quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

COLUNA DO MIGALHAS DE FEVEREIRO. TRANSFORMAÇÕES QUANTO AOS ALIMENTOS DEVIDOS ENTRE OS CÔNJUGES OU COMPANHEIROS

TRANSFORMAÇÕES QUANTO AOS ALIMENTOS DEVIDOS ENTRE OS CÔNJUGES OU COMPANHEIROS.[1]



Flávio Tartuce[2]


Desde a sua mais elementar existência, o ser humano sempre necessitou ser alimentado para que pudesse exercer suas funções vitais. Como se extrai das lições de Álvaro Villaça Azevedo, a palavra alimento vem do latim alimentum, “que significa sustento, alimento, manutenção, subsistência, do verbo alo, is, ui, itum, ere (alimentar, nutrir, desenvolver, aumentar, animar, fomentar, manter, sustentar, favorecer, tratar bem)” (Curso de direito civil. Direito de família. São Paulo: Atlas, 2013, p. 304). Nesse contexto, os chamados alimentos familiares representam uma das principais efetivações do princípio constitucional da solidariedade nas relações civis, sendo essa a própria concepção da categoria jurídica.
No que diz respeito a alimentos entre os cônjuges – e também entre os companheiros –, houve uma mudança considerável no seu tratamento doutrinário e jurisprudencial, uma verdadeira Virada de Copérnico, termo que ora se utiliza em homenagem aos grupos brasileiros de estudos em Direito Civil Constitucional.
No passado, a verba alimentar era atribuída com o intuito de manter o status quo social do cônjuge, especialmente da mulher, o que representa, na codificação em vigor, aplicação das locuções a seguir sublinhadas, constantes do seu art. 1.694, caput: “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
Todavia, os alimentos passaram a ser analisados, tanto por doutrina como por jurisprudência, sob a perspectiva da inclusão da mulher no mercado de trabalho e de uma suposta posição de equalização frente ao homem, a igualdade entre os gêneros, retirada do art. 5º, inc. I, do Texto Maior. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, um dos primeiros precedentes a fazer essa análise foi o caso conhecido como da “psicóloga dos Jardins”, que teve como Relatora a Ministra Fátima Nancy Andrighi. A ementa é longa, mas merece ser transcrita e lida, para os devidos estudos e aprofundamentos. Vejamos:
“Direito civil. Família. Revisional de alimentos. Reconvenção com pedido de exoneração ou, sucessivamente, de redução do encargo. Dever de mútua assistência. Divórcio. Cessação. Caráter assistencial dos alimentos. Comprovação da necessidade de quem os pleiteia. Condição social. Análise ampla do julgador. Peculiaridades do processo. – Sob a perspectiva do ordenamento jurídico brasileiro, o dever de prestar alimentos entre ex-cônjuges reveste-se de caráter assistencial, não apresentando características indenizatórias, tampouco fundando-se em qualquer traço de dependência econômica havida na constância do casamento. – O dever de mútua assistência que perdura ao longo da união, protrai-se no tempo, mesmo após o término da sociedade conjugal, assentado o dever de alimentar dos então separandos, ainda unidos pelo vínculo matrimonial, nos elementos dispostos nos arts. 1.694 e 1.695 do CC/02, sintetizados no amplamente difundido binômio – necessidades do reclamante e recursos da pessoa obrigada. – Ultrapassada essa etapa – quando dissolvido o casamento válido pelo divórcio, tem-se a consequente extinção do dever de mútua assistência, não remanescendo qualquer vínculo entre os divorciados, tanto que desimpedidos de contrair novas núpcias. Dá-se, portanto, incontornável ruptura a quaisquer deveres e obrigações inerentes ao matrimônio cujo divórcio impôs definitivo termo. – Por força dos usualmente reconhecidos efeitos patrimoniais do matrimônio e também com vistas a não tolerar a perpetuação de injustas situações que reclamem solução no sentido de perenizar a assistência, optou-se por traçar limites para que a obrigação de prestar alimentos não seja utilizada ad aeternum em hipóteses que não demandem efetiva necessidade de quem os pleiteia. – Dessa forma, em paralelo ao raciocínio de que a decretação do divórcio cortaria toda e qualquer possibilidade de se postular alimentos, admite-se a possibilidade de prestação do encargo sob as diretrizes consignadas nos arts. 1.694 e ss. do CC/02, o que implica na decomposição do conceito de necessidade, à luz do disposto no art. 1.695 do CC/02, do qual é possível colher os seguintes requisitos caracterizadores: (i) a ausência de bens suficientes para a manutenção daquele que pretende alimentos; e (ii) a incapacidade do pretenso alimentando de prover, pelo seu trabalho, à própria mantença. – Partindo-se para uma análise socioeconômica, cumpre circunscrever o debate relativo à necessidade a apenas um de seus aspectos: a existência de capacidade para o trabalho e a sua efetividade na mantença daquele que reclama alimentos, porquanto a primeira possibilidade legal que afasta a necessidade – existência de patrimônio suficiente à manutenção do ex-cônjuge –, agrega alto grau de objetividade, sofrendo poucas variações conjunturais, as quais mesmo quando ocorrem, são facilmente identificadas e sopesadas. – O principal subproduto da tão propalada igualdade de gêneros estatuída na Constituição Federal, foi a materialização legal da reciprocidade no direito a alimentos, condição reafirmada pelo atual Código Civil, o que significa situar a existência de novos paradigmas nas relações intrafamiliares, com os mais inusitados arranjos entre os entes que formam a família do século XXI, que coexistem, é claro, com as tradicionais figuras do pai/marido provedor e da mãe/mulher de afazeres domésticos. – O fosso fático entre a lei e a realidade social impõe ao julgador detida análise de todas as circunstâncias e peculiaridades passíveis de visualização ou intelecção do processo, para a imprescindível definição quanto à capacidade ou não de autossustento daquele que pleiteia alimentos. – Seguindo os parâmetros probatórios estabelecidos no acórdão recorrido, não paira qualquer dúvida acerca da capacidade da alimentada de prover, nos exatos termos do art. 1.695 do CC/02, sua própria mantença, pelo seu trabalho e rendimentos auferidos do patrimônio de que é detentora. – No que toca à genérica disposição legal contida no art. 1.694, caput, do CC/02, referente à compatibilidade dos alimentos prestados com a condição social do alimentado, é de todo inconcebível que ex-cônjuge, que pleiteie alimentos, exija-os com base no simplista cálculo aritmético que importe no rateio proporcional da renda integral da desfeita família; isto porque a condição social deve ser analisada à luz de padrões mais amplos, emergindo, mediante inevitável correlação com a divisão social em classes, critério que, conquanto impreciso, ao menos aponte norte ao julgador que deverá, a partir desses valores e das particularidades de cada processo, reconhecer ou não a necessidade dos alimentos pleiteados e, se for o caso, arbitrá-los. – Por restar fixado pelo Tribunal Estadual, de forma induvidosa, que a alimentanda não apenas apresenta plenas condições de inserção no mercado de trabalho como também efetivamente exerce atividade laboral, e mais, caracterizada essa atividade como potencialmente apta a mantê-la com o mesmo status social que anteriormente gozava, ou ainda alavancá-la a patamares superiores, deve ser julgado procedente o pedido de exoneração deduzido pelo alimentante em sede de reconvenção e, por consequência, improcedente o pedido de revisão de alimentos formulado pela então alimentada. Recurso especial conhecido e provido” (REsp 933.355/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/03/2008, DJe 11/04/2008).
Essa decisão inaugurou, naquele Tribunal Superior, a conclusão segundo a qual os alimentos entre os cônjuges têm caráter excepcional, pois a pessoa que tem condições laborais deve buscar o seu sustento pelo esforço próprio. No caso, uma ex-mulher recebia pensão do ex-marido por longos vintes anos, sendo o último valor pago de R$ 6.000,00 (seis mil reais). Insatisfeita com tal montante, ingressou em juízo para pleitear o aumento da quantia, argumentando a falta de condições para manter o padrão de vida anterior com os rendimentos do seu trabalho.
Almejava dobrar o valor da pensão alimentícia, sob a alegação de que não vinha mais aceitando convites para eventos sociais, que teve de dispensar seu caseiro, que não mais trocava de carro com a frequência anterior e que não viajava para o exterior anualmente. Além da contestação, o ex-marido apresentou reconvenção, sob a premissa de que a ex-mulher tinha condições de sustento próprio, notadamente por suas atividades como psicóloga em clínica própria e como professora universitária, bem como pela locação de dois imóveis de sua propriedade.
Após os trâmites no Tribunal Paulista, a Corte Estadual aumentou o valor da pensão para R$ 10.000,00 (dez mil reais), incidindo a ideia de manutenção do padrão social. Contudo, de forma correta na opinião deste autor, a Ministra Nancy Andrighi acolheu o pleito de exoneração do ex-marido, julgando que, “não existindo nenhum tipo de dúvida quanto à capacidade da recorrida de prover, nos exatos termos do art. 1.695 do CC/02, sua própria mantença, impende, ainda, traçar considerações relativas ao teor do disposto no art. 1.694 do CC/02, do qual se extrai que os alimentos prestados devem garantir modo de vida ‘compatível com a sua condição social’”.
Também de acordo com o voto da Relatora, essa última e genérica disposição legal não pode ser entendida como parâmetro objetivo, mesmo porque seria virtualmente impossível o estabelecimento da exata condição socioeconômica anterior, para posterior reprodução, por meio de alimentos prestados pelo ex-cônjuge devedor. O conceito de alimentos, também segundo a magistrada, deve ser interpretado com temperança, “fixando-se a condição social anterior dentro de patamares razoáveis, que permitam acomodar as variações próprias das escolhas profissionais, dedicação ao trabalho, tempo de atividade entre outras variáveis”. A votação foi unânime, na linha da justa relatoria.
Outras decisões do próprio Superior Tribunal de Justiça e de Tribunais Estaduais passaram a seguir tal correto entendimento, consentâneo com a plena inserção da mulher no mercado de trabalho. Passaram a considerar, assim, que os alimentos entre os cônjuges – e também entre os companheiros –, tem caráter excepcional e transitório, devendo no máximo ser fixado por tempo suficiente para que o ex-consorte volte ao mercado de trabalho, se nele não estiver inserido. Somente em casos pontuais os alimentos devem ser fixados sem termo final, mormente quando o ex-cônjuge ou ex-companheiro estiver sem condições para o trabalho, em especial por conta de sua idade avançada ou de uma doença.
Em 2016, seguindo essa linha, o Tribunal da Cidadania publicou ementa na sua Jurisprudência em Teses, com a Edição n. 65 dedicada ao tema dos alimentos. Nos termos da sua premissa n. 14, “os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ter caráter excepcional, transitório e devem ser fixados por prazo determinado, exceto quando um dos cônjuges não possua mais condições de reinserção no mercado do trabalho ou de readquirir sua autonomia financeira”. São citados como precedentes da tese, entre outras, as seguintes ementas, que consubstanciam a posição superior, a ser seguida pelos outros julgadores: REsp 1.370.778/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 10/03/2016, DJE 04/04/2016; AgRg no AREsp 725.002/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/09/2015, DJE 01/10/2015; AgRg no REsp 1.537.060/DF, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2015, DJE 09/09/2015; REsp 1.454.263/CE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/04/2015, DJE 08/05/2015; REsp 1.496.948/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJE 12/03/2015; REsp 1.290.313/AL, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJE 07/11/2014 e REsp 1.396.957/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJE 20/06/2014.
No primeiro deles, como se extrai do decisum relatado pelo Ministro Buzzi, “esta Corte firmou a orientação no sentido de que a pensão entre ex-cônjuges não está limitada somente à prova da alteração do binômio necessidade-possibilidade, devendo ser consideradas outras circunstâncias, como a capacidade do alimentando para o trabalho e o tempo decorrido entre o início da prestação alimentícia e a data do pedido de exoneração. Precedentes. A pensão entre ex-cônjuges deve ser fixada, em regra, com termo certo, assegurando ao beneficiário tempo hábil para que seja inserido no mercado de trabalho, possibilitando-lhe a manutenção pelos próprios meios. A perpetuidade do pensionamento só se justifica em excepcionais situações, como a incapacidade laboral permanente, saúde fragilizada ou impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho, que evidentemente não é o caso dos autos” (REsp 1.370.778/MG).
Tenho total simpatia com essa forma de julgar e a defendo há anos. Porém, essa posição não é compartilhada por todos, mas muito ao contrário. Rolf Madaleno, um dos grandes especialistas na matéria entre nós, tem visão oposta à minha em alguns aspectos relativos aos alimentos, conforme debates que já travamos em alguns eventos de Direito de Família. Todavia, concorda ele com a fixação dos alimentos de forma transitória, pois “são outros tempos e padrões de conduta vividos pela sociedade brasileira, cujas mudanças sociais e culturais impuseram o trabalho como uma obrigação também da mulher, quem assim afirma sua dignidade e adquire sua independência financeira ao deixar de ser confinada ao recesso do lar e passar do estágio de completa dependência para o de provedora da sua subsistência pessoal, além de auxiliar no sustento da prole, em paritário concurso de seu parental dever alimentar” (Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 949).
Está correta essa forma de julgar? Respondo definitivamente que sim, sendo essas as principais transformações quanto aos alimentos entre cônjuges e companheiros, sinais do momento que vivemos. Mas por ser tão intricando, despertar discussões profundas relativas ao gênero e estar muito longe da unanimidade, o assunto merece ser devidamente avaliado nos mais diversos foros, inclusive nos virtuais.


[1] Coluna do Migalhas, do mês de fevereiro de 2017.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor da Rede LFG. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico. 

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