sexta-feira, 24 de outubro de 2008

ARTIGO DE GERIVALDO NEIVA. A MENINA DAS BALINHAS DE CAFÉ

A MENINA DAS BALINHAS DE CAFÉ
Ou uma brevíssima introdução ao estudo do Direito...

Gerivaldo Alves Neiva. Magistrado na Bahia.

Coração Civil

Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero o vinho e o pão
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver...

Milton Nascimento e Fernando Brant


.... 6,5,4,3,2,1, amarelo, vermelho!
M... não deu prá passar na sinaleira. Ou semáforo. Ou farol... o que seja!
E esta é demorada... Começou a contagem regressiva do vermelho para o verde: ...99, 98, 97...
Esta é aquela da menina que vende balinhas de café. Lá vem ela. São quatro filas de carros e eu sou o primeiro da fila da coluna dois. Ela deixa um pacotinho de bala sobre o retrovisor do meu carro e corre para o próximo atrás de mim. Vou contando: 1, 2, 3... me perdi. Parece que 8 ou 10. Agora ela corre do primeiro ao último. 1 real cada pacotinho. É pegar ou largar.
Adoro essas balinhas de café. Acho que não tem problema comprá-las, pois além da embalagem própria, ainda vem com outra embalagem por cima. Dei-lhe uma moeda de 1 real e voltei a acompanhar sua maratona. Um olho na menina e outro no contador da sinaleira: 35, 34, 33.... Caramba! Será que vai dar tempo! 21, 20, 19... ainda faltam uns três carros. 8, 7, 6... Ela conseguiu!! Que maratona!
Na minha conta, parece que vendeu uns 3 ou 4 pacotinhos de balas. Quando o sinal ficou verde, ainda vi pelo retrovisor interno ela se esquivando de alguns veículos apressados, em meio a buzinas e fumaça, e retornando para a sombra de uma árvore no canteiro ao lado da pista. Deveria estar suada e cansada. Eram 13:45 e certamente fazia muito calor. Com meu ar condicionado e meu vidro com película protetora não dá para sentir. Olhei uma última vez pelo retrovisor e vi a menina de perfil. Tive a impressão de que ela estava grávida. Caramba! Mas ela deve ter 14 ou 15 anos e já está grávida!
Preciso me concentrar no trânsito, mas a imagem da menina continua em minha cabeça. Seu olhar é piedoso e sério. Como seria o sorriso dela? Os cabelos longos de rabo de cavalo, parecendo uma cigana ou indiana. Bonita ela. Os seios são pequenos e o corpo é magro e forte ao mesmo tempo.
Segui minha viagem, mas a cena não me saía da cabeça: a menina que vendia balinhas de café na sinaleira. Pensava bobagens assim: e se alguém pegasse o pacote de balas e saísse em disparada sem pagar? E se ela fosse atropelada quando ainda se desviava dos carros? Deus é mais...
Dirigia e pensava: será que as balinhas eram dela ou eram de alguém que comprava e repassava prá ela vender? Que bobagem... Ora, então ela podia ser empregada de alguém. Também podia ser uma vendedora autônoma. Sendo assim, a cena que me perturbava poderia ser típica de uma relação de emprego ou de compra e venda de mercadorias... relação de consumo? É Lei demais...
Ora, sendo compra e venda, então estamos diante de um contrato típico.
(... Estou me lembrando de um texto do Professor Flávio Tartuce que fala do vendedor de amendoim na praia e a boa-fé objetiva. Gostei da forma como ele introduz a discussão sobre uma questão teórica jurídica: amendoins na praia... Está lá em www.flaviotartuce.adv.br, na seção de artigos...)

E balinhas de café na sinaleira? Não creio que seja uma relação de emprego. Está mais para um contrato mesmo. Igual ao menino dos amendoins na praia do Tartuce.
Então, sendo contrato, podemos pensar em partes contratantes, objeto, cumprimento das obrigações, mora, inadimplência, boa-fé objetiva, função social dos contratos e tantos outros princípios previstos no Novo Código Civil. É Lei demais, meu irmão...
De outro lado, pode ser uma relação de consumo? Aplicar o Código de Defesa do Consumidor em relação de compra e venda de balinhas na sinaleira, pode? Neste caso, havendo descumprimento, seria competente o Juizado de Defesa do Consumidor ou o Juízo da Vara Cível? Tome-lhe mais Lei...
De fato, tem Lei prá tudo: vivemos contratando diariamente em várias situações, sou parte, sou consumidor, sou vítima...
E a menina? Será que esta grávida mesmo? Quem será o pai? Se o pai não assumir, pode requerer a ação de investigação de paternidade e realizar o DNA? E o bebê já tem direitos desde a concepção ou só depois de nascido? Isto tudo está na Lei... Código Civil...
E se ela fosse atropelada enquanto corria entre os carros? Teria culpa o motorista ou seria culpa exclusiva dela? Seria crime culposo ou doloso ou não seria crime atropelar uma menina maluca correndo entre carros para vender balas de café? Êpa! Código Penal na área... É, Código Penal também é Lei.
Cabeça de Juiz é um problema. Para cada situação, uma Lei. Para uma pobre menina vendendo balas, já apliquei a legislação Civil, Penal, Trabalhista e Consumidor. Além de viver procurando uma Lei para cada caso, Juiz também é condicionado a pensar em Direito privado, público, adjetivo, substantivo, material, objetivo, subjetivo..., como se isso fosse possível no mundo pós-moderno, industrializado, informatizado e globalizado...
Mas vamos voltar à menina das balinhas e seu bebê... Ora, se ela está grávida, então é pessoa humana do sexo feminino. É uma mulher, tem sentimentos e certamente tem um nome: Maria, Raquel, Júlia, Regina, Érica, Luana, Donatela, Flora, Amélia...? Não. Amélia, não!
Voltando às nossas leis: além de vendedora de balinhas de café na sinaleira, agora nossa menina também é uma pessoa humana. Então, posso pensar que ela tem Direitos? Será que ela sabe que tem Direitos? Será que ela sabe que a princípio a Lei é para todos? Que somos todos iguais perante a Lei? Deixa prá lá...
Lei e Direito sempre causa confusão nas pessoas. Por exemplo, aplicamos várias Leis enquanto pensávamos na menina que vende balinhas de café na sinaleira. São centenas ou milhares de Leis. Para cada problema, uma Lei. Nossa mentalidade legislativa é tão forte que pensamos na Lei como se o fato que ela regula fosse isolado do mundo social. É como se existisse apenas de um mundo das Leis. Está tudo normatizado... Certa vez ouvi Luis Alberto Warat dizer: “vamos brincar na floresta enquanto o normativismo não vem.” Que legal!
Com tanta lei, é como se nossa menina fosse também isolada do mundo, hermética, pura.... Como se o Direito fosse uma ciência pura, fora do mundo...
Mas o Direito não é a Lei? O Direito não é tudo que está posto nos Códigos e nas demais leis e normas? Vamos pensar mais um pouco...
Assim, por exemplo, vamos pensar que que a menina que vende balas de café na sinaleira está negociando e praticando atos jurídicos. Logo, podemos dizer que aí está presente o Direito? Sim, é certo. De outro lado, quando pensamos que uma adolescente de 15 anos está vendendo balinhas de café na sinaleira para sobreviver, que esta adolescente tem uma família, vive em uma sociedade, tem um nome, está grávida e é uma pessoa humana que tem direitos, podemos dizer que também aí está presente o Direito. Ora, se é assim, então o Direito é maior do que a Lei? Sim, é certo.
De fato, agora podemos pensar em Direitos (dos) Humanos, Direitos Fundamentais, Direitos Constitucionais, dignidade da pessoa humana, cidadania, solidariedade...
Na verdade, para compreender esta relação de Direito e Lei com mais profundidade precisamos estudar mais do que o Direito como ciência. Precisamos de outras ciências. Precisamos de lições, principalmente, de filosofia e sociologia, ou seja, de interdisciplinaridade. Um pouco de psicanálise também faz bem.
Precisamos de outras respostas: quem é nossa menina e por que ela se tornou vendedora de bala de café na sinaleira? Quem são seus pais? Onde mora? Quem é o pai do seu filho? Por que não está na escola? Está fazendo pré-natal? Tem lazer e cultura?
São divagações filosóficas e sociológicas imprescindíveis à compreensão de um fato revestido de relações sociais e jurídicas, onde também está presente o Direito.
Com essa compreensão, seremos meros “contratantes” quando nossa menina for apenas uma vendedora de balinhas de café na sinaleira; seremos “conhecedores de leis” quando nossa menina for apenas parte de relações jurídicas as mais diversas e, por fim, seremos “juristas verdadeiros e humanistas” quando compreendermos que nossa menina, primordialmente, é uma pessoa humana que precisa ser cuidada e, por conseqüência, quando compreendermos que é tarefa do verdadeiro jurista lutar para que nossa menina tenha assegurados seus direitos, a dignidade e a cidadania.
Assim se resume a diferença entre Lei e Direito. A Lei regula os fatos sociais e o Direito, em companhia de outras ciências, nos faz compreendê-los. Não é fácil?
Finalmente, depois de distinguir e separar a Lei do Direito, sendo mais do que um mero comprador de balas e conhecedor de leis, o jurista verdadeiro e humanista precisa ter a compreensão multidisciplinar do fenômeno social e lutar, cotidianamente, por uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. Sonhar, pois “sem sonhos não existe a transformação da realidade e o homem que perde a capacidade de sonhar, perde a capacidade de viver...” (L.A. Warat).
Por fim, este é o sentido da nossa existência e da existência do Direito: alcançar a JUSTIÇA, ou seja, a UTOPIA! Como nos ensina L. A. Warat no Manifesto do Surrealismo Jurídico: “o sentido do Direito é o de ser parte do sentido de uma prática social.”

Conceição do Coité – Ba., 22 de outubro de 2008, ano XX da Constituição Federal de 1988.
gerivaldo_neiva@yahoo.com.br
www.gerivaldoneiva.blogspot.com

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