STJ vai uniformizar jurisprudência sobre abandono afetivo
Por Luiz Felipe Salomão. Ministro do Superior Tribunal de
Justiça.
Fonte: Site Consultor Jurídico. 8 de abril de 2014.
Abandono afetivo é termo
hoje encontrado com relativa frequência no âmbito forense e nos mais variados
manuais de direito de família.
Em resumo, consiste
na indiferença afetiva dispensada por um genitor a sua prole, um desajuste
familiar que sempre existiu na sociedade e, decerto, continuará a existir,
desafiando soluções de terapeutas e especialistas.
O que é
relativamente recente, contudo, é a transferência dessa contenda própria do
ambiente familiar para as salas de audiências e tribunais país afora,
essencialmente sob a forma de indenizações pecuniárias buscadas pelo filho em
face do pai, ao qual se imputa o ilícito de não comparecer aos atos da vida
relacionados ao desenvolvimento social e psíquico de seu descendente.
O Superior Tribunal
de Justiça terá a inédita oportunidade de uniformizar o entendimento acerca do
tema por ocasião do julgamento dos EREsp 1.159.242/SP, de relatoria do eminente
ministro Marco Buzzi, previsto para esta quarta-feira (9/4), na 2ª Seção -
Direito Privado.
A primeira vez em
que a corte deliberou sobre o tema foi no julgamento do REsp 757.411/MG,
relatado pelo ministro Fernando Gonçalves. O caso foi julgado pela 4ª Turma, no
dia 29 de novembro de 2005, tendo aquele Colegiado, por maioria de votos,
sufragado a tese de ser incabível a indenização por abandono afetivo.
O voto condutor
apoiou-se em dois fundamentos: a) a consequência jurídica do abandono e do
descumprimento dos deveres de sustento, guarda e educação é a destituição do
poder familiar (artigo 24 do Estatuto da Criança e Adolescente e artigo 1.638,
inciso II, do Código Civil), não havendo espaço para a compensação pecuniária
pela desafeição; b) a condenação ao pagamento de indenização, na contramão dos
mais nobres propósitos imagináveis, consubstanciaria exatamente o sepultamento
da mínima chance de aproximação entre pai e filho, seja no presente ou futuro.
Essa tese foi
reafirmada por ocasião do julgamento do REsp 514.350/SP, relatado pelo ministro
Aldir Passarinho Junior, na 4ª Turma, em 28 de abril de 2009.
Porém, no primeiro
semestre de 2012, a 3ª Turma abraçou entendimento contrário, tendo sido
acolhida a possibilidade de indenização do abandono afetivo (REsp 1.159.242/SP,
relatado pela ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 24 de abril de
2012). A ilustrada relatora, no que foi acompanhada pela maioria dos demais
integrantes do colegiado, consignou que o chamado abandono afetivo constitui
descumprimento do dever legal de cuidado, criação, educação e companhia,
presente, implicitamente, no artigo 227 da Constituição Federal, omissão que
caracteriza ato ilícito passível de compensação pecuniária. Utilizando-se de
fundamentos psicanalíticos, a eminente relatora afirmou a tese de que tal
sofrimento imposto a prole deve ser compensado financeiramente.
Diante do dissídio
jurisprudencial entre as 3ª e 4ª Turma do mesmo Tribunal, a Segunda Seção do
STJ apreciará os embargos de divergência (EREsp 1.159.242/SP).
O julgamento é
importante e realça o papel do Tribunal da Cidadania, no sentido de uniformizar
a jurisprudência nacional como último intérprete da lei federal.
Certamente, ambas
as posições têm seus pontos virtuosos e merecem detida reflexão.
A professora Maria
Berenice Dias foi no cerne da questão: “os grande desafio dos dias de hoje é
descobrir o toque diferenciador das estruturas interpessoais que permita
inseri-las em um conceito mais amplo de família. Esse ponto de identificação é
encontrado no vínculo afetivo”.
A posição quanto a
não indenização tangencia pontos sensíveis acerca do tema, notadamente a
indesejável intervenção do Estado na família e a desjudicialização das relações
sociais.
Em outras palavras,
o direito de família deve observar uma principiologia de intervenção mínima
neste campo — pois envolvem bens especialmente protegidos pela Constituição,
como a intimidade e a vida privada —, erguidos como elementos constitutivos do
refúgio impenetrável da pessoa e que, por isso mesmo, podem ser opostos à coletividade
e ao próprio Estado.
Finalmente, a
migração para os tribunais de temas antes circunscritos ao ambiente familiar
merece mesmo reflexão não somente de juristas, mas de terapeutas e cientistas
sociais, como forma de análise da família no contexto do novo milênio.
Assim, realizada
essa breve abordagem acerca das posições contrária e favorável da
indenizabilidade do abandono afetivo, é mesmo hora propícia para que o Superior
Tribunal de Justiça uniformize a jurisprudência sobre esse delicado tema.
De toda sorte,
independentemente da conclusão a ser obtida no julgamento dos EREsp
1.159.242/SP, o debate ora estabelecido parece, de fato, confirmar que a
chamada “modernidade líquida”, segundo Bauman, promove uma progressiva
eliminação da "divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do 'privado' e
do 'público' no que se refere à vida humana”.
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