A tutela da vida humana embrionária
Mário
Luiz Delgado
"O
nascituro não é uma simples massa orgânica, uma parte do organismo da mãe, ou,
na clássica expressão latina, uma portio viscerum matris, mas um ser humano,
com dignidade de pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas de
cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica". (Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de Portugal - Processo: 436/07.6TBVRL.P1.S1)
Qualquer
reflexão que façamos no tocante à tutela da vida humana biológica, no âmbito
dos direitos da personalidade, não pode deixar de tomar partido sobre a
extensão dessa tutela, a abranger apenas as pessoas já nascidas ou se abarcaria
também o embrião. Em outras palavras, quando a Constituição assegura o
"direito à vida", garantiria o direito à vida desde a concepção?
As
ponderações a seguir feitas passarão ao largo de todas as discussões que
envolvem a personalidade jurídica do nascituro e do embrião. Não defenderemos
aqui nem a corrente natalista, nem a concepcionista, mesmo porque pouco nos
importará, para fins do nosso estudo, ser ou não o embrião dotado de
personalidade jurídica. O que nos interessa saber é se esse embrião pertence ou
não à espécie humana.
Tal
questão, como sustentamos há muito tempo, somente comporta uma única resposta e
tal resposta somente pode ser afirmativa, quer se trate de embrião corpóreo ou
extra corpóreo. Afinal de contas, tratando-se de embrião humano, a nenhuma
outra espécie poderia pertencer senão à espécie humana.
Respondida
a essa primeira questão, resta a segunda e mais tormentosa: o direito da
personalidade, fundamentado em cláusula pétrea constitucional (art 5º), ou seja
o direito à vida, tutelaria também o embrião?
Para a
ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha, "se a proteção constitucional do
direito à vida refere-se ao ser humano, ao humanum genus, nem se há
duvidar que o embrião está incluído na sua proteção jurídica. O embrião é ser e
é humano"1.
Entretanto
muitas são as posições em sentido contrário, havendo quem defenda não haver o
constituinte se manifestado sobre o termo "a quo" dessa
cláusula constitucional pétrea, o que permitiria à legislação
infraconstitucional definir quais seriam os termos iniciais do direito
fundamental à vida, possibilitando, assim, a título exemplificativo, a edição
de normas permissivas ou descriminalizantes do aborto, como, aliás, já o faz o
nosso atual Código Penal em certas
hipóteses excepcionais.
Para
que possamos nos manifestar sobre o tema, antes de mais nada , é preciso que
estejamos atentos à exata dicção constitucional:
"Art.
5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:"
A priori
o vocábulo todos parece compreender, não apenas as pessoas já nascidas, mas
também o embrião e o feto. O que implicaria sustentar a existência de um
"direito à vida", ou "direito de nascer", como direito da
personalidade, o que nos levaria à conseqüência lógica de que o aborto
terapêutico "violenta o sentimento filosófico do ordenamento jurídico, é
inconstitucional e contradiz o direito civil"2.
Reforçam
esse entendimento as normativas do direito internacional. O Pacto de São José de Costa Rica,
por exemplo, estabelece que para os efeitos dessa Convenção "pessoa é todo
ser humano", e que toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida "a
partir do momento da concepção" (art. 1º, § 2º, e art. 4º).
Nesse
sentido destaca, com propriedade, Carmen Lúcia Antunes Rocha no trabalho já
citado anteriormente:
"Em
geral, os sistemas jurídicos afirmam que ser considerado pessoa em direito,
vale dizer, dotar-se de personalidade para os fins de titularizar direitos,
depende do nascimento com vida. Todavia, quanto aos direitos humanos, os
direitos que cada ser humano titulariza não se há fazê-los depender da
personalidade[…] Há que se distinguir, portanto, ser humano de pessoa humana.
E, de pronto, há que se antecipar que o princípio da dignidade, que se expressa
de maneira relevante quanto à pessoa humana, não se circunscreve a ela, senão
que haverá que ser respeitado para a espécie humana, tomada esta em sua
integralidade.[…] O embrião é, parece-me, inegável, ser humano, ser vivo,
obviamente, que se dota da humanidade que o dota de essência integral,
intangível e digno em sua condição existencial. Não é, ainda, pessoa, vale
dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto
constitucional da pessoa humana".
Não
temos dúvida que o direito à vida é objeto de autônoma e específica tutela
constitucional, abarcando sob o seu manto protetor todo aquele que pertencer à
espécie humana, donde se conclui, realmente, pela existência de um
"direito de nascer", de que é titular todo ser humano como tal
concebido, não havendo como se admitir qualquer vulneração ao embrião e ao
nascituro. Por isto, ressalta Lorenzetti, "tem se reconhecido a proibição
de procedimentos experimentais que tenham como objeto os embriões, salvo os que
tenham por finalidade o benefício do próprio embrião, ou os estudos que não o
danem. Uma afirmação correta, é a predominância que tem o direito relativo à
vida íntima, e o início da vida é um aspecto dela, dentro do
ordenamento"3. É praticamente consenso na doutrina que a dignidade da
pessoa humana é atingida sempre que o ser humano for rebaixado a objeto,
tratado como uma coisa. E as coisas têm preço e não dignidade, máxima kantiana
já repetida à exaustão em todos os trabalhos que tratam do princípio da
dignidade da pessoa humana4. Daí falar-se em coisificação do ser humano como
antítese da dignidade.
Confrontando
o direito do concepto ao nascimento em oposição ao direito ao aborto, em
princípio não hesitaremos em sustentar a prevalência do primeiro, salvo quando
estiverem em jogo outros interesses maiores.
Todos
os princípios, positivados ou não no texto constitucional, podem ser limitados
por outros princípios com os quais entrem em colisão, exigindo-se, portanto,
que sejam submetidos a regras de ponderação, sobre as quais remetemos o leitor
à clássica obra de Robert Alexy5. Havendo colisão entre princípios ou entre
garantias fundamentais, além da operação de ponderação, cabe ao intérprete
recorrer também a um outro princípio como critério solucionador, que é
exatamente o "princípio da proporcionalidade", também chamado de
"princípio dos princípios"6. Comparando o peso de cada bem jurídico e
de cada um dos princípios em jogo, o legislador ou o intérprete decidirá, no
caso concreto, a qual deles dará prioridade7.
Voltando
à questão específica do aborto, e aproveitando as lições de Lorenzetti sobre o
direito argentino, podemos afirmar que "em nosso Direito Penal, o aborto
está penalizado porque se atenta contra o bem personalíssimo da vida do óvulo
fecundado, ou do embrião, ou do feto, segundo seja. Não o é quando seja
praticado por um médico diplomado, com o consentimento da mulher grávida, se é
feito com a finalidade de evitar um perigo para a vida ou a saúde da mãe, e se
este perigo não pode ser evitado por outros meios [...] Também não é punível o
aborto, se a gravidez provém do uso de violência ou de um atentado ao pudor
cometido sobre a mulher retardada ou demente"8.
Nessas
hipóteses excepcionais, teremos de um lado o direito à vida do concepto e de
outro o direito à saúde física ou psíquica da mãe, emanação direta do direito à
vida. Realizando uma operação de ponderação e balizamento, para a correta
aplicação de cada um desses direitos , o intérprete fará prevalecer o direito
(à vida e à saúde) da mãe sobre o direito do concepto. A "primazia do
direito à vida do vivente sobre o direito de nascer do nascituro", como
bem coloca Franco Modugno. O direito à integridade física, operando a
combinação direito à vida - direito à saúde, justifica a interrupção da
gravidez, nas situações de risco à saúde da mãe, ainda que apenas à saúde
psíquica9.
O
mesmo entendimento pode ser aplicado à interrupção da gestação de fetos
anencefálicos, como aliás decidiu o STF no julgamento da ADPF 54. Não se podendo,
todavia, confundir com a situação do "aborto eugênico"10, que atenda
a interesses particulares e egoísticos da gestante e que não pode ser tolerado
em hipótese alguma11, por infringir, não somente o direito à vida do concepto,
mas também o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.
Já o
aborto por razões econômicas não encontra justificativa na seara
ético-jurídica, pois na operação de balanceamento teríamos de um lado uma
situação existencial do ser humano concebido e de outro uma situação
patrimonial da gestante, sendo certo e indubitável a primazia dada pelo
ordenamento às situações existenciais. Agora se a situação econômica
comprometer a saúde psíquica da mãe, aí estaremos diante de outra situação
concreta, a merecer adequado e particularizado exame para que se conclua pela
possibilidade de interrupção ou não da gravidez.
____________
1 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (Coord.). O
direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004,p. 47.
2 LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do
direito privado.São Paulo: Ed. RT, 1998, p. 470.
3 Idem.
4 Vide, por todos, SARLET , Ingo W.
"Dignidade da Pessoa humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988". 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2004.
5 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos
Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993.
6 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago.
Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos, 1999.
7 Esse balanceamento, em última instância
será feito pela Corte constitucional que, valendo-se do juízo de razoabilidade,
fará a comparação entre a pluralidade de valores envolvidos em uma certa
fatispécie com a concreta relação meios-fins que o legislador haja instituído
em determinada lei.
8 Op. cit., p. 471.
9 Cf. MODUGNO, Franco.
"I nuovi diritti nela Giurisprudenza Constituzionale". Torino, G. Giapicheli Editore, 1995, p.
9/19 e 87/108.
10 A eugenia trata da reprodução e do
aperfeiçoamento da raça. No aborto eugênico a interrupção da gravidez tem como
matiz filosófica a preservação da qualidade de vida do ser, cujo nascimento
deve ser obstado sempre que forem detectados problemas somáticos que
comprometam essa qualidade.
11 Sobretudo nos tempos atuais, onde o
chamado "direito à diferença", tido como direito fundamental de
quarta geração, vem ganhando cada dia mais força.
____________
*
Mário Luiz Delgado é advogado, diretor do IASP - Instituto dos
Advogados de São Paulo, professor de Direito Civil na FAAP e EPD
- Escola Paulista de Direito, presidente da Comissão de Assuntos
Legislativos do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família,
membro da Comissão de Acompanhamento Legislativo do Conselho Federal da OAB e
membro da ABDC - Academia Brasileira de Direito Civil.
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