Segurança jurídica. entre ouriços e raposas
Luiz Edson Fachin.
Publicado no
Jornal Carta Forense. Edição de agosto de 2013.
Os enunciados
normativos, ao servirem de instrumento na interpretação e aplicação, devem
propiciar segurança como importante valor, coerente com a sociedade plasmada na
Constituição brasileira. A centralidade desse valor assentada na legalidade constitucional recolhe da metáfora
grega de Archilochus o sentido do ouriço, tal como
descrito em Dworkin (em Justice for Hedgehogs): o ouriço sabe uma coisa muito importante.
Seu universo, portanto, é unitário.
Nada obstante, os enunciados se revestem de
polissemia: de um mesmo enunciado podem emergir diversas normas como também
distintas interpretações. Essa possibilidade de respostas diferentes e às vezes
incompatíveis entre si, repõe em cena, a partir da mesma metáfora antes
mencionada, o significado da raposa, tal como exposta por Isaiah Berlin (no
ensaio que escreveu sobre Tolstoi): a raposa sabe muitas coisas. Seu mundo é, pois, plural.
Se, de uma parte, a prestação jurisdicional demanda
legitimamente espaços de solução do caso concreto, tem havido, de outra,
choques em termos de limites e possibilidades de atuação dos julgadores,
especialmente das Cortes Superiores no Brasil.
Observa-se, em razão disso, adesão progressiva no
Judiciário aos ‘precedentes’ como sustentação da razão de decidir, o que
traduziria, nesse horizonte, busca maior pelo respeito à autoridade dos
julgados. Almeja-se, pois, estabilização.
Tal estabilidade tem sido garantida? Diante de
expressivo número de julgados, tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do
Superior Tribunal de Justiça, calha ressaltar que a almejada segurança não se
coaduna com juízos estritamente pessoais nem com a imotivada negação do
passado. A continuidade, assim, não é absoluta, mas pode ser sintoma de
compromisso com a justiça. Vem daí que a jurisprudência, pois, não merece tal
nome se variar ao sabor das percepções pessoais momentâneas.
A realidade social e econômica tem se mostrado
dinâmica, especialmente diante das inovações tecnológicas incessantes ou de
mudanças normativas no plano internacional. Logo, é perfeitamente compreensível
(e desejável) que a conformação dos casos concretos demande novas soluções.
Assim o fez o STF ao
julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental número 54, concernente
às células-tronco, bem assim o STJ, quer ao homologar sentença eclesiástica de
anulação de casamento religioso, com base no acordo firmado entre o Brasil e a
Santa Sé, quer ao alterar a orientação referente à contribuição previdenciária
sobre o valor do salário-maternidade e de férias.
Segurança jurídica, pois, não significa imutabilidade,
mas sim um mínimo indispensável de previsibilidade, em patamares compatíveis
com o dinamismo e o cosmopolitismo. Eis, então, o desafio: como encontrar a
solução correta no texto constitucional e nas normas infraconstitucionais? Como
não sucumbir ao reducionismo simplista da metáfora sobre ouriços e raposas?
O que se espera é que tanto o STF, em matéria
constitucional, quanto o STJ, no campo da legislação federal, não apenas
formalmente afirmem suas competências como consolidem a unidade do sistema
jurídico, cumprindo com a missão de expor, com nitidez, as razões de seu
decidir, adequadas como tradução da previsibilidade e da coerência. Os
denominados ‘precedentes’, cujo sentido não é unívoco, podem contribuir, nesse
limite, com esse desiderato.
Será isso suficiente? Há, a rigor, compromisso ainda
mais elevado com a segurança jurídica e que vem marcado pela obediência à legalidade constitucional. Não
basta o encadeamento formal de ‘precedentes’ (mesmo aqueles realmente
merecedores de tal denominação), antes e acima de tudo, cumpre ser a imagem
especular do ordenamento jurídico constitucional.
Trata-se, assim, tanto da legalidade constitucional quanto da compreensão
sobre a natureza jurídica de tais precedentes. Quanto a estes, anote-se que,
realmente, a decisão pode não ter somente efeito meramente persuasivo. O
precedente pode realmente se apresentar como binding precedent (vinculante). Impende, então,
reconhecer a aproximação dos sistemas do civil law e do common law, especialmente no redesenho atual dostare decisis.
Estabilidade e simplificação foram os princípios à
época indicados pelo Ministro Victor Nunes Leal, que, no Supremo, construiu a
finalidade da súmula correspondente
ao enunciado de entendimento predominante, inclusive no terreno da declaração
de inconstitucionalidade. O julgador, contudo, não se substitui ao legislador.
A legalidade constitucional constitui
fonte e baliza do sistema jurídico.
Hoje, ainda com maior ênfase, a ética da confiança no direito
positivado a equilibrar-se com a estabilidade de entendimentos jurisdicionais,
os quais, por si só, se imutáveis indefinidamente ou mutáveis imotivada ou
constantemente também geram insegurança. Tal temperamento passa pelo rigor da
fundamentação racional das decisões, e alcança o sentido da segurança não
apenas como garantia de legítimas expectativas, mas também como incidência
material da legalidade constitucional.
De quantos corpos se comporia, então, a segurança jurídica
plena? A resposta se agasalha na complexidade que pode ser arrostada pela
metáfora de Kantorowicz ao divisar os dois corpos do rei.
Com efeito, a dupla imagem fornece o primeiro passo
para apreender o que se revela dentro do continente que compõe a concepção de
segurança plena. No primeiro corpo está o terreno da raposa, das vicissitudes da conjuntura em que se vive;
numa palavra: nele se apresenta o campo das efemérides humanas, vertidas nos
pronunciamentos jurisdicionais: (i) ora pelo julgado que, face às efetivas
peculiaridades do caso concreto, não configura precedente, (ii) ora pelo
precedente julgado que, ao consolidar entendimento predominante, consiste em
pronunciamento vinculante, (iii) ora marcado por nova orientação (overruling), motivadamente
assentada; no segundo corpo, está a senda do ouriço, a unidade desejável que se exercita, também
despida de sentidos insolúveis, na expressão da legalidade constitucional; nesta se compreende a
Constituição formal, substancial e prospectiva.
Diante dessa dualidade imbricada, é a segurança
jurídica um cavaleiro de duas épocas: tanto segue ou arrosta os
arquétipos legislativos, bem como, sem preconceitos nem cópias colonizantes,
apreende a força construtiva dos fatos sociais complexos.
Sob o oxigênio da Constituição, essa plenitude imprime
à segurança jurídica o destino do que afirmou Ihering: “não é a vida que é o
conceito, antes os conceitos existem por causa da vida”. Por essa
dogmática jurídica crítica, a confiança na jurisdição pressupõe respeito à lei
e julgamentos sólidos sem surpresas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário