quinta-feira, 8 de maio de 2014

ARTIGOS. AS PESSOAS-SETA E A DIGNIDADE HUMANA.



AS “PESSOAS-SETA” E A DIGNIDADE HUMANA. [1]

Flávio Tartuce.
Doutor em Direito Civil pela USP.
Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP.
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Escola Paulista de Direito (EPD).
Professor da Rede de Ensino LFG.
Advogado e consultor jurídico.
Autor de obras jurídicas pelo Grupo GEN.

Comecei a percebê-las aos domingos, quando dos meus passeios pelo parque da Aclimação, na Capital Paulista, para exercícios físicos matinais. Diante do boom imobiliário percebido no bairro onde moro e o surgimento de novos empreendimentos, as “pessoas-seta” ou “pessoas-placa” se multiplicaram pelos principais centros urbanos brasileiros. Pessoas paradas, imóveis como postes, indicando os locais onde as unidades podem ser adquiridas, os tão conhecidos stands de vendas de imóveis novos, ainda na planta.
Como tenho dito em aulas e exposições, os contratos de aquisição da casa própria no Brasil são verdadeiras arapucas contratuais, e a exposição dos produtos que estão sendo vendidos começa com uma violação à dignidade humana, qual seja, essa postificação da pessoa humana. Tenho utilizado a expressão destacada, pois a pessoa humana se transforma em um poste, em coisa imóvel visando a indicar um outro bem a ser comprado. 
Como é notório, a Constituição Federal de 1988 utiliza a concepção kantiana de dignidade humana em seu art. 1º, inciso III, a partir do imperativo categórico de que a pessoa humana é um ser racional que deve ser considerado sempre um fim em si mesmo. Em outras palavras, a pessoa humana não pode ser meio ou instrumento, o que parece ser desrespeitado pela contratação das “pessoas-seta”.
Conversei com algumas dessas pessoas, que recebem de 30 a 50 reais por dia de trabalho, por oito horas de imobilidade. O valor não inclui a alimentação, que deve ser providenciada por elas mesmas. E não se pode mostrar indisposição. A “pessoa seta” deve estar sempre sorrindo. Deve ser um poste feliz. Ao final dos trabalhos são recolhidas por uma Kombi, exaustas, cansadas, o que ocorre mesmo com os mais jovens.
Dia desses constatei que uma senhora, de idade avançada, providenciou uma cadeira para se sentar e segurar a seta. Perguntei a ela, a razão de estar sentada. Ela me disse que tinha sérios problemas nas costas, mas que os fiscais da empresa não poderiam vê-la naquela situação. Afinal de contas, o poste deve estar sempre ereto, em pé. Que situação degradante, penso eu, todos os domingos! Que flagrante desrespeito à Constituição Federal e a outras normas infraconstitucionais!
Tanto os civilistas quanto os constitucionalistas têm se dedicado, no Brasil e fora dele, ao estudo das situações contratuais de desrespeito aos direitos fundamentais. Cito, a propósito, os exemplos instigantes retirados da obra de J. J. Gomes Canotilho, ao analisar as concretizações da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, tema atinente à constitucionalização do Direito Privado. A propósito dessa aplicação, geradora do que se denomina como eficácia horizontal, leciona o jurista português que, “A Constituição de 1976 (CRP, artigo 18º/1) consagra a eficácia das normas consagradoras de direitos, liberdades, e garantias de direitos análogos na ordem jurídica privada. A doutrina alude a eficácia horizontal das normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias (a juspublicista alemã utiliza o termo Drittwirkung)” (GOMES CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. 3. tir. Coimbra: Almedina, [s/d], p. 448). No caso brasileiro, tal eficácia está justificada pelo art. 5º, § 1º, da Constituição de 1988, segundo o qual as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata em qualquer tipo de relação jurídica, seja entre o Estado e o particular ou mesmo entre particulares, justificando-se, na última relação, o termo eficácia horizontal.
Partindo para as hipóteses elencadas, Canotilho cita os seguintes casos, com especial aplicação contratual: a) uma indústria celebra contratos de trabalho em que os empregados renunciam a qualquer atividade sindical; b) um colégio contrata uma professora para os seus quadros, constando uma cláusula de celibato, sob pena de rescisão do negócio jurídico; c) uma empresa de informática contrata duas mulheres para os seus serviços, condicionando a manutenção do contrato de trabalho à não-gravidez dessas mulheres (cláusula de não-engravidar); e d) entidades patronais e sindicatos celebram um contrato coletivo de trabalho com a cláusula closed-shop, que veda a contratação de empregados não sindicalizados (GOMES CANOTILHO, J. J. Direito constitucional e teoria da Constituição, cit., p. 1285-1286).
Ora, pela legislação brasileira, todos os exemplos parecem conduzir à nulidade absoluta das cláusulas e até dos contratos –, caso não seja possível apenas retirar a cláusula ferida pela invalidade –, por lesão à dignidade humana, a direitos da personalidade e à função social dos contratos, estampada como princípio de ordem pública nos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro. A cláusula de celibato e a cláusula de não-engravidar esbarram no direito à constituição de uma família, base da sociedade, nos termos do art. 226 da Constituição da República Brasileira; sem falar na proteção da mulher trabalhadora, elencada pelo art. 7º, inc. XX, da mesma CF/1988. Renunciar à atividade sindical entra em conflito com o art. 8º do Texto Maior, pelo qual é livre a associação profissional ou sindical. O mesmo deve ser dito em relação a cláusulas closed-shop, não sendo possível impor o direito de sindicalização, que seria transformado em um dever. Em reforço, vale lembrar a dicção do art. 5º, inc. XVII, da Norma Fundamental Brasileira, ao enunciar que é plena a liberdade de associação para fins lícitos.
As premissas teóricas expostas servem igualmente para se declarar a nulidade absoluta dos contratos celebrados com as “pessoas-seta”. Na verdade, tais contratos não deveriam existir, pela clara ilicitude de seus conteúdos. Espera-se que as autoridades competentes acabem com essa prática no Brasil. Como dito, os contratos de aquisição financiada de imóveis no País violam direitos civis e fundamentais desde a sua pré-contratação. Quanto ao contrato em si, pelas várias abusividade presentes, tratarei em outro artigo, a ser desenvolvido no futuro.


[1] Publicado no Jornal Carta Forense, edição de maio de 2014.

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