Fonte: Jornal Carta Forense. Edição de abril.
A sucessão dos irmãos bilaterais e unilaterais: inconstitucionalidade?
José Fernando Simão.
Foi
da iniciativa do amigo Flávio Tartuce a criação de um grupo virtual de
civilistas da chamada geração X para debates a respeito de direito civil. A
ideia é lançarmos dúvidas, questões tormentosas, e por meio de rico debate
jurídico verificarmos as opiniões dos participantes do grupo.
Mario
Delgado, professor de Direito das Sucessões da Faculdade de Direito da Fundação
Armando Álvares Penteado, lançou a seguinte questão posta por um aluno em sala
de aula: “o art. 1841, ao distinguir a cota hereditária dos irmãos germanos e
unilaterais implicaria violação reflexa ao princípio constitucional da
igualdade?” A frase do aluno foi a seguinte: “meu irmão por parte de pai é tão
irmão quanto os outros”.
A
questão que se coloca decorre da regra sucessória pela qual o irmão unilateral
(só de pai ou só de mãe) herda a metade do que herda o irmão bilateral.
“Art.
1.841. Concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos
unilaterais, cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar”.
A
sucessão do colateral só ocorre, por lei, se o falecido não deixou
descendentes, ascendentes, nem cônjuge sobrevivente. Imaginemos o seguinte o
exemplo. João, solteiro, falece sem pais, nem filhos e deixa como herdeiros
seus dois irmãos. José é filho de seu pai e de sua mãe, logo é irmão germano ou
bilateral. Maria, filha do segundo casamento de seu pai, é irmã unilateral,
pois sua mãe não é a mesma de João.
Pelo
art. 1841, a herança seria dividida da seguinte forma: 1/3 para Maria e 2/3
para José, pois o irmão unilateral recebe a metade do que recebe o bilateral.
Note-se
que o Código Civil, assim como fazia o Código Civil de 1916, atribui maior
quinhão ao irmão bilateral e menor quinhão ao unilateral. O debate proposto por
Mario Delgado é o seguinte: esta regra seria inconstitucional em razão da
igualdade dos filhos prevista na Constituição? Haveria violação reflexa?
De
início, cabe anotar quer dispõe a Constituição Federal, art. 227, parágrafo 6º,
o seguinte:
§
6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações
discriminatórias relativas à filiação.
Assim,
se João tem dois filhos, por serem filho, independentemente da origem, terão os
mesmos direitos, inclusive os sucessórios. Não se pode admitir, como fazia o
Código Civil de 1916, que com relação ao filho adotivo, havia redução do
quinhão sucessório. Assim vejamos a seguinte disposição do revogado Código
Civil:
“Art.
1.605. Para os efeitos da sucessão, aos filhos legítimos se equiparam os
legitimados, os naturais reconhecidos e os adotivos.
§
2o Ao filho adotivo, se concorrer com legítimos,
supervenientes à adoção (art. 368), tocará somente metade da herança cabível a
cada um destes”.
É
regra como essa, atualmente considerada de todo odiosa, pois a adoção imita a
vida, que se impede com a igualdade constitucional entre os filhos.
Agora,
em relação ao problema colocado, teríamos inconstitucionalidade, na relação
fraterna, ou seja entre irmãos, em diferenciar o irmão bilateral do unilateral?
A
Constituição não cuidou do assunto e nem pretendia fazê-lo. Se o falecido não
deixou filhos, a sucessão não será na classe dos descendentes (art. 1829, I) e,
por óbvio, o dispositivo constitucional não terá nenhuma aplicação. A sucessão
na classe do colateral não recebe tratamento constitucional (art. 1829, IV) e,
portanto, a desigualdade preconizada pelo Código Civil é absolutamente possível
e não é eivada de vícios.
Aliás,
a regra tem aplicação histórica secular. No Direito romano Justinianeu, em 539
d.C., estabeleceu-se regra pela qual os irmãos germanos excluíam da sucessão os
irmãos unilaterais (Novela LXXXIV), conforme leciona José Carlos Moreira Alves
(Direito romano, p. 482).
Em
igual sentido, a Novela CXVIII, que coloca os irmãos germanos em situação
privilegiada: só são chamados a suceder os irmãos unilaterais, na ausência de
irmãos germanos (Warnkoenig, p.221)
Assim,
a questão não passa pela constitucionalidade do dispositivo que, evidentemente,
é constitucional e deve ser integralmente aplicado pelos juízes.
A
questão, em verdade, passa por um viés filosófico: deveria a lei ser alterada
para reconhecer a igualdade dos irmãos bilaterais e unilaterais em matéria
sucessória? O conceito atual de família permite concluir que a regra histórica
secular perdeu sua razão de ser?
Essa
questão é ainda mais tormentosa. A sucessão legítima presume a vontade do
falecido que, se tivesse feito testamento teria sua vontade cumprida. Os
irmãos, na qualidade de colaterais, são herdeiros facultativos, logo, sem
direito à legítima. O irmão falecido, se quisesse igualar os quinhões poderia
fazê-lo por meio de testamento.
Surge,
então, uma outra observação: no Brasil não há o habito de testar, logo, caberia
a lei presumir de maneira adequada a vontade do falecido. E agora vem o maior
desafio: pode-se afirmar com segurança que efetivamente a família brasileira do
Século XXI, formada por irmãos bilaterais e unilaterais, efetivamente os
considera iguais em termos afetivos?
No
modelo tradicional, o pai que se divorcia e se casa novamente se afastava de
sua família. Logo, os filhos do primeiro casamento pouco ou nenhum contato
tinha com os filhos do segundo casamento (seus irmãos unilaterais). Será que
hoje o irmão unilateral recebe o mesmo carinho afeto que o unilateral para
presumir um equívoco da lei? A resposta é uma só: não se sabe seguramente.
Qualquer afirmação nesse sentido é puro “achismo” e padece de base efetiva.
Parece-me
que a regra sucessória da desigualdade entre irmãos é tão pacificamente aceita
pela sociedade brasileira que não existem projetos para a sua alteração, nem
vontade política ou social para tanto. De resto, sobra a vontade da doutrina em
criar problemas onde estes realmente não existem.
O
STJ tem entendimento pacífico que a regra do art. 1.841 tem aplicação no
direito brasileiro:
“O
Código estabelece diferença na atribuição da quota hereditária, tratando-se de
irmãos bilaterais ou irmãos unilaterais. Os irmãos, bilaterais filhos do mesmo
pai e da mesma mãe, recebem em dobro do que couber ao filho só do pai ou só da
mãe. Na divisão da herança, coloca-se peso 2 para o irmão bilateral e peso 1
para o irmão unilateral, fazendo-se a partilha. Assim, existindo dois irmãos
bilaterais e dois irmãos unilaterais, a herança divide-se em seis partes, 1/6
para cada irmão unilateral e 2/6 (1/3) para cada irmão bilateral. (VENOSA,
Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões, 7ª edição, São Paulo:
Atlas, 2007. p. 138). No caso dos autos, considerando-se a existência de um
irmão bilateral (recorrido) e três irmãs unilaterais (recorrentes), deve-se, na
linha dos ensinamento acima colacionados, atribuir peso 2 ao primeiro e às
últimas peso 1. Deste modo, àquele efetivamente caberia 2/5 da herança (40%) e
a cada uma desta últimas 1/5 da herança (20%).” RECURSO ESPECIAL Nº 1.203.182 -
MG (2010/0128448-2), RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 30/9/2013.
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