O
Dano-Cinza
Anderson Schreiber.
Professor de Direito Civil da UERJ.
Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Direito Civil pela
Universidade de Molise (Itália).
Recente polêmica foi
suscitada por ato do Prefeito de São Paulo, que ordenou que grafites estampados
nos muros da Avenida 23 de Maio fossem pintados de cinza. Sobre o episódio, Mauro
Neri, um dos artistas que teve sua obra apagada, declarou ao jornal Folha de S. Paulo: “É triste ver tanto
esforço menosprezado e desrespeitado”. A chamada “onda cinzenta” espalhou-se
por outras áreas da cidade, como parte de um programa de conservação urbana, conquistando
apoio de parcela da população, que enxerga nos grafites uma forma de vandalismo
semelhante às pichações. Outra parcela dos paulistanos reagiu contra a atitude
da Prefeitura, por entender que o grafite é uma forma de arte e de expressão
urbana. A questão que nos cabe é saber qual o papel do Direito em tudo isso: o
grafitismo, afinal, é vandalismo ou arte aos olhos da lei? Quem comete uma
arbitrariedade: a Prefeitura que apaga o grafite, ou o “grafiteiro” que pinta
sobre bem público? O grafite seria uma obra intelectual protegida pelo Direito
Autoral? Os autores que tiveram suas obras apagadas pela Prefeitura têm direito
a indenização? São as perguntas nada simples que passamos a enfrentar.
Há
algumas normas no Direito positivo brasileiro que ajudam nesse itinerário. A
Lei Federal 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as
sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente, criminalizava, em sua redação original, o grafitismo. Seu artigo
65 considerava crime “pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação
ou monumento urbano”, prevendo como pena a “detenção de três meses a um ano, e
multa”. Em 2011, a Lei Federal 12.408 veio dar nova redação ao referido artigo
65, excluindo o verbo “grafitar”. O objetivo declarado da lei de 2011 foi
“descriminalizar o ato de grafitar”. O Brasil seguiu, na ocasião, uma tendência
mundial de reconhecimento do grafitismo como forma de expressão artística e
intelectual, típica dos grandes centros urbanos. Os graffiti (do idioma italiano), que remetem às inscrições feitas nas
paredes de Roma ao tempo do Império Romano, tornaram-se comuns na atualidade,
em cidades como Berlim, Nova Iorque, Miami, entre tantas outras, convertendo-se,
em alguns casos, em verdadeiras atrações turísticas. Além disso, o grafitismo
hoje tem sido reconhecido em muitos países não como prática análoga à pichação,
mas como forma de inibição do ato de pichar, na medida em que os grafites
ocupam paredes, muros e outros espaços urbanos antes monocromáticos e, por isso
mesmo, “mais convidativos” às pichações.
Em suma, o grafitismo configura uma prática lícita
no Brasil, sendo, inclusive, incentivado em alguns casos. No Rio de Janeiro,
por exemplo, o Decreto Municipal 38.307, de 18 de fevereiro de 2014, afirma
expressamente que “o
graffiti, desde que sem prejuízo ao
patrimônio público ou histórico, sem cunho publicitário (referência a marcas ou
produtos), sem teor pornográfico, racista ou de outra forma preconceituoso, sem
apologias ilegais e ofensas religiosas é reconhecidamente uma manifestação
artística cultural que valoriza a Cidade e inibe a pichação”. O mesmo Decreto autoriza
“a utilização dos seguintes espaços públicos como estímulo para a prática do graffiti e da street art: postes, colunas, muros cinzas (desde que não
considerados patrimônio histórico), paredes cegas (sem portas, janelas ou outra
abertura), pistas de skate e tapumes de obras”, ressalvando bens tombados por
sua importância histórica e cultural, entre outros. O Decreto 38.307 chega
mesmo a instituir o dia 27 de março como “dia do graffiti” no Rio de Janeiro.
Embora a prática do grafitismo seja lícita e, em
alguns casos, até incentivada, a proteção jurídica do resultado do grafitismo continua sendo extremamente polêmica no
meio jurídico brasileiro, por diferentes razões. Primeiro, discute-se se o
grafite constitui ou não obra intelectual para fins de proteção da Lei de
Direitos Autorais (Lei 9.610/1998). Embora a definição legal de obra intelectual
seja ampla, como se vê do artigo 7o da lei – o qual define como
obras intelectuais juridicamente protegidas “as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em
qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”,
incluindo “as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte
cinética” (inciso VII) –, todo o preconceito em torno do grafitismo e, em
alguns casos, a dificuldade de distingui-lo da simples pichação (como ocorre no
exemplo fronteiriço dos motes repetidos ad
nauseam, tais como o “vire a cidade”, em São Paulo, ou o “não fui eu”, no
Rio de Janeiro, que se reproduzem também como forma de ocupação e demarcação
urbana) ainda gera alguma hesitação da doutrina na qualificação jurídica dos graffiti como obras intelectuais.
O
segundo problema diz respeito ao suporte sobre o qual se inscreve a obra,
suporte que, no caso do grafitismo, raramente pertence ao autor. O grafitismo
contemporâneo desenvolve-se justamente como uma forma de expressão artística e
intelectual de resistência, atuando sobre bens particulares ou públicos que
integram o cenário urbano, quase sempre, sem autorização prévia. Os grafitti representam, nesse sentido, uma
atuação sobre bem alheio, suscitando discussão sobre a quem passa a “pertencer”
o resultado final daquela fusão, nem sempre convergente, entre trabalho e
propriedade. O problema não é inteiramente novo: tornou-se célebre nos anos 30,
por exemplo, o diálogo entre Diego Rivera e Nelson Rockfeller que precedeu a
destruição do afresco Man at Crossroads,
em que o artista, avisado da destruição iminente da sua criação, teria
exclamado “It’s my painting!”, ao que
o segundo teria respondido “On my wall”.
Desde o Renascimento, discute-se o conflito entre o direito de propriedade do
suporte e os direitos do autor, questão que a ciência jurídica procura
solucionar tradicionalmente por instrumentos de teor patrimonial-individualista,
como a especificação (Código Civil, arts. 1.269-1.271), e que, mais
recentemente, tem ganhado viés transindividual, com o reconhecimento de um
direito social de acesso à cultura ou de um “mínimo existencial cultural”, como defende Marcelo Conrado em instigante
tese de doutorado defendida junto à Universidade Federal do Paraná, intitulada
“A Arte nas Armadilhas dos Direitos
Autorais”, orientada por Eroulths Cortiano Júnior.
Um terceiro problema diz respeito à própria arte
do grafitismo, que, para especialistas, teria um caráter efêmero por definição:
o grafite não seria feito para durar, o que eliminaria, por consequência, um
direito à conservação ou não-destruição da obra intelectual. O teor
contracultural do grafitismo e a sua interação necessária com o espaço urbano –
mutável, por essência, e sujeito às intempéries – afastariam qualquer pretensão
de conservação ou durabilidade da obra, sujeita, ainda, à atuação de outros
grafiteiros, em uma modalidade artística essencialmente interativa e
transgressora. Aqui, é preciso ponderar, todavia, que a efemeridade do grafite
está relacionada a transformações realizadas no espaço urbano no interesse útil
da coletividade (por exemplo, demolição do muro grafitado para instalação de um
parque ou passagem de uma nova avenida) ou no seu interesse cultural (realização
de outros grafites ou novas expressões de contracultura), não já de
intervenções puramente eliminatórias como a polêmica pintura de cinza.
O caráter efêmero e, até certo ponto,
“clandestino” do graffiti não afasta,
portanto, a proteção jurídica da obra intelectual. Em livro publicado em 2011
sobre direitos da personalidade, destaquei a importância de uma sentença do
Juiz João Marcos Fantinato, da 34a Vara Cível do Rio de Janeiro, que,
“contrariando
a histórica marginalização do grafitismo”, concedeu indenização de R$ 12 mil ao
grafiteiro conhecido como Márcio Swk,
que viu um de seus graffiti, inscrito
no muro de um colégio, ser reproduzido na vitrine de uma loja em shopping center, sem indicação de
autoria. O magistrado rejeitou o argumento
de que graffiti não seria obra
intelectual, mas mera técnica, pois o “entendimento contrário
teria o condão de retirar do grafitismo qualquer proteção legal, sujeitando tal
setor das artes plásticas ao seu total abandono à pirataria intelectual, pois
vem quase sempre exposto em muros da cidade” (TJRJ, Processo 2004.001.132663-0).
É certo que, no episódio mais recente ocorrido em
São Paulo, o conflito de interesses se estabelece entre os grafiteiros e o
Poder Público Municipal. Também é certo que os graffiti apagados encontravam-se inscritos sobre bens públicos, cuja
gestão é de competência da Prefeitura, mas não se pode desconsiderar que também
entram em jogo aí o interesse direto da coletividade em ter acesso a uma forma
de expressão artística típica dos grandes centros urbanos, bem como a própria
conduta da Prefeitura, que pode, a depender das circunstâncias fáticas, ter manifestado
por meio da sua prolongada inércia na conservação daquele espaço urbano, uma autorização tácita para a instalação dos
graffiti, mesmo à falta de uma norma
jurídica que expressamente os permitisse, como ocorre na cidade do Rio de
Janeiro. Aliás, o decreto carioca assegura expressamente “a permanência das
obras” nos espaços públicos por período de, no mínimo, dois anos, “desde que as intempéries do tempo, acidentes ou
obras urbanas fundamentais não prejudiquem ou interfiram no aspecto do trabalho
artístico” (art. 6o). Trata-se, em última análise, de questão a ser
apurada à luz do caso concreto, mas já tem aí o leitor bons parâmetros para
proceder à sua própria avaliação.
Em conclusão, pode-se afirmar que a destruição do
resultado da expressão artística, sem
uma razão que justifique a transformação do espaço público à luz dos valores
protegidos pela ordem jurídica, atribui ao autor da obra intelectual o direito
a pleitear indenização em virtude da violação ao seu direito moral de ver
conservada a obra em sua integridade (art. 24 da Lei 9.610/1998). Trata-se,
contudo, de questão ainda polêmica no cenário jurídico brasileiro. Não se está
diante de algo que, como se costuma dizer, seja preto no branco; aqui, mais do que
nunca, a questão é cinza.
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