Recusa
ao poder familiar
Um adolescente de 14 anos, Patrick Holland
ingressou na justiça americana, perante a “Norfolk County Probate and Family
Court” (2004), para retirar o poder familiar do seu pai, Daniel Holland. Ele
matara a genitora do menor, da qual estava separado. Foi uma ação inusitada,
até então, para dissolver o vínculo de autoridade parental.
Dez anos depois, registra-se que um
pré-adolescente (menor impúbere), vivenciando interesse assemelhado, “chegou a
procurar o Ministério Público por conta própria pedindo para não morar mais com
o pai e a madrasta. E indicou duas famílias com as quais gostaria de ficar”
(01/2014). “Relatou detalhes de sua rotina, marcada pela indiferença e pelo
desamor na casa em que vivia.”
No caso recente, do estudante Bernardo Uglione
Boldrini, de Três Passos (RS), cidade do noroeste gaúcho, cuja morte repercutiu
nacionalmente, a postulação teria como questão subjacente, a sua necessidade de
ter um pai mais presente, apto a dar-lhe mais afeto. A imprensa também noticia
que, em audiência judicial, o genitor assumira perante a Justiça o compromisso
de uma assistência mais presencial e afetiva.
De fato, há uma diferença substancial entre o
criar e o cuidar. “O criar está no campo material, o cuidar está no campo
afetivo", sustenta Maria Aparecida Daud, especialista em responsabilidade
civil no direito de família. Há uma tendência atual, no país, de "a
Justiça condenar os pais a indenizar os seus filhos (crianças ou já adultos)
quando comprovado psicoterapeuticamente que eles têm seqüelas psíquicas ou
comportamentais por causa do chamado abandono moral". ("Papai, eu
quero afeto", "Isto É", ed. nº 1.849, 19.01.2005, p.20).
O diferencial sugere profundas reflexões sob a
égide da lei.
Essa forma de abandono configura hipótese de perda do poder familiar, prevista no art. 1.638, II, do atual Código Civil. O dano psicológico causado pelo pai ausente aos cuidados do filho, "cuja ausência pode gerar timidez e medo" à falta da representação psicológica de segurança na figura paterna, tem sido reconhecido, em diversas decisões judiciais. Assim, o direito de cuidar do filho, dirigindo-lhe a educação, com autoridade protetora e zelosa, dando-lhe assistência imaterial, traduzida na afetividade, é também um dever paternal.
Essa forma de abandono configura hipótese de perda do poder familiar, prevista no art. 1.638, II, do atual Código Civil. O dano psicológico causado pelo pai ausente aos cuidados do filho, "cuja ausência pode gerar timidez e medo" à falta da representação psicológica de segurança na figura paterna, tem sido reconhecido, em diversas decisões judiciais. Assim, o direito de cuidar do filho, dirigindo-lhe a educação, com autoridade protetora e zelosa, dando-lhe assistência imaterial, traduzida na afetividade, é também um dever paternal.
Vale conferir, historicamente, a lição
doutrinária de Clóvis Beviláqua, quando, com permanente atualidade, comentando
o art. 384 do Código Civil de 1916, anotou:
"(...) Se o pai não se desempenha dessa
missão sagrada, não somente infringe preceito da moral, como, ainda, ofende
direitos do filho. Por isso, embora não deva intervir, senão em casos graves e
manifestos, porque é da maior conveniência cultivar-se o afeto da família, o
direito se mantém vigilante pela sorte dos filhos. (...).".
Quase cem anos depois, a vigília do direito a
atender a proteção integral dos filhos produz resultados mais eficientes,
quando, distinguindo o criar e o cuidar, decisões judiciais estabelecem,
concretamente, a responsabilidade civil e penal dos pais pelo abandono afetivo
dos seus filhos.
A justiça busca também contribuir para uma
geração melhor capacitada em sentimentos, alinhada ao que pensou Beviláqua:
"É também ao lado dos pais, na atmosfera da família, que devem estar os
menores, porque é nesse meio que melhor se pode desenvolver o seu espírito, no
sentido do bem, do justo e, ainda, do útil social e individual." Nessa
linha, a justiça quer operar uma sociedade mais justa e harmônica.
A doutrina mais moderna orienta no mesmo
sentido. Vejamos:
(i) Álvaro Villaça Azevedo considera que "o
descaso entre pais e filhos é algo que merece punição, é abandono moral grave,
que precisa merecer severa atuação do Poder Judiciário, para que se preserve
não o amor ou a obrigação de amar, o que seria impossível, mas a
responsabilidade ante o descumprimento do dever de cuidar, que causa o trauma
moral da rejeição e da indiferença" (“Jornal do Advogado” - OAB/SP nº 289,
dez/2004, pág. 14).
(ii) Tânia da Silva Pereira reflete a
necessidade de o “cuidado” ser identificado dentro do ordenamento jurídico, proclamando
que “a partir da percepção e convencimento de que as relações sócio-afetivas
passaram a ser reconhecidas de forma significativa no Direito de Família, não
podemos afastar a possibilidade de incluir neste contexto o ‘cuidado’ como um
valor jurídico”.
Segue-se, então, reconhecer que o “Caso Bernardo
Boldrini” não é um fato isolado no contexto de pai ausente ou deficitário no
exercício do poder familiar. Grande contingente de crianças e adolescentes
padecem do mesmo fenômeno.
Luigi Zoja, famoso psicólogo
italiano, em sua obra "O Pai - História e Psicologia de uma espécie em
extinção" (Editora Axis Mundi), visualizando o tema, ao indicar diversos
modelos recorrentes atuais (pai ausente, pai tirano, etc.) que apontam para a
“decadência do patriarcado”, destaca que apesar da crise da figura do pai, no
processo de modernização social, a sociedade reclama, sempre, a necessidade de
se ter um pai.
Lado outro, quando a função parental
paterna tem sofrido a influência de circunstâncias diversas, entre as quais se
situam os casos mais comuns das novas famílias, as “famílias-mosaico”, formadas
por novos pares, com os filhos de uniões anteriores, apresenta-se a
parentalidade como um novo desafio, a exortar,
particularmente, o cuidado jurídico.
Ora bem. Quando a falta do devido cuidado
venha servir de reclamo pelo próprio filho, a sugerir uma manifesta recusa ao
poder familiar, sob as mais diversas razões, não se pense, de pronto, tratar-se
de uma tirania filial, “ante fatores sócio-emocionais que permeiam exacerbado
individualismo dos jovens” (Dante Donatelli, "A Vida em Família: As Novas
Formas de Tirania").
Cumpre-se decisiva a advertência de
Tânia da Silva Pereira, colocada a questão a estilete: “O
cuidado deve informar as relações privadas e institucionais. Efetivas violações
vinculadas à falta de responsabilidade e compromisso devem justificar a
mobilização das forças cogentes do Estado”.
De fato. "As leis não
bastam, os lírios não nascem das leis". Uma eventual recusa à guarda ou ao
poder familiar, por parte do filho, reclama novos procedimentos jurídico-processuais
(multidisciplinares) e metajurídicos.
No ponto, cumpre, portanto, ao Estado, em
situações que tais, quando as relações afetivas se acharem comprometidas pela
ausência parental, maus-tratos, indiferenças e conflitos intrafamiliares,
adotar medidas imediatas e urgentes:
(i) ampliar a esfera privada familiar dos
cuidados, elegendo um novo regime de guarda, o da “guarda expandida”; com ênfase e efetividade no que orienta o
parágrafo único do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990, de
13.07.1990), incluído pela Lei nº 12.010/2009, ou seja, a partir da denominada
“família extensa”, constituída para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, por parentes
próximos “com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de
afinidade e afetividade”. Nesse modelo, uma guarda excepcional
e ampliada.
(ii) monitorar com eficiência e rigor absoluto a
realidade subjacente das famílias de risco, sempre havidas aquelas onde crianças
e adolescentes estejam expostos como vítimas potenciais do desamor ou da
indiferença (quando menos) e peçam o socorro extremo de sobrevivência.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – o
autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM),
coordena a Comissão de Magistratura de Família.
Assessorou a Comissão Especial de Reforma do Código Civil na Câmara
Federal. Autor de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a
Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
Nenhum comentário:
Postar um comentário