Famílias
mútuas
A troca de bebês em maternidades, nascidos em
mesmo dia, decorrente da ineficiência da administração hospitalar, tem
provocado que famílias assumam como filhos os que são de outras, tendo-os,
todavia, como verdadeiros filhos, ao fim e ao cabo da convivência familiar
prolongada, em manifesta parentalidade socioafetiva.
As primeiras repercussões fáticas são danosas,
quando a não semelhança física com os pais, permite “inconvenientes
desconfianças” do cônjuge varão, que levam, em alguns casos, à separação
judicial, ou à compreensão social do “filho de criação”; culminando, outrossim,
com a realização de exames genéticos para a verificação da paternidade e, ao
depois, a procura e identificação do filho biológico trocado.
As soluções subsequentes são a destroca dos
filhos (em medida do possível) a retificação dos registros civis pessoais (com
mudança dos prenomes) e as indenizações por danos morais (de caráter
compensatório); quando, em bom rigor, as sequelas psicológicas são profundas, os
fatos da vida se tornaram inexoráveis pelos danos existenciais causados, valendo,
anotar, por essencial, os vínculos socioafetivos que jamais se desfazem.
A propósito, notável julgado da 1ª Câmara de
Direito Público do Tribunal de Justiça de Pernambuco, onde relator o
desembargador Erik de Sousa Dantas Simões, juiz decisor de primeiro grau o
magistrado Glacidelson Antonio da Silva (1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca
de Garanhuns; sentença em DJe. nº 123/2011, de 07.07.2011, pp. 1.182-1.185) e
patrono dos autores o advogado Ivonaldo de Albuquerque Porto, confirmou a
responsabilização civil estatal por troca de bebês, com o significativo de que
ambas as famílias e os menores impúberes ajuizando, em conjunto, a ação
indenizatória, permaneceram aqueles em companhia dos seus pais registrais,
civis e sociafetivos, por inarredável situação consolidada de amor
paterno-filial entre eles. (TJPE - DJe. nº 45/2014, de 10.03.2014, pp.
167-168).
“Bem que fartos em amor, como natural, puderam
ter em J.R.B.S.J., a satisfação de tê-lo amado como filho e continuarão a
ama-lo como tal”, disseram os primeiros pais na petição inicial da ação
proposta, o mesmo repetindo os segundos, em relação a L.F. de S.
Os bebês nasceram no mesmo dia (30.05.1998), no
mesmo hospital, com uma diferença de apenas oito minutos, trocados na primeira
hora, e somente sete anos depois (25.04.2005), tiveram, por exame genético,
suas verdadeiras origens biológicas reveladas.
As decisões recíprocas dos pais afetivos, uns e
outros, de mantê-los no lar original de cada um, onde foram criados e amados, ao
tempo que exaltam a paternidade e maternidade socioafetivas fazem, em ato
instante, uma cumplicidade inevitável com o destino deles, mormente quando, na
hipótese, tudo evidencia uma desigualdade econômica das famílias envolvidas.
Essa singularidade mais enaltece o triunfo do amor, cuja prevalência tem
seguido precedentes dignificantes:
(i) o caso “Stanley e Jobson”, em Cruzeiro do
Sul, no Acre, quando somente quinze anos depois (05.2013) foi descoberta
a troca, mantiveram-se os jovens com suas genitoras afetivas, decidindo ambas
as famílias estabelecer encontros para a dinâmica de convivência entre os
filhos e as mães biológicas Maria Lúcia Bezerra e Ana Cláudia Ramos; (ii) o caso “Franciele e Danielle”, em Foz do
Iguaçu, no Paraná, quando trocadas em maternidade (23.10.1995), o que somente
constatado sete depois, decidiram também as famílias em não desfazer a troca, morarem
próximas, tornando-se duas famílias unidas.
Em situações que tais, recolhem-se esses fatos
da vida como elementos indutores ao surgimento determinante do que ora se
denomina de “famílias mútuas”. Famílias mútuas serão aquelas, portanto, que se
apresentam formadas por mães e pais que assumindo, efetivamente, a
socioafetividade parental de seus filhos, que lhes foram remetidos pelo
destino, desde o berço trocado, não deixam, todavia, de proteger o vinculo
biológico com os seus filhos consanguíneos em poder de outra família, cuja
permanência ali se oferece como ditame da mesma socioafetividade preordenada.
Há um outro dignificante exemplo, no caso russo
da família Belyaeva, quando sua filha Anya foi trocada por Irina, filha de uma
família muçulmana, a do tadjique Naimat Iskanderov, tendo o tribunal de
Kopeisk, nos montes Urais, condenado o hospital a uma indenização de U$ 100 mil
(2011). As duas famílias, independente de tradições, costumes e religião
diferentes, decidiram utilizar a indenização para possibilitar residências
próximas ou até uma moradia multifamiliar, para as crianças crescerem juntas
com todos os pais.
Anota-se que a troca de bebês em maternidades,
notadamente públicas, tem sido um fenômeno crescente, não obstante medidas de
segurança, normas internas ou municipais e a tímida tipificação penal referida
pelo art. 229 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no atinente à correta
identificação do neonato e da parturiente, por ocasião do parto. Os julgamentos
dos tribunais brasileiros, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, têm sido
frequentes, a assinalar a responsabilização civil por ilicitudes dessa espécie.
No caso mais recente, anota-se com louvor que,
para além da condenação do Estado de Pernambuco à indenização no valor de R$
300 mil por danos morais para todos os autores (pais e filhos), foi acrescida a
obrigação de o Estado fornecer tratamento psicológico a todos eles, pelo prazo
de dois anos.
No ponto, tenha-se por refletir da impostergável
construção jurídica do instituto do “pensionamento por dano existencial”, de
prazo determinado ou permanente, em moldura jurídica equipotente à do
“pensionamento por morte”, do art. 948, I, do Código Civil; ou seja, uma “pensão
civil por dano” destinada a suprir não apenas as despesas necessárias de
tratamento psicológico de suporte às situações de adequação supervenientes ao
ilícito mas, sobremodo, as despesas advenientes e dirigidas à uma dinâmica de
convivência dos pais com os filhos biológicos que permaneçam na família socioafetiva
preestabelecida.
De efeito, há que se incluir na doutrina e na
jurisprudência, o abrigo jurídico mais apropriado a reger as situações de vida onde
as famílias mútuas, surgidas pela prevalência do afeto, edificam presença
eloquente de dignidade. São exemplos de multiparentalidade, no entrelace de
fatos, que a ordem jurídica, por certo, também haverá de, sem submissão a
dogmas, necessariamente contemplar. Quando separadas por troca, em Rio Verde
(Goiás), há vinte e seis anos atrás, as gêmeas Kátia Sousa e Juliana Flausina,
descobriram-se irmãs, em ocasião que foram trabalhar na mesma loja de sapatos,
o destino orienta que o direito deve compreender melhor a vida.
JONES
FIGUEIRÊDO ALVES – O autor do artigo é
desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Diretor nacional do
Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura
de Família. Autor de obras jurídicas de direito civil
e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
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