quarta-feira, 2 de abril de 2014

PROVA DO MPMG. PRIMEIRA FASE. 2014. QUESTÃO SOBRE O NASCITURO.

Prezados Leitores do Blog. 

Chegou ao meu conhecimento questão aplicada na última prova de primeira fase do MPMG (2014), que considerou como marco para o início da personalidade civil o nascimento com vida, a partir da prova via docimasia hidrostática de Galeno.

Havia também como opção de alternativa assertiva que mencionava o início da personalidade civil a concepção, corrente que, no meu entendimento, prevalece na doutrina e na jurisprudência nacionais (teoria concepcionista)

De toda sorte, a questão é controversa, conforme trecho abaixo, do meu Manual de Direito Civil, Volume Único

Nesse contexto, penso que a questão formulada deva ser anulada, pois pode induzir a erro os candidatos que efetivamente conhecem a matéria e a polêmica gerada pelo art. 2º do Código Civil, e que sejam seguidores da teoria concepcionista, a prevalecente entre os doutrinadores contemporâneos, principalmente da minha geração.

Espero que esta declaração sirva como modelo de eventuais recursos, para que tal equívoco seja sanado, com o devido respeito à banca examinadora e ao Nobre Ministério Público de Minas Gerais.

São Paulo, 2 de abril de 2014. 

Professor Flávio Tartuce

Fonte: TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Ùnico. São Paulo: GEN/Método, 4ª Edição, 2014, p. 70-75
 
Mas a maior controvérsia existente não é essa, e sim a referente à personalidade civil do nascituro, uma vez que o art. 2.º do CC/2002 continua colocando em colisão as teorias natalistas e concepcionistas. A polêmica não foi encerrada pelo fato de a norma continuar a utilizar os termos nascimento e concepção. Na primeira parte, o artigo parece indicar que o nascituro não é pessoa, não tendo direito. Entretanto, na sua segunda parte afirma o contrário.
Para dirimir dúvidas, realizar pesquisa científica e aprofundar o seu estudo, este autor escreveu artigo sobre o tema intitulado A situação jurídica do nascituro: uma página a ser virada no Direito Brasileiro.[1] Nesse trabalho de pesquisa, onde constam todas as referências bibliográficas, foram encontradas três correntes que procuraram justificar a situação do nascituro, que passam a ser expostas de forma pontual:

a) Teoria natalista
A teoria natalista prevalecia entre os autores modernos ou clássicos do Direito Civil Brasileiro, para quem o nascituro não poderia ser considerado pessoa, pois o Código Civil exigia e ainda exige, para a personalidade civil, o nascimento com vida. Assim sendo, o nascituro não teria direitos, mas mera expectativa de direitos. Como adeptos dessa corrente, da doutrina tradicional, podem ser citados Sílvio Rodrigues, Caio Mário da Silva Pereira e San Tiago Dantas. Na doutrina contemporânea, filia-se a essa corrente Sílvio de Salvo Venosa. Partem esses autores de uma interpretação literal e simplificada da lei, que dispõe que a personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, o que traz a conclusão de que o nascituro não é pessoa.
O grande problema da teoria natalista é que ela não consegue responder à seguinte constatação e pergunta: se o nascituro não tem personalidade, não é pessoa; desse modo, o nascituro seria uma coisa? A resposta acaba sendo positiva a partir da primeira constatação de que haveria apenas expectativa de direitos. Além disso, a teoria natalista está totalmente distante do surgimento das novas técnicas de reprodução assistida e da proteção dos direitos do embrião. Também está distante de uma proteção ampla de direitos da personalidade, tendência do Direito Civil pós-moderno.
Do ponto de vista prático, a teoria natalista nega ao nascituro até mesmo os seus direitos fundamentais, relacionados com a sua personalidade, caso do direito à vida, à investigação de paternidade, aos alimentos, ao nome e até à imagem. Com essa negativa, a teoria natalista esbarra em dispositivos do Código Civil que consagram direitos àquele que foi concebido e não nasceu. Essa negativa de direitos é mais um argumento forte para sustentar a total superação dessa corrente doutrinária.

b) Teoria da personalidade condicional
A teoria da personalidade condicional é aquela pela qual a personalidade civil começa com o nascimento com vida, mas os direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva, ou seja, são direitos eventuais. Como se sabe, a condição suspensiva é o elemento acidental do negócio ou ato jurídico que subordina a sua eficácia a evento futuro e incerto. No caso, a condição é justamente o nascimento daquele que foi concebido. Como fundamento da tese e da existência de direitos sob condição suspensiva, pode ser citado o art. 130 do atual Código Civil. Como entusiastas desse posicionamento, podem ser citados Washington de Barros Monteiro, Miguel Maria de Serpa Lopes e Clóvis Beviláqua, supostamente. Diz-se supostamente quanto ao último jurista, pois, apesar de ter inserido tal teoria no Código Civil de 1916, afirmava que “Parece mais lógico afirmar francamente, a personalidade do nascituro”.[2] Na doutrina atual, Arnaldo Rizzardo segue o entendimento da teoria da personalidade condicional.
O grande problema da corrente doutrinária é que ela é apegada a questões patrimoniais, não respondendo ao apelo de direitos pessoais ou da personalidade a favor do nascituro. Ressalte-se, por oportuno, que os direitos da personalidade não podem estar sujeitos a condição, termo ou encargo, como propugna a corrente. Além disso, essa linha de entendimento acaba reconhecendo que o nascituro não tem direitos efetivos, mas apenas direitos eventuais sob condição suspensiva, ou seja, também mera expectativa de direitos.
Na verdade, com devido respeito ao posicionamento em contrário, consideramos que a teoria da personalidade condicional é essencialmente natalista, pois também parte da premissa de que a personalidade tem início com o nascimento com vida. Não há, portanto, uma teoria mista, como querem alguns. Por isso, em uma realidade que prega a personalização do Direito Civil, uma tese essencialmente patrimonialista não pode prevalecer.[3]
 c) Teoria concepcionista
A teoria concepcionista é aquela que sustenta que o nascituro é pessoa humana, tendo direitos resguardados pela lei. Esse é o entendimento defendido por Silmara Juny Chinellato (a principal precursora da tese no Brasil), Pontes de Miranda, Rubens Limongi França, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Roberto Senise Lisboa, José Fernando Simão, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Francisco Amaral, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Antonio Junqueira de Azevedo, Gustavo Rene Nicolau, Renan Lotufo e Maria Helena Diniz. Em sua obra sobre a Parte Geral do Código Civil de 2002, lançada no ano de 2012, o Mestre Álvaro Villaça Azevedo também expõe que o correto é sustentar que a personalidade é adquirida desde a concepção.[4]
A maioria dos autores citados aponta que a origem da teoria está no Esboço de Código Civil elaborado por Teixeira de Freitas, pela previsão constante do art. 1.º da sua Consolidação das Leis Civis, segundo o qual “As pessoas consideram-se como nascidas apenas formadas no ventre materno; a Lei lhes conserva seus direitos de sucessão ao tempo de nascimento”. Como é notório, esse Esboço inspirou o Código Civil argentino, que adota expressamente a teoria concepcionista.
Consigne-se que a conclusão pela corrente concepcionista consta do Enunciado n. 1, do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aprovado na I Jornada de Direito Civil, e que também enuncia direitos ao natimorto, cujo teor segue: “Art. 2.º A proteção que o Código defere ao nascituro alcança também o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura”.
Como se pode notar, a teoria concepcionista é aquela que prevalece entre os doutrinadores contemporâneos do Direito Civil Brasileiro. Para essa corrente, o nascituro tem direitos reconhecidos desde a concepção. Quanto à Professora Maria Helena Diniz, há que se fazer um aparte, pois alguns autores a colocam como seguidora da tese natalista, o que não é verdade. A renomada doutrinadora, em construção interessante, classifica a personalidade jurídica em formal e material, a saber:

Personalidade jurídica formal – é aquela relacionada com os direitos da personalidade, o que o nascituro já tem desde a concepção.
– Personalidade jurídica material – mantém relação com os direitos patrimoniais, e o nascituro só a adquire com o nascimento com vida.

A jurista afirma expressamente que a razão está com a teoria concepcionista, filiando-se a tal corrente teórica.[5]
A corrente concepcionista tem também prevalecido na recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. De início, em notório julgado foi reconhecido dano moral ao nascituro, pela morte de seu pai ocorrida antes do seu nascimento:

“Direito civil. Danos morais. Morte. Atropelamento. Composição férrea. Ação ajuizada 23 anos após o evento. Prescrição inexistente. Influência na quantificação do quantum. Precedentes da turma. Nascituro. Direito aos danos morais. Doutrina. Atenuação. Fixação nesta instância. Possibilidade. Recurso parcialmente provido. I – Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum. II – O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum. III – Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional” (STJ, REsp 399.028/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4.ª Turma, j. 26.02.2002, DJ 15.04.2002, p. 232).

Anote-se que tal entendimento é confirmado por outros arestos mais recentes da mesma Corte Superior, que confirmam a teoria concepcionista (por todos: STJ, AgRg. no AgRg. no AREsp, 150.297/DF, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/02/2013, DJe 07/05/2013).
A mesma premissa foi adotada pelo STJ em outro julgado em que o nascituro foi tratado de forma igual em relação aos outros filhos já nascidos, em caso envolvendo acidente do trabalho que vitimou o seu pai:

“Responsabilidade civil. Acidente do trabalho. Morte. Indenização por dano moral. Filho nascituro. Fixação do quantum Indenizatório. Dies a quo. Correção monetária. Data da fixação Pelo juiz. Juros de mora. Data do evento danoso. Processo civil. Juntada de documento na fase recursal. Possibilidade, desde que não configurada A má­‑fé da parte e oportunizado o contraditório. Anulação do processo. Inexistência de dano. Desnecessidade. – Impossível admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser quantificado com precisão. – Embora sejam muitos os fatores a considerar para a fixação da satisfação compensatória por danos morais, é principalmente com base na gravidade da lesão que o juiz fixa o valor da reparação. (...)” (STJ, REsp 931.556/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 17.06.2008, DJe 05.08.2008).

Igualmente adotando a teoria concepcionista – apesar de confusões no corpo do julgado – o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que cabe pagamento de indenização do seguro obrigatório por acidente de trânsito (DPVAT) pela morte do nascituro. Como se percebe, o feto foi tratado pelo acórdão como pessoa humana, o que é merecedor de elogios:

“Recurso Especial. Direito securitário. Seguro DPVAT. Atropelamento de mulher grávida. Morte do feto. Direito à indenização. Interpretação da Lei n. 6194/74. 1 – Atropelamento de mulher grávida, quando trafegava de bicicleta por via pública, acarretando a morte do feto quatro dias depois com trinta e cinco semanas de gestação. 2 – Reconhecimento do direito dos pais de receberem a indenização por danos pessoais, prevista na legislação regulamentadora do seguro DPVAT, em face da morte do feto. 3 – Proteção conferida pelo sistema jurídico à vida intrauterina, desde a concepção, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. 4 – Interpretação sistemático-teleológica do conceito de danos pessoais previsto na Lei n. 6.194/74 (arts. 3.º e 4.º). 5 – Recurso especial provido, vencido o relator, julgando-se procedente o pedido” (STJ, REsp 1120676/SC, Rel. Ministro Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 07.12.2010, DJe 04.02.2011)


[1]    TARTUCE, Flávio. A situação jurídica do nascituro: uma página a ser virada no Direito Brasileiro. In: Questões controvertidas do Código Civil. Parte Geral. Mário Luiz Delgado e Jones Figueiredo Alves (Coords.). São Paulo: Método, 2007. v. 6, p. 83-104 e In: Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro, n. 33, 2007, p. 155-177.

[2]     BEVILAQUA, Clóvis. Código dos Estados Unidos do Brasil. Editora Rio: 1940. v. I, p. 178.

[3]   AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria Geral do Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2012, p. 10.

[4]   VILLAÇA, Azevedo Álvaro. Teoria Geral do Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2012. p. 10-11.

[5]   DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 36.


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