Fonte: Migalhas.
A era das codificações voltou!
Mário Luiz Delgado
O processo de codificação do Direito, especialmente a
partir da segunda metade do século XX, havia caído em descrédito. Influenciados
pelo exponencial processo de dispersão das fontes legislativas, muitos autores,
em especial o italiano Natalino Irti, imaginaram que o direito moderno
doravante seria composto apenas por uma miríade de leis especiais, por natureza
mutáveis, porquanto resultado de compromissos frágeis entre interesses
antagônicos de grupos sociais ou econômicos, formando estatutos autônomos que
mais não se submeteriam a uma racionalidade global1. É o que se convencionou
chamar de “era da descodificação”.
Entretanto, o que se tem verificado na atualidade é
justamente o oposto do que foi preconizado por Irti. Vivemos um ciclo virtuoso
de novos códigos, bastando citar os projetos ora em tramitação no parlamento –
Código Comercial, Código de Processo Civil, Código Penal, Código de Processo
Penal e Estatuto das Famílias. A análise desses projetos2 demonstra que é o Código
quem vai absorver uma gama de relações jurídicas antes versadas na legislação
especial, e não o contrário. E ainda quando não absorva por inteiro a
disciplina, o Código enumera princípios ou cláusulas gerais que permitem a
integração e interação do sistema.
A codificação constitui uma das expressões culminantes
da cultura jurídica de um povo, instrumental relevante para afirmação dos
valores de uma sociedade, sobretudo em épocas de crise3.
A discussão sobre a sistematização das normas
jurídicas sob a forma de um código guarda relação com o próprio conceito de
sistema. O código normalmente apresenta as suas disposições repartidas de forma
criteriosa e ordenadas de acordo com um plano pré-estabelecido (sistemático),
fruto de um esforço de natureza eminentemente científica. Isso representou uma
mudança profunda no modo de formalização do Direito, influenciando o
desenvolvimento de uma nova tecnologia jurídica: a técnica legislativa. A
partir daí, a norma jurídica positiva passa a ser geral e abstrata e não mais
casuística, ditada para casos concretos. As técnicas de elaboração legislativa
modernas constituem, portanto, herança direta do processo de codificação.
Mas a questão não se limita à forma. A codificação é
também a expressão de uma ideologia.
Os Estados Unidos da América, protótipo de país de
common law, há poucos anos adotou o seu Uniform Commercial Code, formalmente
idêntico a qualquer código comercial dos países de civil law. Alguns estados
americanos, como é o caso da Califórnia, possuem mais “códigos” do que vários
países de tradição romano-germânica. Nem por isso podemos afirmar que os
americanos aderiram à codificação. Da mesma forma que podemos encontrar países
que ainda não possuem “códigos” e, nem por isso, podem ser considerados países de
common law. O caso da África do Sul é emblemático. Apesar de seguir o sistema
legal holandês, de origem romana, o seu direito civil ainda mantém-se
descodificado e as citações do Digesto de Justiniano são freqüentes na doutrina
e levadas em consideração nas decisões judiciais4.
O que vai marcar realmente a distinção entre common
law e civil law é justamente a ideologia por trás dos “códigos”. O papel e as
funções de um código são completamente diversos dentro de um sistema legal ou
de outro.
A codificação francesa de 1804 refletiu a ideologia
revolucionária que rompeu com o ancien régime e, por isso, a jurisprudência,
que era construída por magistrados e advogados representantes desse velho
regime, tinha que ser banida5.
Já a codificação alemã, quase cem anos posterior à
francesa, teve uma ideologia completamente oposta. No lugar de revolucionar o
sistema legal, rompendo todos os paradigmas pregressos, optou por uma
reconstrução científica do sistema anterior. A pretensão do BGB não era a de se
transformar em um livro de cabeceira para qualquer cidadão, mas em uma
ferramenta a ser utilizada por especialistas, ou seja um instrumental do
cientista do direito.
A codificação, como técnica de sistematização, tal
como a conhecemos atualmente, foi uma descoberta do século XIX. Já no final do
século XVIII, sob os influxos do movimento racionalista e imantadas dos valores
da burguesia e da lógica individualista do iluminismo, começam a pulular, na
Europa continental, as primeiras discussões sobre a necessidade de se
concentrar de alguma forma a legislação vigente, que de tão dispersa e
multifacetária, era quase incognoscível. E essa concentração haveria de ser
realizada de um modo racionalmente apreensível e sistemático, ao contrário do
que fizeram os antigos. A codificação passava a representar, então, o paradigma
da racionalização do direito, de uma forma nunca antes pensada.
Em célebre conferência pronunciada na Faculdade de
Direito da Universidade de Bolonha, por ocasião do cinqüentenário do Código
Civil italiano, Luis Díez-Picazo fala dos fatores, das razões e das aspirações
que a codificação buscava, sintetizando-os em quatro núcleos: 1.
Racionalização; 2. Progresso; 3. Pedagogia e 4. Utopia6.
O processo de racionalização do direito através da
codificação apresentava como traço característico a busca por uma perfeição,
quantitativa e qualitativa7. Essa ideia de perfeição era alcançada pela redução
ou compressão do material normativo, reduzindo-se o Direito à lei, no caso, ao
código. Toda e qualquer regra jurídica tinha que estar prevista na lei, máxima
expressão da vontade geral do povo, em oposição à jurisprudência, que
representava o poder ilegítimo de uma casta (os juízes).
Já a ideia de que a codificação encarnaria oprogresso
pode ser analisada sob duplo aspecto: político e econômico. No plano do
progresso político o código assegura o princípio da liberdade individual e da
igualdade de todos os cidadãos. No plano econômico, o progresso é representado
pelo máximo de previsibilidade das normas jurídicas codificadas, tornando o
ambiente de negócios da burguesia revolucionária cada vez mais seguro8.
Díez-Picazo fala, ainda, da codificação como uma
pedagogia, pois assegura uma melhor aprendizagem do Direito, comparando o
código a um pequeno catecismo. E finalmente a utopia revolucionária de se
imaginar um direito realizado por todos os cidadãos.
Claro que esse ideal
racionalista\progressista\pedagógico e utópico, materializado através dos
códigos, não poderia deixar de sofrer as influências da evolução histórica,
científica e social dos povos civilizados, o que levou, com o passar dos anos,
a um retorno à fragmentação das fontes. Tantas foram as mudanças, tantas as
transformações, ocorridas, sobretudo, ao longo do século XX, que logo foi
necessário regulamentar, fora dos códigos, uma série de outras questões, as
quais passaram a formar um incontável elenco de normas esparsas, vagando fora
dos códigos (daí chamadas extravagantes). Alguns autores referiram-se a tal
período como a “era da descodificação”.
Essa proliferação de leis especiais, no entanto, passa
a ocasionar sérios problemas, comprometendo o próprio funcionamento do sistema.
Chega-se a um ponto de saturação onde os profissionais do direito e a população
em geral já não sabem mais quais normas estão em vigor. Essa situação provoca,
então, a retomada ou a renovação das discussões sobre a premência de um novo
modelo de concentração das fontes, diverso daquele adotado pelo movimento
codificador do século XIX. Fala-se, agora, não mais em codificação, mas em
recodificação.
Codificação, descodificação e recodificação, na
verdade, formam um ciclo de repetência constante, não só no Brasil, mas em
todos os sistemas de civil law tradition. A ideia de compilar, consolidar ou
codificar a legislação de um povo, depois de um longo período de produção
espontânea, é uma constante histórica praticamente invariável.
Entre nós, o ápice do movimento codificador se deu nas
primeiras décadas do século XX, com a aprovação e entrada em vigor do Código
Civil de 1916. O pico do movimento descodificador, por sua vez, ocorre na
segunda metade do século XX, notadamente no final da década de 80 e durante
toda a década de 90, com a promulgação da Carta Magna de 1988 e do CDC de 1990,
podendo-se apontar como maiores baluartes dessa fase os adeptos da doutrina do
direito civil-constitucional.
Finalmente assistimos, neste início do século XXI, ao
retorno do movimento de concentração, porém sob nova roupagem, completamente
diversa da codificação do século XIX. O movimento recodificador não pretende
restaurar os ideais iluministas da primeira geração de códigos civis, nem
pretende, tão pouco, “uniformizar” a legislação, tal como propugnado pela
Escola da Exegese, a ponto de se afirmar que na França decimonônica não se
ensinava o direito civil, mas o Código Napoleão; ao contrário, na recodificação
busca-se apenas “harmonizar” (o que é bem diferente)9 o (novo) código com a
legislação extravagante, ora pela absorção pura e simples, ora pela aplicação
coordenada de uma ou de outra fonte. Os códigos de segunda geração, frutos da
recodificação, já não pretendem encarnar “o” sistema, mas apenas se integrar a
ele, como uma de suas partes, porém na posição “solar”10: um centro que convive
com todos os outros à sua órbita. A perspectiva agora é “copernicana” em
oposição à velha concepção “ptolomaica”.11
A recodificação brasileira tem início em 2002, com a
sanção do novo Código Civil e vem ganhando força nos últimos anos, com os
diversos projetos de novos códigos aos quais já nos referimos.
São muitas as vantagens em renovarmos os nossos
grandes códigos. Nesse ponto concordamos plenamente com Oliveira Ascensão, no
sentido de que “o código permite um conhecimento fácil do direito” e que “pela
sistematização científica que traz, dá ao intérprete um mapa onde situar
facilmente o novo caso”. Em suma, “não só pressupõe como facilita a construção
científica do direito”, oferecendo um quadro sistemático indispensável para
reunir os princípios do ordenamento e os valores fundamentais da sociedade.
Sob esse prisma, o código atua como uma espécie de
manual de Direito, passível, em tese, de ser consultado por qualquer cidadão.
Um guia, uma espécie de “GPS LEGISLATIVO”, oferecendo ao operador do direito coordenadas
para que ele venha a encontrar o melhor caminho para solução das lides nas
quais seja chamado a intervir, ainda que esse melhor caminho esteja fora do
próprio código.
Em suma, os defensores da tese de que na época atual,
dita da “pós–modernidade”, não haveria mais espaço para obras codificadoras de
grandes dimensões foram vencidos.
Os Códigos estão aí!
Podemos afirmar que 2013, em termos legislativos, foi,
sem dúvida, o ano das (re) codificações.
1 Cf. DELGADO, Mário Luiz. Codificação, descodificação
e recodificação do direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.
2 O Instituto dos Advogados de São Paulo- IASP,
através de suas Comissões temáticas, vem se dedicando ao estudo desses
projetos, no intuito de oferecer sugestões para aprimorar os textos
legislativos.
3 Cf. REALE, Miguel. História do código civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 69.
4 Cf. MERRYMAN, John Henry e PÉREZ-PERIDOMO, Rogelio. The
civil law tradition: an introduction to the legal systems of Europe and latin
America. 3. ed.
Stanford, California: Stanford University Press, 2007, p. 27. Os autores citam
, ainda, os exemplos da Grécia e da Hungria, que só recentemente, pós segunda
guerra, editaram os seus primeiros códigos civis.
5 Cf. MERRYMAN, John Henry e PÉREZ-PERIDOMO, Rogelio. The
civil law tradition cit., p. 29.
6 DÍEZ-PICAZO, Luis.Y Ponce de Léon. Codificación,
descodificación y recodificación. In: Anuario de derecho civil.t. XLV.
Fascículo II. Abril-junho (1992).
7 Cf. DÍEZ-PICAZO, Luis.Y Ponce de Léon. Codificación,
descodificación y recodificación In: Anuario de derecho civil cit., p. 475.
8 Cf. DÍEZ-PICAZO, Luis.Y Ponce de Léon. Codificación,
descodificación y recodificación In: Anuario de derecho civil cit., p. 476.
9 O processo de harmonização pressupõe a convivência
de diversas fontes, enquanto na uniformização busca-se a redução a uma só
fonte.
10 O paralelo entre o ordenamento jurídico e o sistema
solar tem sido feito por diversos autores.
11 A expressão é de Constantinesco, citado por Castro
Mendes, referindo-se à tendência moderna dos sistemas jurídicos de se abrirem,
no lugar de constituírem unidades fechadas e estanques. (Cf. CASTRO MENDES,
João de. Direito Comparado.Lisboa: AAFDL, 1982-1983, p. 55/56)
* Advogado do escritório Martorelli Advogados. Diretor
de Assuntos Legislativos do IASP. Doutor em Direito Civil pela USP.
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