02, referente à
compatibilidade dos alimentos prestados com a condição social do alimentado, é
de todo inconcebível que ex-cônjuge, que pleiteie alimentos, exija-os com base
no simplista cálculo aritmético que importe no rateio proporcional da renda
integral da desfeita família; isto porque a condição social deve ser analisada
à luz de padrões mais amplos, emergindo, mediante inevitável correlação com a
divisão social em classes, critério que, conquanto impreciso, ao menos aponte
norte ao julgador que deverá, a partir desses valores e das particularidades de
cada processo, reconhecer ou não a necessidade dos alimentos pleiteados e, se
for o caso, arbitrá-los. – Por restar fixado pelo Tribunal Estadual, de forma
induvidosa, que a alimentanda não apenas apresenta plenas condições de inserção
no mercado de trabalho como também efetivamente exerce atividade laboral, e
mais, caracterizada essa atividade como potencialmente apta a mantê-la com o
mesmo status social que anteriormente
gozava, ou ainda alavancá-la a patamares superiores, deve ser julgado
procedente o pedido de exoneração deduzido pelo alimentante em sede de
reconvenção e, por consequência, improcedente o pedido de revisão de alimentos
formulado pela então alimentada. Recurso especial conhecido e provido” (REsp
933.355/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
25/03/2008, DJe 11/04/2008).
Essa decisão inaugurou, naquele
Tribunal Superior, a conclusão segundo a qual os alimentos entre os cônjuges
têm caráter excepcional, pois a pessoa que tem condições laborais deve buscar o
seu sustento pelo esforço próprio. No caso, uma ex-mulher recebia pensão do
ex-marido por longos vintes anos, sendo o último valor pago de R$ 6.000,00
(seis mil reais). Insatisfeita com tal montante, ingressou em juízo para
pleitear o aumento da quantia, argumentando a falta de condições para manter o
padrão de vida anterior com os rendimentos do seu trabalho.
Almejava dobrar o valor da pensão
alimentícia, sob a alegação de que não vinha mais aceitando convites para
eventos sociais, que teve de dispensar seu caseiro, que não mais trocava de
carro com a frequência anterior e que não viajava para o exterior anualmente.
Além da contestação, o ex-marido apresentou reconvenção, sob a premissa de que
a ex-mulher tinha condições de sustento próprio, notadamente por suas
atividades como psicóloga em clínica própria e como professora universitária,
bem como pela locação de dois imóveis de sua propriedade.
Após os trâmites no Tribunal
Paulista, a Corte Estadual aumentou o valor da pensão para R$ 10.000,00 (dez
mil reais), incidindo a ideia de manutenção do padrão social. Contudo, de forma
correta na opinião deste autor, a Ministra Nancy Andrighi acolheu o pleito de
exoneração do ex-marido, julgando que, “não existindo nenhum tipo de dúvida
quanto à capacidade da recorrida de prover, nos exatos termos do art. 1.695 do
CC/02, sua própria mantença, impende, ainda, traçar considerações relativas ao
teor do disposto no art. 1.694 do CC/02, do qual se extrai que os alimentos
prestados devem garantir modo de vida ‘compatível com a sua condição social’”.
Também de acordo com o voto da
Relatora, essa última e genérica disposição legal não pode ser entendida como
parâmetro objetivo, mesmo porque seria virtualmente impossível o
estabelecimento da exata condição socioeconômica anterior, para posterior
reprodução, por meio de alimentos prestados pelo ex-cônjuge devedor. O conceito
de alimentos, também segundo a magistrada, deve ser interpretado com
temperança, “fixando-se a condição social anterior dentro de patamares
razoáveis, que permitam acomodar as variações próprias das escolhas
profissionais, dedicação ao trabalho, tempo de atividade entre outras variáveis”.
A votação foi unânime, na linha da justa relatoria.
Outras decisões do próprio Superior
Tribunal de Justiça e de Tribunais Estaduais passaram a seguir tal correto
entendimento, consentâneo com a plena inserção da mulher no mercado de trabalho.
Passaram a considerar, assim, que os alimentos entre os cônjuges – e também
entre os companheiros –, tem caráter excepcional e transitório, devendo no
máximo ser fixado por tempo suficiente para que o ex-consorte volte ao mercado
de trabalho, se nele não estiver inserido. Somente em casos pontuais os
alimentos devem ser fixados sem termo final, mormente quando o ex-cônjuge ou
ex-companheiro estiver sem condições para o trabalho, em especial por conta de sua
idade avançada ou de uma doença.
Em 2016, seguindo essa linha, o
Tribunal da Cidadania publicou ementa na sua Jurisprudência em Teses, com a Edição n. 65 dedicada ao tema dos
alimentos. Nos termos da sua premissa n. 14, “os alimentos devidos entre
ex-cônjuges devem ter caráter excepcional, transitório e devem ser fixados por
prazo determinado, exceto quando um dos cônjuges não possua mais condições de
reinserção no mercado do trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira”.
São citados como precedentes da tese, entre outras, as seguintes ementas, que
consubstanciam a posição superior, a ser seguida pelos outros julgadores: REsp
1.370.778/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJE 04/04/2016; AgRg no AREsp
725.002/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJE 01/10/2015; AgRg no REsp 1.537.060/DF,
Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2015, DJE 09/09/2015; REsp 1.454.263/CE, Rel.
Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJE 08/05/2015; REsp 1.496.948/SP, Rel.
Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJE 12/03/2015; REsp 1.290.313/AL, Rel.
Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJE 07/11/2014 e REsp 1.396.957/PR, Rel.
Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJE 20/06/2014.
No primeiro deles, como se extrai do decisum relatado pelo Ministro Buzzi, “esta
Corte firmou a orientação no sentido de que a pensão entre ex-cônjuges não está
limitada somente à prova da alteração do binômio necessidade-possibilidade,
devendo ser consideradas outras circunstâncias, como a capacidade do
alimentando para o trabalho e o tempo decorrido entre o início da prestação
alimentícia e a data do pedido de exoneração. Precedentes. A pensão entre
ex-cônjuges deve ser fixada, em regra, com termo certo, assegurando ao
beneficiário tempo hábil para que seja inserido no mercado de trabalho,
possibilitando-lhe a manutenção pelos próprios meios. A perpetuidade do
pensionamento só se justifica em excepcionais situações, como a incapacidade
laboral permanente, saúde fragilizada ou impossibilidade prática de inserção no
mercado de trabalho, que evidentemente não é o caso dos autos” (REsp 1.370.778/MG).
Tenho total simpatia com essa forma
de julgar e a defendo há anos. Porém, essa posição não é compartilhada por
todos, mas muito ao contrário. Rolf Madaleno, um dos grandes especialistas na
matéria entre nós, tem visão oposta à minha em alguns aspectos relativos aos
alimentos, conforme debates que já travamos em alguns eventos de Direito de
Família. Todavia, concorda ele com a fixação dos alimentos de forma
transitória, pois “são outros tempos e padrões de conduta vividos pela
sociedade brasileira, cujas mudanças sociais e culturais impuseram o trabalho
como uma obrigação também da mulher, quem assim afirma sua dignidade e adquire
sua independência financeira ao deixar de ser confinada ao recesso do lar e
passar do estágio de completa dependência para o de provedora da sua
subsistência pessoal, além de auxiliar no sustento da prole, em paritário
concurso de seu parental dever alimentar” (Curso
de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2011, p. 949).
Está correta essa forma de julgar?
Respondo definitivamente que sim, sendo essas as principais transformações quanto
aos alimentos entre cônjuges e companheiros, sinais do momento que vivemos. Mas
por ser tão intricando, despertar discussões profundas relativas ao gênero e
estar muito longe da unanimidade, o assunto merece ser devidamente avaliado nos
mais diversos foros, inclusive nos virtuais.
[1] Coluna
do Migalhas, do mês de fevereiro de
2017.
[2]
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM –
Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e
consultor jurídico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário